Manifestações do estranho em tempos de crise: um estudo acerca do Novíssimo Cinema Grego

Por:
Fiona Maria Gando Guerra (Universidade Federal de Pelotas)
Alfredo Luiz Suppia (Universidade Estadual de Campinas)

Resumo

O presente estudo busca compreender as manifestações da estranheza dentre aspectos conceituais e estéticos presentes em obras cinematográficas realizadas na Grécia após as sequelas sofridas pelo país balcânico durante a crise econômica mundial de 2008, ocasionada principalmente pelo rompimento da bolha imobiliária norte-americana. Utilizando da análise fílmica focada na interpretação sócio-histórica, os longas-metragens Dente Canino, Alpes, Attenberg, O Garoto que Come Alpiste e Miss Violence servirão como base para compreender não somente o nascimento do Novíssimo Cinema Grego, mas também como o contexto sociopolítico do país de origem pode influenciar a formação dos grupos de aspectos comuns a cada escola cinematográfica e, afinal, ressaltar a importância do estudo do gênero e suas constantes transfigurações.

Palavras-chave: Novíssimo Cinema. Estranha Onda Grega. Teatro do Absurdo. Análise Fílmica.

Abstract

This study seeks to understand the demonstrations of strangeness among conceptual and aesthetic aspects present in cinematographic works made in Greece after the consequences suffered by the Balkan country during the 2008 world economic crisis, mainly caused by the bursting of the North American real estate bubble. Using film analysis focused on socio-historical interpretation, the feature films Dogtooth, Alps, Attenberg, The Boy Eating the Bird’s Food and Miss Violence will serve as a basis for understanding not only the birth of the New Greek Cinema, but also how the country’s sociopolitical context can influence the formation of groups of aspects common to each film school, at last, seeking to emphasize the importance of studying genre and its constant transfigurations.

Keyword: New Cinema. Greek Weird Wave. Theater of the Absurd. Film Analysis.

Introdução

Durante o fim da década de 2000, mais precisamente após o alvoroço ocasionado pelo rompimento da bolha imobiliária norte-americana em 2008, países ao redor do mundo sofreram com a repentina entrada numa profunda crise econômica.  Dentre eles, a Grécia, já previamente sobrecarregada pelo quadro gravíssimo de endividamento e rumores de um possível Grexit, foi um dos territórios mais atingidos pelo medo e instabilidade provenientes do aumento exponencial do desemprego e da retração industrial. Como exposto pelo professor Filipe Figueiredo, em matéria para o site Xadrez Verbal, no ano de 2015, “a principal especulação do momento era sobre a possibilidade de um Grexit, a saída da Grécia da zona do Euro. O termo deriva da aglutinação, em inglês, das palavras Greece, Grécia, e Exit, saída.”

Foi durante a Crise Financeira internacional que se iniciou em 2009 que a economia grega entrou em colapso e a real situação de seu sistema político foi destacada para o mundo: os governos de ambos os partidos que se alternaram no poder desde o ocaso do regime militar nada fizeram para resolver o que agora era apontado como a principal causa da crise nacional, os gastos excessivos do Estado. A exposição do grau de endividamento do país se deu no momento em que foram descobertos pela Comissão Europeia que vários níveis econômicos foram maquiados para que o país pudesse entrar e se manter na zona do Euro. (NARCISO, 2016, p. 13)

Após a grande crise, o setor de produção cinematográfica do país balcânico passou por contínuos ataques, sofrendo com a diminuição do apoio estatal para a área e bruscos cortes de investimento. Cineastas gregos lutavam contra a redução orçamentária trabalhando sem remuneração ou intercambiando funções nos filmes de seus colegas. É neste contexto de indignação popular e questionamento de poderes que, a partir de 2009, começam a surgir as produções “marcadas por semelhanças formais e uma inquietação intrínseca.” (NARCISO, 2016, p. 08) que, posteriormente, agruparam-se formando o Novíssimo Cinema Grego, também conhecido como Estranha Onda Grega.

