Ádria Sofia Dias Lage
Mateus Felipe de Jesus Jordão Palmeira
Suelen Cristina Nino Fernandes
Resumo: O artigo visa compreender o espaço reservado para a difusão do audiovisual amazônico dentro da nova lógica de consumo e exibição por meio das plataformas de streamings, analisando a atuação da plataforma AmazoniaFlix nesse contexto. Para isso, traça-se um panorama do cinema amazônico desde o século XX, ressaltando a dominação do mercado por realizadores externos à Amazônia, em um primeiro momento, bem como o atual cenário, com a produção local sendo realizada também por pessoas amazônidas e demonstrando sua maneira de contar as narrativas com olhar mais representativo sobre a região. Por fim, destaca-se a atuação dos streamings no Brasil e como o AmazôniaFlix atua ou pode atuar como um mediador da preservação do audiovisual de identidade amazônica.
Palavras-chave: cinema amazônico, streaming, cinema brasileiro, amazôniaflix .
INTRODUÇÃO
Convenciona-se que o cinema brasileiro surgiu no dia 19 de julho de 1898, quando o italiano Afonso Segreto realizou as primeiras filmagens em território nacional. Nesse período, o Brasil lidava com o profundo atraso e subdesenvolvimento que remanesceram do sistema monárquico e escravocrata recém-abolido. Até o Rio de Janeiro, capital do país à época, demorou quase dez anos para ter os insumos mínimos necessários para o desenvolvimento apropriado do cinema, como energia elétrica industrialmente produzida.
Em contrapartida, em 1912, a cinematografia europeia e norte-americana já havia definido um padrão industrial de produção, estabelecendo uma competição desleal com as obras dos demais países, ainda produzidas sob uma lógica artesanal. Além disso, como parte da herança escravista, não era considerado apropriado que as pessoas “bem-nascidas” executassem trabalhos manuais, cabendo esses aos negros recém-libertos e a alguns imigrantes. Essa conjuntura favoreceu que o mercado nacional fosse dominado por estrangeiros não apenas por meio da ocupação massiva das janelas de exibição por fitas importadas, mas também ao nível de produção local, uma vez que as posições estratégicas na área técnica, artística e cultural eram dominadas por uma massa de estrangeiros imigrantes. É, portanto, o nascimento de um cinema dito brasileiro, mas exportado do exterior ou, quando muito, gravado no Brasil, mas com força motriz estrangeira.
Paralelamente, a Amazônia vivia um período de expansão econômica e desenvolvimento cultural em função do ciclo da borracha, especialmente nas cidades de Belém e Manaus, além das reformas urbanas para adequar esses espaços culturais a um ideal colonizado de modernidade. O estado paraense, ligado a uma elite que cultuava as belas-artes europeias, também realizou esforços para atrair artistas de outras regiões brasileiras e estrangeiros para esses centros urbanos emergentes (Carvalho, 2019, p. 23-28).
Se ao longo de todo o século XX a cinematografia amazônica era representada majoritariamente por artistas vindos de outras regiões e nacionalidades, com a nova configuração da produção nacional pós-anos 1990 encontramos um contexto em que há o incentivo para a produção descentralizada no Brasil, com um incremento nos estímulos para que o povo amazônida comece a contar suas próprias histórias, além de maior possibilidade de investimento na formação de profissionais para atuar nas áreas técnicas do audiovisual com a criação, por exemplo, da primeira (e ainda única) graduação superior em Cinema e Audiovisual da região norte em 2010, na Universidade Federal do Pará. É nesse contexto de gradual melhoria no cenário regional que nomes como Jorane Castro, Aurélio Michiles, Fernando Segtowick, Graciela Guarani começam a despontar no contexto cinematográfico nacional pela maneira diferenciada de olhar para a Região Amazônica.
Todavia o esforço das políticas públicas que visam a regionalização da produção, o cinema produzido por amazônidas na Amazônia ainda enfrenta a competição pelas salas de exibição com o cinema estrangeiro e com o cinema do eixo sudeste. Se esta problemática era a grande questão a ser enfrentada pela produção regional, o período pós pandemia aumentou o nível de dificuldade de penetração destas produções nestes espaços.
