Parte da sociedade como um todo

Cercado – 14’04”, 2009, São Carlos – Brasil

Andando certo dia numa reserva do cerrado, me deparei com a seguinte questão: qual era a verdadeira função daquelas cercas? Afinal de contas aquelas fronteiras protegiam a fauna e flora da expansão agrícola e urbana ou limitavam o espaço de evolução daquele bioma. Quem éramos nós para dizer onde aquela biodiversidade poderia ou não estar? Pensei pessoas presas atrás das grades… era a mesma coisa não? Mas o que o cerrado havia feito para ir parar de atrás das cercas? Mas melhor aqui dentro que lá fora! Isso me cheirou assistencialista, resolvi terminar meu passeio, pois o sol já estava afetando meu senso crítico. Cercado de dúvidas, decidi fazer um documentário: Cercado

A verdade é que decidi pelo nome depois que o processo já estava em percurso, mas a ideia realmente se originou de um passeio.

O Cerrado sempre me fascinou. Por sua estética e por nossa negligencia. Primo “pobre” das savanas africanas, o bioma brasileiro não agrupa grandes mamíferos, vistosos, exóticos e agressivos – pratos cheios para a curiosidade e entretenimento humano. Não está, por isso, nas lentes dos National Geografics e Discovery Channels. O mirrado lobo-guará e o rechonchudo Tamanduá Bandeira parecem não ter passado na seleção de atores do star system dos anais cinematográficos ambientais ou simplesmente não dão a audiência aos canais documentais.

Disputando a atenção entre outros dois concorrentes de peso, o Pantanal e a Floresta Amazônica, o Cerrado também é esquecido pela própria sociedade brasileira.

Por esses motivos, encontrei no Cerrado um problema universal e de interesse pessoal. Como o Bioma com maior biodiversidade do mundo poderia estar tão fora de foco? A resposta veio com outra pergunta, feita por algumas pessoas quando eu contei do meu interesse em fazer um documentário com esse tema: Mas o que você vai documentar num lugar tão feio? Não tem nada lá!

A resposta não estava no objeto e sim na nossa percepção sobre ele. Percebi que a própria visão sobre o problema ambiental tinha um pequeno desvio causado pela luz das passarelas e das vitrines.

A questão é que vemos aquilo que a luz reflete. E a luz reflete apenas aquilo que está na superfície. E a textura do cerrado é áspera, dura, seca, rugosa… a caótica, a refração daqui não reflete aquilo que queremos ver como no espelho liso. Mas acredito nos versos que li em uma pequena placa em Pirenópolis, Goiais: “Nem tudo que é torto é errado. Vide as pernas tortas de Garrincha e as árvores do cerrado”. Era preciso, portanto confiar em outros tipos de percepção, ultrapassando de vez a limitação histórica de São Thomé – que só acreditava vendo – herdada por todos nós.

Para fazer o vídeo precisava buscar um novo olhar sobre aquela vegetação. Um novo olhar não só no sentido da visão, mas na própria forma de enxergar a natureza no fazer documentário. Queria evitar o ativismo e o sensacionalismo presente nos dados estatísticos e nas previsões catastróficas evidenciadas na maioria dos filmes ambientais. Queria também evitar uma abordagem cientifica biológica, fria, teórica e que expressasse o cerrado em números. Não que ache esses focos desnecessários ou errados, mas procurava um equilíbrio diferente para descrever meu objeto, explorando as sensações obtidas através do olhar e que as próprias imagens fossem a justificativa material e numérica dos mais céticos.

Porque a vida está ali, escondida talvez a nossos olhos fechados, mas está ali. Tentei evidenciar essa vida e deixar o cerrado contar ele mesmo, através da nossa transcrição com imagens e sons.

O processo do documentário começou no primeiro semestre de 2008. A ideia original era realizar atividades com diferentes faixas etárias, classes sociais e profissionais extraindo as impressões individuais-coletivas. Uma das ideias era trazer deficientes visuais para o cerrado e realizar atividades que evidenciassem os sons do ambiente e registrar a sensibilidade daqueles que não poderiam ver o cerrado, mas ouvi-lo de sua forma mais essencial. Outra atividade proposta seria a de levar crianças até o local e fazer dinâmicas que explorassem o olhar inocente da infância. A última proposta inicial era levar idosos e sentir sua interação, brincando com o sentimento nostálgico da natureza, contrapondo com o sentimento de culpa pela herança transpassada às novas gerações.

Dessas três propostas sonoras, a única realizada foi a última, graças ao apoio do Trilha da Natureza, grupo responsável pelas visitas que visam à educação ambiental na UFSCar.