São diversas e excêntricas as peculiaridades estéticas que permeiam as obras do Novíssimo Cinema Grego: em filmes que honram a tradição cênica milenar do país, é possível visualizar as claras referências aos roteiros das grandes tragédias, a inserção do espectador em grupos sociais reclusos e muitas outras características que, aqui, serão observadas a partir da aplicação de técnicas de análise fílmica focadas na interpretação sócio-histórica das obras e suas narrativas, abordando, principalmente, seus temas e conteúdo, além da atmosfera construída ao redor das personagens. Aproveitando-se em especial de instrumentos documentais, definidos como “um conjunto de dados factuais exteriores ao filme e susceptíveis de serem utilizados na análise.” (AUMONT e MARIE, 2004, p. 79), serão estudados, afinal, os casos de Dente Canino (2009), longa-metragem de Yorgos Lanthimos e marco inicial do movimento; Alpes (2011), do mesmo diretor; Attenberg (2010), de Athina Rachel Tsangari; O Garoto que Come Alpiste (2012), de Ektoras Lygizos e Miss Violence (2013), de Alexandros Avranas, procurando compreender como tais obras se assemelham ou diferem entre si.

A crise de 2008 e sua influência na esfera cinematográfica grega

A busca pela real identidade grega data do século XVIII e inspira-se nos ideais propostos pela Revolução Francesa. Na época, filósofos como Adamantios Koraís começaram a idealizar uma possível renascença daquilo que era até então considerado como o ápice do desenvolvimento cultural e artístico no país: o período helenístico. Além da inspiração francesa, a Igreja Católica Ortodoxa também obteve grande influência na construção da identidade do povo grego. A instituição, que era responsável por distinguir “correto” e “incorreto”, apoiou a implantação de um modelo de organização social patriarcal e centrado na família, conhecido como Nikokirei que é, até os dias de hoje, válido no país e que ajudou a abrir caminho para seguidos governos nepotistas.     

O sistema familiar Nikokirei também afetou a organização política do país, tornando-o altamente corrompido devido ao fato de ser frequentemente governado por famílias inteiras, tornando o favoritismo e o nepotismo inevitáveis. Esta é uma das principais razões pelas quais, em 2007, a economia grega entrou em colapso, criando uma das maiores crises econômicas na História grega (Psaras, 2016, p. 10) e, enquanto a classe média sofria, o governo mostrou-se incapaz de corrigir a situação. (ESCRIBANO, p.2 – tradução livre)

No século XX, a Grécia passou por diversos governos monárquicos liderados por reis de origem germânica que abalaram as estruturas democráticas anteriormente estabelecidas. Foi somente após a destruição parcial de seu território, consequência da invasão alemã durante a Segunda Guerra Mundial, quando o regime monarquista começou a ser questionado pela população, fazendo com que a instabilidade política culminasse num golpe de Estado que instalaria, posteriormente, a Ditadura Militar (1967 – 1974) no país.

Ao fim do regime autoritário grego, o poder passou pelas mãos de dois diferentes partidos recém-criados: num primeiro momento, Konstantinos Karamanlís, do conservador Nova Democracia (ND), “buscou reparar os conflitos externos e a integração com as grandes economias do continente, adentrando a Comunidade Econômica Europeia, que precedeu a União Europeia (UE), em 1981.” (NARCISO, 2016, p. 13). Depois, a falha tentativa de abertura econômica de Karamanlís fez com que o Nova Democracia perdesse as eleições para o partido social-democrata (PASOK), que governou de 1981 a 2004 e sofreu com o brusco abatimento do dracma após a entrada do país balcânico na zona do Euro.

Em 2008, a desvalorização dos títulos hipotecários no EUA fez com que grandes bancos fossem à falência e as ações despencassem, gerando um novo crash na bolsa de valores norte-americana que se assemelhou àquele visto anteriormente à Grande Depressão, em 1929 . Tal fator não só proporcionou a Crise Financeira Internacional de 2009 como também revelou, após o colapso da economia grega (assim como de diversas outras ao redor do globo), a omissão de altíssimos gastos estatais ocasionados pelos corruptos governos ND e PASOK, que maquiaram o preocupante grau de endividamento da Grécia para que o país conseguisse finalmente adentrar à União Europeia.  