Por outro lado, no mesmo período, o mercado das plataformas de streaming teve um crescimento superior a 20% (vinte por cento) e, em certa medida, contribuiu para a mudança no hábito de consumo audiovisual em todo o mundo. O questionamento que se busca fazer com o artigo é: qual o espaço para uma representação de todos os Brasis neste espaço qualificado que adentra os lares e leva a produção para o conforto do sofá, especialmente, o cinema produzido na Amazônia, por amazônidas?
2. PRODUÇÃO DE CINEMA AMAZÔNIDA NO CONTEXTO BRASILEIRO: O HISTÓRICO APAGAMENTO
Dentre os cineastas que marcaram a trajetória do cinema amazônico no início do século XX, pode-se destacar Silvino Santos, imigrante lusitano que documentou a floresta amazônica sob encomenda de membros da elite manauara por uma perspectiva de exotismo, materializada em filmes nacional e internacionalmente reconhecidos como No paiz das Amazonas (1922), primeiro longa-metragem gravado inteiramente no que se entendia por Amazonas naquela época, territórios que hoje se dividem entre Rondônia, Roraima e o Amazonas em si (Costa, 2006).
Já nas décadas de cinquenta e sessenta, sobressaíram-se o paraense Milton Mendonça e o migrante paulista Líbero Luxardo no campo dos cinejornais, curtas informativos exibidos antes da programação regular dos cinemas. Luxardo foi o responsável pela cobertura do cortejo do Governador Magalhães Barata no cinejornal Perde o Pará o seu grande líder (1959), obra que sintetiza a imagem de amigo do povo, construída para o governador Magalhães Barata, e Um dia qualquer (1962), primeiro longa-metragem realizado no Pará.
É sintomático que as primeiras grandes obras produzidas na região tenham sido realizadas por forasteiros financiados pelas oligarquias locais. Carvalho ressalta que a condição de imigrante constituiu um capital simbólico para Silvino Santos no Brasil, beneficiado pelas relações de paternalismo exercidas pelos lusitanos aqui radicados, que davam preferência a outros imigrantes portugueses durante as contratações, ainda que esses fossem menos qualificados que um brasileiro (Carvalho, 2019). Essa teia de privilégios que envolvia Silvino, em algum grau semelhante a que posteriormente envolveria o paulista Líbero Luxardo, impulsionou o acesso dele às elites locais. Segundo Carvalho (2019):
Entendo que o poder simbólico manejado por Silvino estava em sua condição de imigrante português, tanto para as oportunidades de trabalho (uma vez que no período se dava preferência ao biótipo europeu) quanto para os contatos que manteve com a classe artística, com quem muito aprendeu. Essa não é uma generalização e nem uma regra para todos os imigrantes portugueses que chegavam à Amazônia em busca de oportunidade, mas é a especificidade de Silvino. Quando ingressou como fotógrafo de políticos e empresários da economia da borracha, ele não era dotado de um alto capital econômico. Mas, no decorrer de sua trajetória de imigrante para um artista importante, sua área de influência cresceu sem precisar necessariamente de um poder econômico. (Carvalho, 2019, p. 39)
Assim, é falso o senso comum de que esses territórios repletos de estudos e realizações significativas são ou eram vazios artística, intelectual, estética ou simbolicamente (Monteiro e Stoco, 2020). Ao contrário, apesar do desconhecimento e do apagamento sistemático que o cinema amazônico ou que os cinemas amazônicos sofrem e sofreram, as experiências cinematográficas ocorrem na região, assim como em outras partes do Brasil, desde o início do século XX, ainda que conduzida majoritariamente por grupos não amazônidas, e se multiplicam não só numericamente como também em diversidade de autoria, com uma maior inserção de vozes locais, na virada para o século XXI em função dos incentivos públicos e das inovações tecnológicas que barateiam a produção.
2.1. A questão da distribuição e regionalização do cinema amazônida
O Brasil se distancia dos parâmetros mundiais ao adotar a data primeira filmagem realizada em solo brasileiro como marco inicial do cinema nacional, ao invés de, como na maioria das outras nações, a data da primeira exibição naquele país. Para Bernardet (2008), tal escolha historiográfica evidencia a posição central que a produção ocupou desde os primórdios do cinema brasileiro, reservando poucos ou nulos esforços para a manutenção da cadeia de circulação que deveria se suceder após à finalização das obras.
É necessário lembrar que o cinema tem especificidades que não são inerentes às outras artes performáticas e que “o ato de produzir e representar uma peça é um só, ao passo que realizar e exibir um filme são duas operações diversas” (Gomes, 1996, p. 15). Assim, não basta apenas o grandíssimo esforço para se produzir uma obra audiovisual, ainda maior em regiões historicamente esquecidas. É necessário um trabalho e planejamento ativo para que esse conteúdo chegue ao público através dos setores de distribuição e exibição.