As outras duas propostas caíram por problemas de produção e financiamento. Chegamos a realizar uma entrevista com um grupo de deficientes visuais e realizamos uma atividade muito gratificante com alunos de uma escola pública de São Carlos onde selecionamos alguns alunos que se mostraram muito perceptivos, mas novamente não tivemos recursos para continuar.

Uma ideia proposta e realizada foi a interação da própria equipe no cerrado. Realizamos duas visitas (ambas retratadas na montagem final), uma pela noite e outra na madrugada e manhã seguinte. A equipe era formada por mim, Juliano Parreira, Suzana A. Bispo e Luiz Gustavo B. Palma. O objetivo da atividade era que cada um desenvolve-se um olhar, buscando aquilo que mais impressionasse dentro das várias oportunidades. A bagagem estética também influenciou muito na feitura dos planos. No começo todos estavam tímidos, perdidos, como que em um sentimento de não pertencimento ao local estranho à maioria da equipe. Com o passar das horas, principalmente na atividade pela manhã, cada um encontrara seu caminho e sua busca dentro do local, percorrendo a vegetação, descobrindo novos espaços, desvendando novos olhares. O acaso foi responsável pelo que seria o alicerce da continuidade da produção.

Aqui devo um agradecimento especial a toda a equipe, mas principalmente ao acaso e ao insite do Juliano que teve a brilhante ideia de deixar a câmera de som destampada enquanto registrava o som. O resultado foi a sequência dos créditos iniciais, o que denominei depois a “câmera bicho”. A sequência é uma câmera granulada, desfocada, tremida, violenta, caótica e confusa. Não sabemos onde estamos. Com o tempo vamos tendo uma referência de galhos, folhas, o ambiente escuro começa clarear. Um olhar de um passarinho, de um inseto ou de um tatu, ou simplesmente uma câmera destampada com muito zoom no autofoco. Sem referências, começamos a propor um novo olhar para o vídeo, uma nova forma de ver a natureza, não através do exótico grandioso, mas dos detalhes minuciosos.

Depois dessa atividade, a equipe se desintegrou. A falta de planejamento foi um dos motivos, juntamente com a inexperiência minha de motivar a equipe para o projeto. Sabia ao mesmo tempo da dificuldade que seria de fazer um documentário a longo prazo sem pesquisa concreta, mas tinha consciência da onde queria chegar e como. Com essa fé continuei o projeto praticamente sozinho na parte de captação de imagens. Praticamente, digo, porque recebi muita ajuda. Percebi uma nova forma de montar uma equipe, eventual e ocasional. Fui viajando, aproveitando os destinos que teriam o cerrado como ambiência para continuar a documentação. Apesar do foco principal ser a vegetação da UFSCar, resolvi expandir o alcance das imagens.

Nas férias, viajando com meus pais a Minas Gerais, desviamos um pouco a rota das cidades históricas para o Parque Nacional da Serra da Canastra. Lá registrei lindas imagens e tive a oportunidade visitar novamente a reserva gigantesca entrecortada por estradinhas de terra e suculentas cachoeiras. Foi uma experiência divertida ter que fazer meus pais estacionarem e esperarem enquanto eu refazia um plano de uma pedra ou de uma planta seca. Os planos gerais do começo e algum dos planos em detalhe ao longo do vídeo foram aí realizados.

Em outubro de 2008, fui a São Thomé das Letras com minha prima Amanda e lá realizei mais algumas gravações. As imagens finais do Buda esculpido pelo vento e dos planos de Deus, o melhor fotografo do mundo, iluminando a vegetação desde o céu (segundo Matheus Cury, ao ver as imagens) só poderiam mesmo vir daquele lugar mágico e sobrenatural. Preciso agradecer também ao Elias e a Patrícia, moradores da cidade e amigos da minha prima que criaram a ONG Brilho de Luz responsável pela preservação do Parque Municipal Antonio Rosa, uma das poucas montanhas remanescentes que as empreiteiras italianas da cidade ainda não conseguiram extrair até o desaparecimento total. Minas Gerais segue os mesmos erros do passado evidenciados nas cidades cenários/turísticas ou os municípios fantasmas decadentes, destruindo o meio ambiente e entregando as riquezas a investidores estrangeiros. Cachoeiras e grutas históricas já desapareceram devido à extração.

Comecei a editar o material no final do ano de 2008. Mais ainda faltavam conexões entre o som e as imagens. Vendo o material e os vácuos, percebi o que faltava, percebi que precisava de mais conteúdo sonoro e sabia o que deveria buscar dali para frente. Pela primeira vez no projeto realizei um roteiro do que precisaria. Nesse intervalo o projeto ficou um pouco de lado, quando viajei para o Amazonas pelo Projeto Rondon e realizei o Janela do Madeira (ver artigo Projeto Rondon: Viajem e Sonho).