Após a crise política a partir desse caso de corrupção, a economia grega passou por um verdadeiro processo de autópsia pela União Europeia, sendo revelados inúmeros casos de subsídios sem declaração, atrasos no setor previdenciário, cessão de cargos públicos a familiares de governantes, desvalorização da moeda anterior para dissimular o tamanho da dívida externa e muitos outros fatores, o que só contribuía para que os governos tivessem mais gastos do que poderiam pagar. (NARCISO, 2016, p. 13)

Se até então a cinematografia grega havia sido marcada por mais de trinta anos de dificuldades comerciais com baixíssimos números de público (PAPADIMITRIOU, 2014, p.5) que foram substituídos, ao fim da década de 1990, pela rápida popularização dos blockbusters nacionais financiados por grandes distribuidoras; após a crise mundial o cinema do país balcânico voltou a sofrer com a queda brusca dos investimentos e, claro, do apoio estatal que já era raro.

No mesmo período em que vários acontecimentos colocaram a Grécia em um estado de quase falência socioeconômica, com grandes motins nas ruas, queda de mais um primeiro-ministro e denúncia de altos níveis de corrupção, os cineastas do país se organizaram em um movimento denominado Filmmakers of Greece (FOG), para buscar uma reformulação na ineficiente política estatal sobre o cinema, que além de não apoiar devidamente os projetos nacionais, ainda era acusada de favorecimento e manipulação nos prêmios dados pelo Estado. (NARCISO, 2016, p. 16)

No intuito de enfrentar a situação financeira desfavorável, cineastas independentes como Yorgos Lanthimos, Athina Rachel Tsangari, Ektoras Lygizos e Alexandros Avranas   elaboraram e colocaram em prática um sistema de intercâmbio de funções para que conseguissem dar continuidade à produção filmográfica na Grécia. Trabalhando sem remuneração nas obras de seus colegas cineastas, estes realizadores geraram, com orçamento reduzido, obras focadas nas relações entre pequenos núcleos sociais que foram, aos poucos, tomando conta dos festivais de cinema e chamando a atenção da crítica internacional por suas características peculiares (a serem abordadas em mais detalhes a seguir) que foram agrupadas formando, posteriormente, a Estranha Onda Grega.

Dente Canino como marco inicial do novo cinema na Grécia 

Sentado à mesa de jantar, junto de sua esposa, um pai pergunta aos filhos: quando uma criança está pronta para deixar sua casa? Eles, prontamente, respondem: “Quando cai o seu canino direito”. É esse o mito que entrelaça os acontecimentos de Dente Canino (Kynodontas, 2009), segundo longa-metragem do diretor Yorgos Lanthimos. O filme, vencedor do prêmio de Melhor Filme durante a mostra Un Certain Regard, no festival de Cannes e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011, foi bem recebido pela crítica durante seu lançamento e tornou-se, por suas excêntricas sequências e primoroso roteiro, marco inaugural do Novíssimo Cinema na Grécia.

Na trama, o espectador é apresentado ao Pai (Christos Stergioglou) e a Mãe (Michelle Valley) que, organizando-se de forma não convencional, educam seus três filhos (que também não recebem nomes durante o decorrer da narrativa) limitando-os àquilo que fica do portão da casa para dentro. Os jovens, que desconhecem termos e costumes comuns, passam a maior parte de seus dias realizando competições de resistência física entre si e treinando as mais diversas habilidades que seus pais acreditam pertinentes. A dinâmica despótica é, porém, rapidamente ameaçada pela entrada de Christina (Anna Kalaitzidou), uma outsider que desbalanceia o grupo familiar ao abrir caminho para que os filhos tenham contato com ideias exclusivas ao mundo exterior. Lanthimos, responsável pelo pontapé inicial do movimento, relatou em entrevista seu relacionamento com o cinema e o ato de fazer filmes:

“Eu gosto da experiência de assistir a um filme que não me conte as coisas. Isso é o cinema – ele deveria ser sobre mostrar uma imagem e ter as pessoas que a veem colocando todas as coisas nela. Você tem a imagem de uma cadeira – uma foto estática. Algumas pessoas a veem como cadeira feia, ou como uma cadeira bonita. Talvez alguém tenha saído dela, talvez alguém esteja chegando. Eu penso que é assim que o cinema deveria funcionar.” (Tradução Livre)