É louvável que nos últimos anos mais obras amazônidas tenham conseguido destaque no cenário nacional, como é o caso de O Comedy Club (2022), primeiro filme tocantinense a ser incluso no circuito nacional de cinemas, Para Ter Onde Ir (2016) de Jorane Castro, O Reflexo do Lago (2022) que fizeram carreira em festivais, com retorno bastante positivo da crítica e de Noites Alienígenas (2022), longa-metragem acreano ganhador de cinco prêmios na 50º Edição do Festival de Cinema de Gramado. Seu diretor, Sérgio Carvalho, captou investimentos públicos para o seu projeto e destaca a importância dessas políticas para a descentralização do cinema brasileiro. No entanto, ele também desmente a afirmação errônea, que ignora uma trajetória cinematográfica que se delineia desde os anos setenta, de que seu filme é o primeiro longa-metragem acreano.
Durante a ditadura militar, por exemplo, a juventude do Acre já se apropriava do cinema como ferramenta de combate aos discursos de precarização da Amazônia que o Estado difundia na rádio e em outros meios. Nesse cenário, surgem filmes como Rosinha, a rainha do sertão (1974), longa-metragem clássico do cinema acreano que aborda a chegada de migrantes para a zona rural do Acre naquele contexto. É preciso salientar, portanto, que Noites Alienígenas de fato não é o primeiro longa realizado na região, mas o primeiro a ser lançado comercialmente, passando a integrar, junto com O Comedy Club, o seleto grupo das obras da região norte que entraram na grade de exibição dos grandes cinemas brasileiros na última década.
Desse modo, percebe-se que apenas as salas de cinema tradicionais não são capazes de impulsionar da forma devida as produções audiovisuais amazônicas. Alguns dos motivos para isso podem ser extraídos da obra de Régio (2015), que menciona a concentração do poder no setor de distribuição e exibição nas mãos de poucas empresas, com destaque para as majors transnacionais na área de distribuição, hegemônicas no ramo desde a década de vinte. Esses conglomerados de atuação global são responsáveis por uma padronização dos filmes em cartazes no mundo todo que privilegia, visando a um lucro certeiro, os blockbusters norte-americanos em detrimento das produções nacionais.
Além de enfrentar uma competição desigual com o produto estrangeiro, principalmente estadunidense, as obras audiovisuais amazônicas ainda encontram um segundo campo de dominância: o predomínio de obras sudestinas nos pouquíssimos espaços de exibição destinados às produções nacionais. Em 2016, nenhum dos 142 longa-metragem nacionais lançados comercialmente em salas de exibição no Brasil foram produzidos na região norte. Em contrapartida, um total de 114 desses filmes foram gravados na região sudeste, totalizando 80% dos lançamentos brasileiros nas salas de cinema (ANCINE, 2018).
Outra questão que dificulta o escoamento da produção audiovisual amazônida nas janelas de exibição tradicionais é o formato. As salas de cinema brasileiras focam na reprodução de longas-metragens de ficção, excluindo curtas e médias-metragens, documentários e produções experimentais da grade recorrente. Dos cento e vinte cinco filmes tocantinenses catalogados por Silva (2017), apenas dois eram longas-metragens e 72% do montante total eram obras documentais. Há um intervalo de quase dez anos entre o lançamento de Palmas, Eu Gosto de Tu (2014), primeira obra de Tocantins a estrear nas salas de cinema do próprio estado, e O Comedy Club (2022), que estreou em dez cidades do país. Essa lentidão na absorção da incipiente produção audiovisual do mais novo estado brasileiro marginaliza ainda mais um cinema que já é fragilizado por ainda estar em processo de construção de uma identidade própria em meio a um cenário pouco otimista para o financiamento público à produção audiovisual.
Como contraponto, há uma cadeia alternativa de distribuição, concentrada em movimentos locais como o Festival Chico, existente desde 1999, e o cineclube Canto das Artes, criado em 2004. No entanto, nenhuma dessas formas de divulgação possibilitam o cinema tocantinense a atingir um público significativo, diverso e para além da instância local.
