O milagre de Apocalipse

Há tantos filmes nos dias de hoje. E isso é uma afirmação banal. Você sabe que há tantos filmes. É só ligar a televisão. Não-sei-o-que Movie, Tela tra-la-la… É a hora de passar um filme, acaba o filme e então, em outro canal começa outro (às vezes, até no mesmo). Há canais em que somente passam filmes … Isso não é novidade, é um fato de conhecimento comum, apesar de talvez não se conhecer por exemplo há quanto tempo tem-se isso. E, mesmo que esses canais não sejam de consumo totalmente generalizado, os filmes também proliferam em outros canais. De qualquer forma, não quero discutir a televisão, nem mesmo o êxodo das salas de cinema. É sobre o produto em si: o filme. E, aliás, é sobre um filme específico também.

A questão é que com tantos e tantos filmes, o início do filme, sua abertura, tornou-se um verdadeiro divisor de águas. Um tanto de água troca de canal, desliga a TV, até sai do cinema (é bem mais difícil, mas acontece…). Um tanto outro aceita ver o filme até o final… Ou até mais pra frente. É claro que sempre houve espectadores desistentes! Mas, hoje em dia, é muito mais fácil você deixar pra lá um filme porque há tantos outros “logo ali”. E se não há filmes, há séries, há shows…

Assim, a escolha do modo como se inicia um filme é de grande responsabilidade. Coloca-se o crédito antes? Coloca-se depois?! E o nome do filme, quando aparece e como?!…Tudo isto já tem que entregar muito sobre a identidade do filme! O espectador já diz entre outras coisas: “ahn isso é um filme policial”, ” humm, um filme infantil”… É bom que o filme seja tão rotulado assim?! Particularmente, não é o que eu acredito, mas também não é sobre isso que vou discutir aqui. Aliás, este texto não é como esses filmes. Ele não indicou logo de início sobre o que exatamente versará… Eu não o rotulei para você. Busco aqui leitores que estejam interessados em cavar. Cavar para o quê?! Não sei, cavar traz um monte de coisas e possibilidades novas. Nem sempre você sabe o que irá encontrar. Você em geral até busca alguma coisa, mas, às vezes, só está brincando com a terra também… Digressões totalmente à parte, porque também não sou poetisa ou romancista, e que sigamos para frente.

Sendo assim, pensando na importância de uma boa abertura (uma boa abertura para um público alvo que se assemelha a mim porque não posso falar sobre todos os olhares da nossa geração e outras!) é impossível não pensar num filme que marcou época por diversos fatores, entre eles o trabalho de som.

Apocalipse Now (1979) é uma obra prima inspirada no livro “Heart of Darkness” de Joseph Conrad e foi dirigido com primor por nada mais, nada menos que Francis Ford Coppola. Tanto no livro como no filme, a trama tem como personagem principal o Capitão Willard, que tem como missão matar o Coronel Kurtz. O Coronel está embrenhado numa terra estrangeira ao Capitão – no livro, Congo e no filme, Camboja. As terras diferem, mas a missão é a mesma, e realizá-la traz tanto em uma obra como na outra a descoberta da insanidade da Guerra, da dor e da queda do humanitarismo dentro e fora desta.

De qualquer forma, Capitão Willard precisa achar e assassinar o Coronel Kurtz, em meio a Guerra do Vietnã e em meio à selva de Camboja. (Tudo bem que fora tudo filmado nas Filipinas, mas isso é apenas uma curiosidade). O caminho seguido é um rio. E o filme segue praticamente o que o Capitão encontra em seu caminho e também sua pesquisa sobre o Coronel, quem deve exterminar.

É uma trama muito interessante. No entanto, o que desejo de fato discutir aqui de forma alguma abarca todo o filme. De certa forma, o seu todo está incluso, mas o que gostaria de esmiuçar mais é a abertura de Apocalipse Now. Especificamente, restrito a análise a partir do primeiro plano, o da floresta, até as primeiras falas – sem discutir quando e como houve o aparecimento do título do filme.

Tudo bem, já adianto que não será uma descrição minuciosa de cada plano, ou uma listagem deles. Acredite, eu fiz a relação de planos, de sobreposições duplas, triplas e tudo mais. Foi trabalhoso para tão pouco tempo de abertura, mas essa proliferação de imagens e sobreposições condiz com o filme, com a personagem, com seus conflitos. Seja como for, não lhe importa cada plano (veja o filme), mas deve importar as relações que são estabelecidas devido esta ordem ou desordem de planos, e como a abertura simplesmente fisga o peixe-espectador. Mesmo que apenas parte dessas relações eu, que lhes escrevo, só poderia as identificar por uma listagem cansativa dos planos. Devido a isto a realizei, mas não lhe cansaria com a exposição dessa cansativa tarefa.