Ele, que é cineasta, roteirista, produtor e graduado em Cinema e Audiovisual, até então, em seus dezoito anos de carreira, recebeu quatro indicações ao Oscar por seus trabalhos O Lagosta (The Lobster, 2015), A Favorita (The Favourite, 2018) e, claro, Dente Canino. Nascido em Atenas, iniciou sua trajetória comandando uma série de vídeos para companhias gregas de dança e, em sua estreia como cineasta, codirigiu a obra My Best Friend (O kalyteros mou filos, 2001) ao lado de Lakis Lazopoulos.  Sua primeira obra experimental, Kinetta, estreou no Toronto Film Festival em 2005 e contou com boa recepção da crítica especializada.

A denominação Estranha Onda Grega, ou Greek Weird Wave, que vem sendo utilizada por estudiosos há alguns anos para definir obras que abordam de forma metafórica a situação grega atual, virou alvo de pesquisas acerca de como o rótulo “estranha” pode restringir as técnicas propostas pela corrente, que inicialmente não havia sido planejada especificamente para tornar-se um movimento, às características observadas em filmes como seu marco inaugural, que as levam ao extremo. Segundo o próprio Lanthimos, por exemplo, “não há filosofia comum, a coisa comum é que não temos fundos, então nós temos que fazer nossos filmes de um jeito muito pequeno e barato”.

Em seu artigo sobre a temática, Lydia Papadimitriou discorre sobre outras possíveis e mais adequadas terminologias:

(…) sendo esses rótulos mais inclusivos que, em vez de se concentrar em dimensões temáticas e estilísticas, colocam ênfase na ruptura dos filmes com as práticas anteriores e seu foco em temas de particular relevância para a sociedade grega contemporânea, sejam eles representados obliquamente, tal como por Lanthimos ou Tsangari, ou mais diretamente, tal como em Tsitos, Koutras, Tzoumerkas ou Papadimitropoulos e filmes de Vogel. (PAPADIMITRIOU, 2014, p.3).

Para a observação das obras que se dará a seguir, serão utilizadas as pesquisas bibliográficas e filmográficas, com aplicação de técnicas de análise fílmica focadas na interpretação sócio-histórica das obras e suas narrativas, abordando principalmente seus temas e conteúdo, além da atmosfera construída ao redor dos personagens. Aproveitando-se em especial de instrumentos documentais, que são “um conjunto de dados factuais exteriores ao filme e susceptíveis de serem utilizados na análise.” (AUMONT e MARIE, 2004, p. 79), serão estudados os casos dos longa-metragens gregos Dente Canino, Alpes (Yorgos Lanthimos, 2011) Attenberg (Athina Rachel Tsangari, 2010) O Garoto que Come Alpiste (Ektoras Lygizos, 2012) e Miss Violence (Alexandros Avranas, 2013).

A obra, seu roteiro e alegorias

Já na primeira sequência de Dente Canino observa-se uma de suas mais marcantes características: os jogos linguísticos. Na tela, uma mão insere uma fita cassete num pequeno gravador que, após alguns segundos, reproduz um áudio intrigante. “As novas palavras do dia são: mar, estrada, excursão, carabina (..)” – seguido por definições que fogem completamente aos seus reais (ou comuns) significados. “Mar, é a cadeira de couro com braços de madeira, como a da sala de estar”, explica a voz. Depois, a câmera vira-se, um a um, para os filhos, que se aglomeram no banheiro da casa enquanto escutam às instruções sonoras.

A criação de um novo dicionário parece ser uma das grandes estratégias utilizadas pelo pai e pela mãe para manter suas “crianças” sob total controle. O pai, figura dominante que arquiteta a maior parte das decisões familiares, é o único que frequenta o exterior da casa, saindo para trabalhar e trazendo suprimentos na volta. Constantemente lembrando os filhos de que só se podem deixar o ambiente de carro, ele arranca todos os rótulos e embalagens possivelmente reveladoras antes de cruzar o portão de entrada. A mãe, sem muitas explicações, adere ao estilo de vida proposto pelo marido, evitando inclusive falar ao telefone ou deixá-lo exposto pela casa. A encenação precisa ser perfeitamente executada a todo o tempo para que nada fuja aos planos do pai: manter a pureza e inocência de seus filhos através de uma educação revolucionária, que não aceita videogames, filmes ou qualquer tipo de “má influência” vista por ele na sociedade de fora.