No começo de 2009, resolvi retomar o Cercado e participei de uma atividade da Trilha da Natureza em que acampamos durante dois dias no cerrado da UFSCar. Ali nas atividades, colhi vários depoimentos e imagens. Foi através das dinâmicas de Andre e Juliano, pós-graduandos em biologia, que consegui o conteúdo verbal que faltava na montagem. As falas sobre a mudança do olhar, mudança de perspectiva e mudança no perceber cerrado foram colocações perfeitas ao conteúdo conceitual que eu buscava. Antes disso cogitava até realizar eu mesmo poemas abstratos ou uma voz over autoral, duas possibilidades que não me agradavam, mas que me pareciam ser a única saída. O acaso e a sorte me presentearam com esse sensível material sonoro e sai satisfeito da atividade.

Voltei a editar o material. Tudo se encaixava. Um resultado que imaginara no começo, mas muito melhor que eu previ. Terminei o primeiro corte em julho de 2009 e fui viajar para Brasília para passar as férias. Na capital federal encontrei um novo cerrado, um cerrado muito mais antigo e consolidado. Viajamos para Pirenopolís em Goiais e realizei com Leila Lobato mais imagens magníficas da fauna e flora. Com o vídeo terminado, eu sabia que imagens poderiam entrar e onde. Esse processo de pós-gravação foi maravilhoso para o resultado final, pois eu sabia em que partes a montagem precisava de mais força, de mais velocidade, de mais variedade. Com a montagem na cabeça reproduzíamos imagens chaves, com enquadramentos pensados e com destino certo. Por ter uma montagem muito minuciosa com vários planos picotados e rápidos, podia acrescentar um grande conteúdo entre o material já realizado.

Voltando, tratei as imagens com a ajuda do Matheus Cury e o som com ajuda do Juliano Parreira e do Felipe Passarini (que já me havia ajudado na gravação do som em estúdio). Acrescentei a montagem e finalizamos o vídeo em Agosto de 2009.

A trilha sonora foi gentilmente cedida pelo Luiz e a Valéria do Grupo Anima.

Confesso que mesmo depois de terminado esse curta metragem, a pergunta inicial persiste. Apesar de ter uma esperança quase cega dentro de mim, outra parte, talvez mais consciente, se acha perdida na eminência catastrófica. Como um documentarista, vejo grande potencial da profissão na fatia de mudança cultural. Como humano, vejo a raça como um câncer autodestrutivo. Aprofundar o conhecimento na natureza é perceber a beleza dentro de cada ciclo e processo da vida, que mesmo caótico tem um sentido muito peculiar para além de nossa percepção. Perceber isso é também tomar consciência maior do pecado que cometemos com nossa arrogância e prepotência.

O processo de realização me obrigou a auto-reflexão e foi ponto de virada essencial na minha personalidade, transformando radicalmente alguns vícios individuais.

Olhando o cerrado, agora, vejo que estava errado. Pensava a natureza como algo frágil, que estava sob risco, que precisava de nossa proteção, que precisava de nossas cercas para sobreviver. De novo, minha visão arrogante e prepotente me embasava a realidade. A grande verdade é que os frágeis somos nós.

Um bioma que sobrevive a climas extremos de falta d’água e altas temperaturas. Que se adaptou a queimadas, que criou cascas à prova de fogo, que brota das cinzas. Um ambiente seco, que abriga a maior biodiversidade desse planeta que deveria se chamar água. Algo não faz sentido, algo não se encaixa. Não. Infelizmente minha constatação agora é que esse vídeo não foi realizado por mim para o cerrado, e sim, dele para nós. É um documentário para nós mesmos, e o cerrado é mero espectador. Ele nos olha, e não nos implora nada, só nos mostra. Porque na natureza, ao contrário do que concebemos como raça racional, nada está acima ou abaixo, por isso de nada deve-se sentir pena ou inveja.

Nossos atos vão contra a própria preservação de nossa espécie. A História depende do homem, a Vida não. O cerrado, a amazonas, o planeta permanecerá. Já nossa raça sofre perigo de extinção. Perigo real. Acredito que a mudança de atitude vira com a mudança do olhar. E é nesse contexto que a cultura tem papel fundamental.

O filme foi inscrito até o momento nos festivais de Tiradentes, Belo Horizonte ,Ouro Preto e no É tudo Verdade.Tem previsão de estréia na internet no inicio de 2011. Possui também uma comunidade no Orkut: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=95187719&refresh=1

Felipe Carrelli Sá Silva é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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