Enfim, o primeiro plano do filme é um plano parado. E ele fica parado por aproximadamente 1 minuto. A partir somente disso, poder-se-ia apressadamente concluir que não é algo que desperte muito a atenção do espectador. Ainda mais, quando se coloca em quadro apenas uma floresta, o céu azul, e uma fumaça amarelada/laranjada que aparece – e, de início, não é nada intensa. No entanto, não só passa um helicóptero, mas como o som das hélices é escutado desde o começo, mesmo quando sua imagem não está presente. E o som, para quem assiste com o sistema de som adequado, simplesmente nos circunda – o som nos entrega uma espacialização. Juntamente a esses fatores, uma música começa, um pouco depois da imagem… A fumaça realmente se intensifica. E então, o golpe de mestre: depois de um minuto de enquadramento fixo e totalmente aceitável pela criação não só da atmosfera, mas também da expectativa, o bombardeamento das árvores acontece quase concomitantemente com a voz de Morrison “This is the end, beautiful friend.”. Acho que se pode dizer que não foi para fazer um favor ao conhecido e à banda The Doors, que Coppola aceitou a música The End, na abertura de seu filme… Mesmo que Morrison e o diretor já tenham cursado a mesma faculdade (Universidade da Califórnia) e se conhecido.

This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end

Of our elaborate plans, the end
Of everything that stands, the end
No safety or surprise, the end
Ill never look into your eyes…again

Can you picture what will be
So limitless and free
Desperately in need…of some…strangers hand
In a…desperate land

Lost in a roman…wilderness of pain
And all the children are insane
All the children are insane
Waiting for the summer rain, yeah

There´s danger on the edge of town
Ride the kings highway, baby
Weird scenes inside the gold mine
Ride the highway west, baby

Ride the snake, ride the snake
To the lake, the ancient lake, baby
The snake is long, seven miles
Ride the snake…he´s old, and his skin is cold

The west is the best
The west is the best
Get here, and well do the rest

The blue bus is calling us
The blue bus is calling us
Driver, where you taken us

The killer awoke before dawn, he put his boots on
He took a face from the ancient gallery
And he walked on down the hall
He went into the room where his sister lived, and…then he
Paid a visit to his brother, and then he
He walked on down the hall, and
And he came to a door…and he looked inside
Father, yes son, I want to kill you
Mother…i want to…fuck you

C´mon baby, take a chance with us
C´mon baby, take a chance with us
C´mon baby, take a chance with us
And meet me at the back of the blue bus
Doing a blue rock
On a blue bus
Doing a blue rock
C´mon, yeah

Kill, kill, kill, kill, kill, kill

This is the end
Beautiful friend
This is the end
My only friend, the end

It hurts to set you free
But you´ll never follow me
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die

This is the end”

A montagem: a escolha do plano , da ordem dos fatores é no mínimo, sublime. Soube-se o exato momento de iniciar a música, associar as primeiras fortes palavras “This is the end” com a primeira real “ação” ou “algo” do filme (que é um bombardeamento, não num exército aparente, mas numa floresta… O que também pode ajudar na atmosfera de insanidade do filme e da abertura). Acho que aqui é necessário dar outros nomes para os merecidos aplausos, pois não é de responsabilidade do diretor montar ou trabalhar o som, e neste filme, Walter Murch também é uma das estrelas. Ele se responsabilizou pelas duas áreas no filme, juntamente com outras pessoas. No som, Mark Berger, Richard Beggs, Nathan Boxer. Na montagem, Richard Marks, Gerald B Greenberg, Lisa Fruchtman.

Mas, de qualquer forma… Em pouco mais de um minuto o espectador já está arrepiado… A fumaça já deixara um tom místico, assim como o próprio nome do filme – é o Apocalipse… O fogo também fora quase que musical. Só então, a câmera se move para a direita, seguindo o caminho do festival de cores quentes que se alastram, deixando-nos ver também helicópteros e a fumaça. Morrison continua a cantar e o instrumental continua sendo, como a banda, meio psicodélico… Nada mal mesmo escolher The Doors para um filme que fala de loucura-sã e de sanidade louca entre outros temas.

