Por Juliano Parreira*
“Sabe o que é o melhor do cinema? É que no cinema tu pode fazer o que tu quer”. É assim que Cláudio Assis encara “O Baixio das Bestas”, seu segundo longa-metragem datado de 2006 e que aparentemente não agrada ao estômago de muitos.
O filme se passa na Zona da Mata nordestina, mais precisamente em Pernambuco. Auxiliadora é filha/neta de Heitor, um velho conservador que ganha a vida mostrando o corpo da menina aos caminhoneiros e desocupados que freqüentam um posto de beira de rodovia. Cícero é um desses espectadores. Rapaz de classe média alta que estuda em Recife e passa os finais de semana na casa da mãe, aproveitando para encontrar os amigos em um antigo cinema abandonado do povoado. É no meio desse conflito humano, de humilhação e escárnio descarados que o enredo se desenvolve e nos joga na cara toda a situação de subdesenvolvimento econômico e cultural do país.
O preconceito, o machismo, a humilhação, a hipocrisia. Resquícios de uma sociedade arcaica e miserável. Cícero, Everaldo e seus amigos têm como diversão o sexo, a violência com as mulheres e a preponderância de uma classe dominante. Nesse mesmo enredo encontramos Heitor, velho que abusa sexualmente da neta e exige que esta mantenha uma vida normal – absurdos tão normais que fazem das leis e justiça meros coadjuvantes. Sociedade patriarcal. Latifúndios. Típico coronelismo do início do século passado e resistente até hoje de forma maquiada.
A cana-de-açúcar tem lugar de destaque no filme. Presente na alimentação do povo ela aparece inúmeras vezes em cena, hora como objeto, hora como personagem. O corte, a colheita, o transporte e a queimada; o transporte e as condições subumanas dos trabalhadores. O desespero de um povo esquecido, que sem terra para plantar se vê obrigado a trabalhar nas propriedades particulares dos grandes “senhores”.
Tudo é jogado na nossa cara, sem pudor ou censura. “Baixio das Bestas” não tem a proposta de ser mais um filme de entretenimento. Além do tema provocador, sua linguagem está longe da chamada linguagem clássica hollywoodiana. Planos longos, fixos, leves movimentos de câmera e câmera na mão. O plano-seqüência incomoda, demora e convida o espectador a refletir. Influência buscada na década de 60, com o Cinema Novo brasileiro. Proposta de uma revolução estética e ideológica caminhando juntas.
Também é importante citar a cena em que Everaldo (Matheus Nachtergaele) olha para a câmera. Ele quebra a chamada “quarta parede” do cinema, olhando diretamente nos olhos do espectador e dizendo: “Sabe o que é o melhor do cinema? É que no cinema tu pode fazer o que tu quer”. Essa frase representa tanto o imaginário cinematográfico como o cotidiano desses personagens, que fazem e desfazem suas vontades em meio aquela sociedade. Ironia do diretor com o público passivo e o cinema digestivo.
Também é válido citar a impressionante fotografia de Walter Carvalho. Destaque para a cena em que Cícero (Caio Blat) estupra Auxiliadora: noturna que aparenta ser iluminada apenas com os faróis de uma caminhonete. Outro fator de destaque é o som. Camadas sonoras explorando o sistema Dolby 5.1 e ainda a utilização de espaço-off. Em muitas cenas os ruídos encobrem os diálogos dos personagens dando uma noção de profundidade sonora ao espectador, revelando uma mixagem extremamente bem realizada.
Como acontece em Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996), Árido Movie (Lírio Ferreira, 2006), e Amarelo Manga (longa anterior ao Baixio das Bestas de Cláudio Assis), a cultura pernambucana é altamente valorizada em Baixio das Bestas. O maracatu rural passeando pelas ruas, com pessoas simples e roupas artesanais; a música feita pelo baterista da banda Nação Zumbi, Pupillo; e a paisagem de um interior ensolarado. Patriotismo de estado e denúncia num mesmo filme.
Sexo explícito, nudez, violência, drogas, prostituição, provérbios populares, sotaques, estupro, humilhação, hipocrisia, sofrimento, pobreza, miséria, exploração, revolta: esse é “Baixio das Bestas”, um pouco mais que estômago e sexo, como colocado em Amarelo Manga. Baixio é estômago, sexo e denúncia.
*Juliano Parreira é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).