A dinâmica da observação de um grupo social isolado, estabelecido em torno das decisões tomadas pela figura patriarcal autoritária, não é incomum nas representações do Novíssimo Cinema Grego, estando claramente presente em vários filmes do movimento e demonstrando o quão fortemente os laços familiares dominantes, na política grega, influenciaram esses novos cineastas.

Aos vinte e seis minutos da trama, tem início outra sequência relevante para compreensão da mitologia proposta por Yorgos Lanthimos: o pai, apressado, conversa com um adestrador sobre a possibilidade de levar seu cachorro para casa. “Deixa eu te explicar. Um cão é como argila, nosso trabalho é modelar ele. Um cachorro pode ser dinâmico, agressivo, um lutador, covarde ou carinhoso. Requer trabalho, paciência e atenção. Todo cachorro, o seu cachorro espera que o ensinemos a se comportar. Entende?”, discorre o adestrador.

A sequência, que até chegou a ser vista por parte dos espectadores como super explicativa, descreve perfeitamente a realidade em que somos inseridos enquanto assistimos à obra. A possibilidade de modelar seres humanos, desde pequenos, como se fossem esculturas de argilas, para a criação de um modo de viver completamente novo, era inicialmente o grande objetivo do diretor, que desenvolveu o roteiro após observar muitos de seus amigos casando-se e tendo filhos. Quão manipulados podemos ser por nossos pais? Somos criados para corresponder a sonhos que não são nossos? São algumas das provocações abordadas por Lanthimos.

A alegoria não vê nosso próprio tempo, ou mesmo nosso futuro, como um ‘telos’, mas nos lembra de nossa condição futura, nós, cujos traços fatalmente serão fragmentos entre outros de uma coleção de fósseis culturais disponíveis para leituras alegóricas efetuadas a distância.  (XAVIER, 2005)

Isto posto, é difícil não relacionar a película grega com a já veterana das telas Alegoria da Caverna. Em A República, Platão expõe um extenso diálogo com Sócrates, onde retoma o histórico da Grécia até o momento para discutir como se formaria o modelo político ideal. Em uma das passagens, Sócrates pede para que Glauco imagine uma caverna, onde estão presas diversas pessoas. Estes prisioneiros, que passam seus dias com os rostos virados para a parede interna da caverna, têm sua visão de mundo formada apenas por aquilo que veem projetado por uma sombra que reflete na cavidade. O que aconteceria caso descobrissem a vida exterior? Muitos filmes, nas últimas décadas, criaram suas próprias respostas para a questão, sendo Dente Canino um daqueles que passou sua mensagem com clareza e personalidade, tornando-a de fácil entendimento para os mais diversos públicos. 

Um filme sobre filmes

Fã dos grandes clássicos, o cineasta incorpora em seu roteiro inúmeras referências e propõe seguidamente que se pense sobre cinema enquanto assiste a seu filme. Na narrativa, o pai traz para a casa frequentemente, Christina, mulher que trabalha em sua empresa e recebe uma quantia do patriarca para que realize os desejos sexuais de seu filho mais velho, o único herdeiro homem. Ela, por sua vez, chega e sai da casa vendada, tendo pouca interação com as outras personagens. Em um desses raros momentos, Christina diz à Filha Mais Velha (Angeliki Papoulia) que, caso ela aceite lambê-la, dar-lhe-ia um presente. A irmã então vasculha a bolsa da estrangeira e pede, como recompensa, algumas fitas de vídeo que encontrou. Feita a troca, a filha entra em contato com obras como Tubarão (Jaws, 1975) e Rocky – Um lutador (Rocky, 1977), descobrindo a existência de um novo mundo por meio da tela. É a partir de então que, intrigada e citando compulsivamente falas dos filmes que conheceu, a garota começa a questionar as decisões do casal e buscar uma escapatória. Aqui, o diretor pede que nós, espectadores, vejamos o cinema como janela, fuga e representação, utilizando com maestria a metalinguagem e criando uma bela homenagem ao meio.