Esses dados alarmantes indicam a necessidade urgente de se encontrar meios para que os cinemas amazônicos sejam incorporados aos circuitos de exibição. Nesse contexto, a ascensão e consolidação dos serviços de streaming nas últimas décadas pode representar, se usado de forma eficiente, um novo caminho para a divulgação do audiovisual dessa região.
3. A ASCENSÃO DOS STREAMINGS NO MERCADO BRASILEIRO
Segundo o livro Ficção Televisiva Ibero-americana em Tempos de Pandemia (2021) do Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva, grande parte do surgimento de novas plataformas de streaming e do aumento massivo do consumo dessas interfaces no Brasil ocorreu após o ano de 2019 com a eclosão dos primeiros casos de Covid-19 em território brasileiro.
As medidas sanitárias adotadas para frear o avanço da pandemia, como a quarentena e o isolamento social, foram responsáveis pelo aumento exponencial do consumo e da propagação desses meios, pois fizeram com que grande parte da população buscasse ocupar o tempo ocioso que tinham dentro de suas casas com o consumo de conteúdo audiovisual e cinematográfico através da internet. Isso acelerou a consolidação do ambiente digital como preponderante entre os meios de comunicação nacionais, processo já em curso há alguns anos, tendo como ponto de virada o estabelecimento da internet como meio de comunicação mais utilizado pela população brasileira em 2019, ultrapassando a TV aberta (OBITEL BRASIL, 2021. p. 106).
Neste panorama, há o lançamento e ampliação do catálogo de serviços de streaming nacionais e a chegada de diversas plataformas estrangeiras no mercado brasileiro, que até então era dominado pela gigante norte-americana Netflix. É possível citar dentre os principais expoentes deste fenômeno: a chegada da Amazon Prime Video e da Disney +, além do fortalecimento do Globoplay, serviço do Grupo Globo em funcionamento desde 2015 que, de 2019 para 2020, teve um aumento de 150% no número de assinantes (Obitel Brasil, 2021).
O streaming, segundo Comparato:
É a tecnologia que envia informações multimídia por meio da transferência de dados, utilizando redes de computadores – especialmente a internet. Foi criada para tornar as conexões mais rápidas. […] O streaming possibilita que um usuário reproduza mídia, como vídeos, que são sempre protegidos por direitos autorais, de modo que não viole nenhum desses direitos, tornando-se bastante parecido com o rádio ou a televisão aberta.” (Comparato, 2018, p. 623).
Sendo assim, o streaming de vídeo dá a possibilidade de um indivíduo, utilizando um provedor de internet, assistir a um conteúdo digital instantaneamente por qualquer dispositivo eletrônico compatível, que tenha acesso à rede, sem a necessidade de fazer o download completo do arquivo. A tecnologia libera o objeto videográfico para o processamento gradual à medida que o usuário o assiste e concede ao espectador o controle temporal da visualização, permitindo-o pausar, acelerar ou pular partes da obra.
Essas praticidades e flexibilizações do acesso ao conteúdo constituem um diferencial do streaming e dão sentido à demasiada popularidade dessa forma de consumo, que propicia o aparente controle do que e de como assistir, diferentemente das salas de cinema, da televisão aberta ou da TV à cabo, em que o telespectador fica refém de horários e de conteúdos pré-determinados.
Antes da popularização da internet e, consequentemente, dos streamings, o serviço que mais se aproximava dessa experiência personalizada ao consumidor, ao menos no quesito de seleção de obras, eram as videolocadoras, que permitiam o aluguel em formato físico de filmes, séries, animações e demais conteúdos cinematográficos. Esse modelo de negócio, que viveu sua era de ouro entre os anos 80 e o começo dos anos 2000, deu seus últimos suspiros em meados da década de 2010, período em que disputou público com três concorrentes que facilitariam ainda mais o consumo doméstico de audiovisual: os streamings, a pirataria e a televisão à cabo, que hoje já passa também por um processo de obsolescência. A decadência das videolocadoras deu lugar ao que hoje chamamos de Video on Demand (VOD), realizado pelas plataformas de streaming gratuitas ou com acesso condicionado. De acordo com Doc Comparato:
No Video on Demand, por meio de uma página na tela da TV, do computador ou do smartphone, o assinante pode escolher diferentes filmes e programas de TV que estejam disponíveis para alugar. Trata-se de um sistema de visualização personalizada de conteúdos audiovisuais que permitem ao espectador ver um filme ou um programa no momento em que desejar. (COMPARATO, 2018. p. 624).