A música, é claro, continua. A personagem, logo, é introduzida – uma face de cabeça pra baixo, olhos azuis. Mas, não se perde a visão (floresta, fumaça, fogo, helicópteros). O personagem e a floresta bombardeada estão sobrepostos. A sobreposição aqui é de grande importância. Seria perfeitamente aceitável se pensar que aquele caos esteja acontecendo ao mesmo tempo em que a personagem está deitada em outro local? Até que seria… Mas o caos imagético aliado muito bem ao trabalho do som se liga muito mais fortemente à questão da memória (e é o que a própria primeira fala do filme também já expõe). O rosto do Capitão Willard ora fica mais forte que a imagem do caos e ora perde a força para o fogo ou para a fumaça. Essa luta de imagens pode ser lida como, além de outros possíveis aspectos, o confronto do personagem com sua memória (ficar no presente versus não se desvencilhar do passado!). Um índice de presente que também funciona como símbolo dos “dias de hoje” do Capitão, é o ventilador. O ventilador (presente), o caos (passado) : a face do Capitão sobrepõe-se aos dois muitas vezes e ora perde para um e outro por alguns instantes. Por várias vezes, o fogo queima forte do mesmo lado do quadro em que o Capitão Willard se encontra – não é uma coincidência. Usa-se não apenas a própria sobreposição em si para o retrato do conflito, como também uma imagem que é forte por si mesma – o fogo, e o fogo na cabeça do Capitão. Os tempos estão tão entrelaçados, a memória deste personagem o traga tanto que quando este vai tragar o cigarro é a floresta que se enche de fumaça novamente: o famoso agente laranja, usado no Vietnã pelo governo Norte Americano. Juntamente a isto e muito mais identificável, é a associação do ventilador (índice do presente, como já foi dito) com as hélices dos helicópteros (fantasma do ontem que se encontram na abertura também). O som destes é presente na maioria do tempo e torna-se bem mais forte num momento em que o ventilador se sobrepõe à imagem do caos, e também mais a frente, quando o ventilador se sobrepõe com a face do Capitão. Tudo se associa em sua mente e ele não o faz por consciência, é feito. O ventilador é um helicóptero, o presente é uma janela para o passado… O ventilador o decepa imageticamente… A confusão é generalizada, o que não significa de modo algum que não tenha sido pensada e construída tal como um arquiteto perfeccionista, é claro.

Para se somar à construção do conflito dessa personagem tem-se a descrição, também em sobreposição, breve de alguns pertences dela: vê-se fotos na escrivaninha, bebidas (é claro!), e uma arma… Está aí um retrato de um problemático, ou seria de qualquer um que sobrevivera a Guerra do Vietnã? Seja como for, após tantas imagens simultâneas tem-se um Capitão, que escuta e vê a Guerra, seguindo até a janela do seu quarto (é uma subjetiva: vemos que ele não está na Guerra). Tem-se a visão dele da janela (subjetiva novamente) e depois, ele olhando através dela. O Capitão Willard diz nesse momento: “Saigon. Shit. I´m still only in Saigon”. É claro que ele não está apenas em Saigon, é uma metáfora que já foi exposta imagética e sonoramente, mas que se repõe fortemente na fala… O seu corpo está em outro lugar, e sua mente está presa na Guerra, e é disso que a abertura fala além do próprio caos do conflito armado. A abertura, pois, entrega ao espectador a questão da mente e dos caminhos retorcidos da memória além de, é claro, entregar também a questão dos conflitos pessoais em um conflito político e armado, dos diversos níveis e tipos de loucuras e obviamente, da falência do humanitarismo (que é discutido mais a frente no filme).

As sobreposições de imagens foram de tamanha importância em tal retrato inicial do filme. Mas, tudo estaria perdido se não fosse a escolha da música e a confusão de ruídos também na mente da personagem. A música “The End” dá o pontapé inicial para o choque benéfico do espectador. E, acredite, quem conhece a música (talvez nem precise conhecer) é invadido sem desculpa por um “Noossaa!” assim que escutamos Morrison. Tudo se casa… O trabalho de som obviamente vai muito além da escolha da música. Quando ela começa, quando ela aumenta, e tudo o mais é bem pensado. Mas, muito mais do que isso, o som das hélices é realmente de valor vital para a expectativa do início, para a ligação de dois tempos (Capitão deitado e Guerra), e para a demonstração maravilhosa do tormento mental de Willard (o ventilador o ameaça… Algo tão banal).

São poucos filmes que, em pouquíssimo tempo, logo nos primeiros instantes, nos dão tanto do filme, sem enquadrá-lo perfeitamente num gênero, sem diminuí-lo. Dizer que Apocalipse Now é um filme de Guerra é quase um pecado. Apocalipse Now é um filme inteligente, e como outros filmes inteligentes tudo é bem pensado e construído (não só a abertura, é claro) e a rotulação quadrada do gênero não lhe cabe de maneira alguma. São poucos os filmes que à primeira vista já dão um cheque mate no espectador, colocando-o preso em sua cadeira. É um prazer enorme escrever sobre e ver e rever e falar abertamente de um trabalho que simplesmente não se vê brecha para poder falar um pouquinho mal… E, é bem sabido, que gostamos de cutucar um pouquinho.

Suzana Altero é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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