Numa das mais desconfortantes cenas de toda a obra, a filha mais velha realiza uma apresentação de dança durante a festa de bodas dos pais. Referenciando de forma caricata a clássica sequência de Flashdance – Em Ritmo de Embalo (Flashdance, 1988), observamos uma crescente de movimentos descoordenados, fortes e por vezes cômicos. Após longos minutos, ela se perde na empolgação de dançar, livre, e é duramente repreendida por sua mãe.

Além de mais uma referência cinematográfica, o trecho serve como exemplificação perfeita de uma importante característica da Greek Weird Wave: a marionetização dos atores. Interpretando papéis que rondam a busca contínua por uma identidade corrompida e somando os roteiros que não necessitam claramente de se conectar ao que está exposto na tela, os atores são encorajados a utilizar da pastichização corporal para elaborar as personalidades que contemplam os indivíduos, criando assim um espetáculo visual deveras característico e que remete às ideias de atuação-dança (mesmo sem música) propostas pelo Teatro do Absurdo europeu.

De fato, a busca do estilo de atuação ser focado na distância do naturalismo faz com que as diferentes e insólitas situações trazidas no filme se coloquem em um meio termo: ao mesmo tempo em que a observação inicial de certas ações dos personagens dentro do filme, como latirem feito cães, dançarem de forma desajeitada, correrem atrás de um avião, etc. traz imagens próximas às comédias e ao pastiche, a mortificação dos sentidos dessas atuações e personagens no contexto narrativo acomete o filme a um aglomerado de situações estranhamente perversas e ameaçadoras. (NARCISO, 2016, p. 37)

Em relação à estética

Lanthimos trabalha o espaço do plano como algo vivo, fator que se deva novamente, talvez, a seu extenso repertório de conhecimento filmográfico. Familiar às propriedades da janela, o cinéfilo mantém os que assistem presos a uma estreita razão de aspecto, deixando, por consequência e propositalmente, partes essenciais fora da tela.  Os poucos personagens têm, com frequência, seus membros decepados pelas barras pretas. Por muitas vezes, não é possível visualizar suas cabeças, torsos ou braços e eles corriqueiramente observam algo que está fora do plano, reforçando sempre a sensação de aprisionamento e de que algo desconhecido e tentador habita próximo, mas não está ao alcance dos olhos.  

Os tons vistos na colorização de Dente Canino são, majoritariamente, pálidos. Azul e amarelo são as cores que compõem a maior parte dos objetos cênicos e peças de figurino, que são simples e estrategicamente posicionadas. O destaque na direção de arte é o relacionamento entre tons de branco e a iluminação: muito utilizada na história da cinematografia para abordar o autoritarismo político, a claridade excessiva permeia toda a casa e cria um desconforto que impede o espectador de olhar para longe. O ambiente amedronta, porém, desperta curiosidade em mesma escala, remetendo um pouco ao trabalho feito, por exemplo, por Idoa Esteban em Peles (Pieles, 2017).

Sobre a finalização

Após atingir sua própria boca com um halter fazendo com que seu dente canino caísse, numa cena sangrenta que contrasta com a palidez anterior, a filha mais velha esconde-se no porta-malas do carro do pai para concretizar seu plano de fuga. Na manhã seguinte, quando ele sai para trabalhar, vê-se em cena apenas o porta-malas fechado, por segundos, antes de subirem os créditos. Enfim, não são obtidas respostas sobre seu paradeiro e Lanthimos explica: “…se você faz a escolha de deixar o filme em aberto para as pessoas, elas podem assisti-lo livremente e com base em sua própria experiência, formação e educação – se você constrói um filme de forma a permiti-los pensar sobre as coisas, e não os forçar a aceitar sua opinião, então o filme pode ser sobre qualquer coisa que essas pessoas estejam interessadas ou preocupadas”.

Semelhanças e diferenças entre filmes pertencentes ao movimento

O caso de Alpes

Também de Yorgos Lanthimos e lançado em 2011, Alpes (Alpeis) acompanha a trajetória da organização de mesmo nome fundada por uma enfermeira, um motorista de ambulância, uma ginasta e seu treinador que se oferecem para tomar o lugar de pessoas recém falecidas, ajudando suas famílias durante os períodos de luto e lucrando a cada nova hora investida nesta atuação.