Cabe destacar, portanto, que a rigor o VOD é o que possibilita essa personalização do conteúdo para o usuário, enquanto o streaming é a modalidade de transmissão usada dentro dessas plataformas. Assim, todo Video on Demand é também um streaming, mas nem todo streaming é um Video on Demand.
3.1 A participação das produções amazônidas dentro desse mercado.
Os streamings apresentam características que podem ser usadas em prol de uma democratização da cultura, como as tarifas mais baratas e um alcance superior ao da TV à cabo, além de um acervo um pouco mais receptivo em comparação ao cinema tradicional para produtos fílmicos de fora do eixo estadunidense, exemplificado, por exemplo, com a ascensão das séries coreanas na Netflix. No entanto, é notória ainda a reprodução por esses serviços da mesma lógica de desinteresse pelas produções amazônidas vigente no setor de exibição e de distribuição desde o século XX.
O professor Rubens Rewald, em entrevista ao Jornal da USP, é ainda mais categórico ao afirmar que, embora as plataformas de streaming estimulam e financiam a produção audiovisual, “a padronização de conteúdos e o interesse pela venda fazem com que obras não convencionais e alternativas percam espaço [nesses meios]”, complementando que os filmes de mais risco passam por um período conturbado com a diminuição da importância do cinema como janela de exibição. Assim, ainda que a situação os filmes amazônidas não tenha se alterado com a queda de frequência ao cinema tradicional – espaço que nunca os acolheu de fato -, é necessário um cuidado redobrado para que as produções de polos periféricos não sejam mais uma vez ignoradas pelo setor de exibição nas plataformas streaming. Dentro do modesto universo de obras realizadas na Amazônia que conseguem ocupar esses espaços podemos citar a presença de Para Ter Onde Ir, hospedada atualmente na plataforma Amazon Prime Vídeo e Noites Alienígenas, na Netflix.
Usualmente, as poucas obras produzidas na região que são inseridas nessas plataformas trazem um olhar de fora para essas locações, como é o caso da segunda temporada da série Cidade Invisível (2021), criada por um carioca (Carlos Saldanha) e gravada no Pará após a primeira temporada ser alvo de críticas por levar elementos do folclore nortista para o cenário do Rio de Janeiro, que já foi ostensivamente explorado no audiovisual.
É evidente que existem formas responsáveis de se trazer um olhar externo para a Amazônia, entretanto não se pode retirar o protagonismo da classe artística local quando se trata da concepção de projetos audiovisuais na região, haja vista que, além de ser essencial que os trabalhadores desse mercado historicamente apagado tenham a oportunidade de exercer suas profissões, é preciso que as vozes amazônidas estejam por trás da criação da identidade veiculada a essas obras. Nesse ponto, destaca-se que uma representação jamais será apenas o objeto representado em si, mas sempre uma reprodução dele sob a perspectiva de quem o representa.
Como exemplo disso, relembra-se que Silvino Santos registrava a exuberância da floresta amazônica por uma égide de exotismo porque os grupos que o financiavam desejavam atrair novamente o interesse do capital brasileiro e estrangeiro para a região, assim como Líbero Luxardo construía intencionalmente em seus cinejornais uma imagem romantizada de Magalhães Barata, seu amigo e liderança do partido em que Luxardo era filiado (PSD). Se até essas imagens de caráter documental são impregnadas pelos valores de quem as produz, é necessário um cuidado ainda maior para que a ficção, segmento com um compromisso ainda menor com a realidade, não seja pensada apenas sob a perspectiva dos grupos dominantes, e, mais que isso, é preciso assegurar que a ideia que esses grupos marginalizados têm sobre si e sobre o espaço que residem, sintetizadas no audiovisual amazônido, cheguem ao público.
Silva (2017) contabilizou que 80% das 125 produções audiovisuais tocantinenses que catalogou estão disponíveis em plataformas de vídeos gratuitas como o YouTube e o Vimeo. No entanto, ligadas a um mercado audiovisual fragilíssimo e a um setor de distribuição local ainda quase inexistente, representado em 2017 por uma única empresa, é notável que não há em termos gerais nenhuma estratégia de divulgação ou de distribuição associada à postagem dessas obras, que não são distribuídas, mas despejadas na internet.
