Obratura na graça

*por Marco Túlio Ulhôa

Como começar um texto sobre o filme Ex-Isto (2010) sem reiterar a pertinente pergunta: “E se René Descartes tivesse vindo ao Brasil com Maurício de Nassau?” Bem! Talvez seja melhor considerar a des-importância desta questão. Se tal ato fosse consumado, não teria a mesma potência da hipótese. Leminski provou isso. E Cao Guimarães veio na esteira, recriando, livremente, à altura. Toda a riqueza e magnitude da prosa poética de Leminski encontra semelhanças e uma espécie de contra-resposta na profusão entre o real e o ficcional, presentes na construção de Ex-Isto. Nesse sentido, tudo se dilui e o cinema nacional ganha mais um respiro, desses esporádicos, que às vezes o poupa e o agracia, em meio ao marasmo e a falta de inventividade no trato com as imagens.

E que prazer adentrar a sala escura e assistir a lapidação da pérola tortuosa. Em Ex-Isto, o cineasta encontra o artista-plástico e o documentarista. Obra na graça da des-necessecidade da anunciação de gêneros. O peso estético e filosófico do lirismo das palavras, a potência da mise-en-scène, e a pertinência dos planos – algo fundamental em Cao Guimarães – confluem nessa obra que adentra a mata espessa, não só graças à liberdade da des-roteirização do edifício fílmico, como também pela imersão no terreno barroso que o diretor se afunda. Abre brechas e submerge, corajosamente, como diversos outros criadores que se perderam na imensidão, dolorosa e prazerosa, dos destemidos em gozar. Anúncio de uma nova fase e exemplo vigoroso de toda uma trajetória que se mantém viva em pleno 2014, com O Homem das Multidões.

Como já advertia José Lezama Lima: “só o difícil é estimulante”. E é por demais amável a riqueza desses contemporâneos despudorados em relação ao anacronismo e à morte da História com “H” maiúsculo. Porque, meu caro, aqui nos trópicos ninguém vive em tempo nenhum! Adentrar o multiculturalismo, a desconstrução da razão, o sincretismo e toda a imensidão que vem atrelada à esse âmbito conceitual, é ter coragem de ser taxado de presunçoso, porque poesia e lirismo doem em alguns ouvidos alheios. É também ter coragem de, às vezes, ser até ridicularizado. Voltaire sabe bem do que estou falando, mesmo tendo habitado o melhor dos mundos. Mas tudo bem! Sem rancores ou ressentimentos. Voltemos à Descartes no Brasil e ao derretimento do totem de gelo no calor tropical.

Antes de encerrar o texto e deixar para trás milhões de assuntos e discussões que Ex-Isto possibilitaria abordar, faço apenas uma pequena menção ao perspectivismo e à potência deste termo dentro da obra. Belos planos como os da aranha e da lesma já falam por si só. É maravilhosa a força dessas imagens que contém os ecos grotescos e a estranheza de uma natureza que caga a des-simetria. Porém, o perspectivismo perpassa por tudo em se tratando desse filme. Vai desde a ideia do descentramento que desestabiliza o etos clássico, passando por questões mais corriqueiras, como a presença marcante dos instrumentos ópticos e do olho do peixe, até chegar ao que, de fato, é a grande sacada do filme de Cao Guimarães: o perspectivismo que sai da ideia filosófica para encarnar no artifício do próprio filme.

Em Ex-Isto, a câmera é tomada como o olho que desdobra uma força narrativa e estética da perspectiva fílmica. Esse encontro do traço conceitual do projeto de Leminski com a narrativa de Cao Guimarães, consolida a pertinência de Ex-Isto em fazer a linguagem cinematográfica coincidir com a própria desconstrução do método. É daí que vem da coerência entre o discurso e a linguagem, diante da concretização de um filme anti-cartesiano. Como bem ressaltara o próprio Paulo Leminski, ao dizer que o seu livro Catatau “é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor… emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico”, é esta “lógica do fracasso”, anunciada por Leminski, algo de próprio e fundamental da obra de arte barroca. É na grandeza de seu aspecto conceitual que sobrevive o apelo des-mercadologico, intrínseco a obras dessa natureza, sob a qual a inoperância é mais do que um dado, mas um meio de ser. Não porque se queira. Mas porque, no fundo, é algo que tende a ser assim. Um apelo íntimo da expressão americana. Por si só, exemplo do fracasso da necessidade de pensar para existir.

* Marco Túlio Ulhôa é mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa de Estudos de Cinema e Audiovisual. Especialista em produção e crítica cultura. Diretor de televisão e pesquisador da relação entre cinema e filosofia. 

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