A obra divide diversas semelhanças com sua antecessora e é possível notar nela também a presença de figuras masculinas extremamente autoritárias, como o treinador e o motorista, que se apoiam em punições severas às falhas e tentativas de fuga das jovens mulheres integrantes do grupo, gerando cenas deveras violentas vindas logo após outras muito mais tranquilas e monótonas; contraste já observado em Dente Canino. Entre os elementos familiares, também se encontram os bruscos cortes de membros das personagens pelas extremidades dos planos, os diálogos metalinguísticos dos protagonistas sobre cinema e seus filmes ou seriados favoritos e o uso de jogos de palavras e alteração de seus significados. Aqui, por exemplo, os nomes das grandes montanhas encontradas na superfície terrestre são designados, um a um, aos protagonistas da narrativa, tornando-se codinomes de relevância para a trama.

Por fim, o uso excêntrico da movimentação corporal mostra-se tão presente na segunda obra de Lanthimos quanto em sua primeira, visto em cenas silenciosas como a dinâmica de mímicas entre a ginasta, o motorista e o treinador ou em sequências embaladas por trilha, como nos bailes frequentados pela enfermeira e um de seus “clientes”. 

Attenberg e a direção feminina

Em Attenberg (2010), de Athina Rachel Tsangari, também fica explícita a importância do uso da dança e da mímica para a expressão nos filmes do Novíssimo Cinema Grego. Na trama, Marina, uma mulher de vinte e três anos que não costuma relacionar-se socialmente, passa seus dias em hospitais com seu pai, o qual aguarda pacientemente pela morte devido a uma condição incurável. Ambos, desesperançosos, usam de seu tempo livre para contemplar a obra do naturalista David Attenborough e acabam, assim, proporcionando ao espectador diversas cenas em que Marina, acompanhada de seu pai ou de Bella (sua única amiga), imitam sons e movimentos dos diversos animais conhecidos através dos documentários assistidos. A garota chega, inclusive, a utilizar desta forma de expressão para libertar-se da dor logo após a morte do pai, numa espécie de cena ritualística.

Se comparado à obra de Lanthimos (que inclusive atua no filme de Tsangari), entretanto, Attenberg apresenta características e técnicas que podem diferir consideravelmente de seus companheiros de escola: tanto a ambientação quanto os planos não são tão claustrofóbicos quanto os de Dente Canino ou Alpes e não chegam a manter o espectador preso a pequenos cômodos a todo tempo, apesar de também estar focado em círculos sociais pequenos. A câmera, ao invés de estática, movimenta-se quase que de forma constante e dinamiza o cotidiano das protagonistas juntamente com a forte presença de trilha sonora, outra característica incomum às obras de 2009 e 2011.

Desfecho satisfatório em Miss Violence

Se em Attenberg é possível observar certa distância da linguagem cinematográfica proposta inicialmente por Yorgos Lanthimos, em Miss Violence (2013) nota-se o completo oposto. O longa-metragem de Alexandros Avranas, igualmente, apresenta uma família comandada por um pai autoritário e bastante violento que prostitui suas filhas em troca de dinheiro assim que as garotas completam onze anos. No filme, são expostos os acontecimentos decorrentes da morte de uma das meninas, que se suicida olhando fixamente para o espectador durante a festa em comemoração ao seu décimo primeiro aniversário.

Apesar de quebrar a quarta parede logo em seus primeiros minutos, Miss Violence apresenta aspectos muito similares àqueles vistos em Dente Canino: tranquilos cafés da manhã em família antecedem incômodas cenas de violência psicológica, física e, principalmente, sexual contra as personagens femininas. Outrossim, os rostos são frequentemente omitidos pela razão de aspecto e o ambiente é sempre restrito a cômodos pequenos e pouco iluminados, dos quais a estranha dinâmica social estabelecida pelo patriarca é ameaçada com a chegada de corpos exteriores, aqui representados pela figura dos assistentes sociais.  O movimento e a dança também são comuns e utilizados majoritariamente pelo pai, na intenção de tornar suas filhas mais “atraentes” aos olhos dos clientes.

Afinal, uma das poucas características da obra de Avranas que se distancia dos filmes de Lanthimos é seu desfecho. Enquanto Dente Canino, por exemplo, termina sem a certeza da concretização da fuga da filha mais velha, Miss Violence usa de sua finalização para esclarecer que a vingança das garotas foi cumprida pela mãe mostrando o corpo ensanguentado do patriarca e o sorriso aliviado de sua primogênita.

O Garoto que Come Alpiste

Por fim, a obra de 2012 dirigida por Ektoras Lygizos parece apresentar características bastante diferentes de suas companheiras de movimento citadas acima. Apesar de ainda apoiar-se em tons opacos e na falta de trilha sonora, O Garoto que Come Alpiste não retrata nenhuma fuga da realidade ou utopia criada num pequeno ambiente familiar, mas sim os próprios e brutos efeitos da crise econômica grega na classe média – baixa do país, criando uma narrativa esteticamente realista acerca da ascensão da fome, do desemprego e distanciando-se do que fora visto até então no Novíssimo Cinema Grego.

Acompanhando a trajetória do protagonista de 22 anos vivido por Yiannis Papadopoulos, o espectador fica frente a frente ao desespero do jovem que, sem muitas opções alimenta-se de alpiste, frutas podres e até mesmo do próprio sêmen para conseguir forças. Substituindo os planos estáticos, por exemplo, o filme usa muito da câmera tremida e na mão para colocar aquele que o assiste como um pássaro no ombro do garoto, chegando a remeter às regras propostas pelo Dogma 95, enquanto vê-se sua busca humana por emprego, comida, amores etc. 

Considerações finais

Analisando a formação do Novíssimo Cinema Grego durante a década de 2010, foi possível atingir os objetivos estipulados inicialmente e compreender como o estabelecimento de um longo regime autoritário dominante juntamente à explosão da crise econômica mundial iniciada em território norte-americano no ano de 2007 influenciaram o desenvolvimento de novas e diferentes produções balcânicas que, por meio de seus exageros corporais retrataram o medo vivido pela população ao não saber o que virá a seguir num contexto de fome e violência e que, através de premissas excêntricas, deixaram cada espectador livre para interpretação daquilo que viam em cena, buscando instigar mais sensações do que fornecer possíveis explicações.

Também observou-se a forma como as obras deste movimento, ainda que apresentando por vezes diferenças estéticas, tinham muito em comum não só entre si mas também assemelhavam-se a algumas das formas de representação propostas pelo Teatro do Absurdo, principalmente em relação à abordagem feita sobre o mesmo medo vivido pelas nações europeias após passagens traumáticas, revisitando em 2010 uma reflexão acerca da condição humana angustiante e perda da essência individual característica do pós-guerra na década de 1950.

Não obstante, ainda seria válido comentar brevemente o crescimento do Novíssimo Cinema para fora das fronteiras da Grécia até Hollywood que, contando com a figura de Yorgos Lanthimos na direção, a influência de distribuidoras norte-americanas e grandes nomes no elenco, pôde levar atributos como as dinâmicas utópicas e minimalistas de Dente Canino e Alpes para obras como O Lagosta e A Favorita que, não limitadas a recursos escassos, potencializaram a escala de produção e ajudaram a colocar as qualidades provenientes da cinematografia grega incomum ainda mais em foco.

Ademais, foi possível atender aos objetivos estipulados inicialmente neste projeto, tendo a análise fílmica de cunho interpretativo sócio-histórico e os textos teatrais já citados como base para estudo do gênero cinematográfico e suas relações com a política internacional na contemporaneidade.

Referências bibliográficas

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FILMOGRAFIA

ALPES [filme]. Yorgos Lanthimos / Victoria Bousis. Grecia: 2011.
ATTENBERG [filme]. Athina Rachel Tsangari / Christos V. Konstantakopoulos. Grécia: 2010.
DENTE Canino [filme]. Yorgos Lanthimos /Yorgos Tsourgiannis. Grécia: 2009.
O GAROTO Que Come Alpiste [filme]. Ektoras Lygizos / Konstantinos Kontovrakis. Grécia: 2012.
MISS Violence [filme]. Alexandros Avranas / Christos V. Konstantakopoulos. Grécia: 2013.