Acerca disso, Silva pontua:
Com a massificação da Internet, os modelos de exibição e distribuição de filmes mudaram, como também a produção cinematográfica. Hoje há projetos específicos para canais de YouTube ou filmes feitos para a plataforma stream, que nem chegam a ter a sua estreia em uma sala de cinema. Contudo, a Internet permite uma visualização maior da cadeia cinematográfica. No caso do Tocantins, o realizador, que normalmente também é produtor de suas obras, pode ter uma visão do caminho que o seu filme poderá percorrer. No entanto, na generalidade, como já dito nas entrevistas, a distribuição e exibição dos filmes ainda não é uma preocupação dos realizadores, porém o cenário está mudando e a Internet é o principal meio que os produtores poderão utilizar para que os seus filmes sejam vistos por pessoas de outros estados. Todavia, é necessário planejar a distribuição e exibição, como se planejam a produção para que isso seja possível.
Tem-se, portanto, uma visão do mercado produtor que aponta para a necessidade de melhor planejamento da vida da obra audiovisual brasileira para outras janelas que não apenas as salas de cinema, que não tem conseguido dar conta de equilibrar a balança da distribuição do filme nacional. O streaming se apresenta como um caminho possível para não só exibir a produção nacional como também investir em novas produções, todavia o audiovisual produzido distante do eixo tem sofrido com a mesma dificuldade de acesso a estes espaços.
É importante considerar que as produções realizadas por amazônidas não têm encontrado espaço nas grandes plataformas e nem mesmo nas de nicho, além disso, por vezes é até difícil para o pesquisador mapear a produção cinematográfica dos últimos anos, pois os relatórios produzidos pela Agência Nacional de Cinema tratam de números de CPBs emitidos por região e não os títulos na internet. Fazendo uma simples pesquisa em mecanismo de busca, neste sentido, a plataforma AmazôniaFlix se apresenta como uma solução para reunir a produção feita na Pan-Amazônia e criar o espaço para que o público conheça o cinema feito nesta Região.
3. O AMAZÔNIAFLIX: A FLORESTA DO CINEMA E O CINEMA DA FLORESTA
É sob o panorama do boom dos streamings durante a Pandemia do Covid-19, que em setembro de 2020 é criado a AmazôniaFlix, a primeira plataforma de streaming da Amazônia, idealizada pelos cineastas amazônidas Zienhe Castro e Manoel Leite com o intuito de difundir e internacionalizar as produções audiovisuais feitas dentro das fronteiras da região Pan-amazônica, em solo brasileiro e estrangeiro. Tendo consciência da vigente dinâmica virtual no mercado de distribuição e de consumo ao produto audiovisual, a plataforma intenciona ser representante de uma camada excluída nesse contexto, que cresce e se fortalece mundialmente, afinal, protagoniza uma revolução na linguagem e na forma de contemplar a produção audiovisual.
A plataforma apresenta como objetivo:
Ao tornar a produção cinematográfica amazônica acessível mundialmente, este projeto tem como um dos seus principais objetivos marcar a presença da nossa cultura nesse novo mundo do mercado da distribuição streaming, agindo como incentivo para que mais filmes sejam produzidos na nossa região. […] Ao mesmo tempo, o mundo conhecerá o CINEMA de identidade amazônica, e com ele a nossa cultura, através da nossa voz, da nossa imagem, e dos frutos do nosso próprio talento. (AMAZÔNIAFLIX, 2020).
Sendo assim, a plataforma se promove enquanto um dispositivo de incentivo a essa produção, ressaltando também o protagonismo da participação de realizadores locais para construir um portal que espelhe a Amazônia através dos próprios amazônidas.
Figura 1 – Imagem de capa da plataforma AmazôniaFlix.
Fonte: AmazôniaFlix (2023)
Sob um design fluido e prático, a plataforma gratuita tem em seu catálogo curtas, longas, séries, animações e documentários que foram produzidos na região amazônica. O catálogo “Degustação”, feito para funcionar permanentemente no ciberespaço, conta atualmente com um pouco mais de 40 títulos paraenses na Mostra Égua do Filme. Essas obras estão hospedadas em um servidor externo ao do AmazoniaFlix, mas a proposta é que haja posteriormente o lançamento da plataforma completa, disponibilizando no servidor gerido pelo próprio website uma versão expandida do acervo já existente.
Ademais, ressalta-se a atuação desse ciberespaço para exibição virtual de Mostras e Festivais, tendo a exibição de filmes dentro do servidor da plataforma por um tempo predeterminado. A manutenção da publicação de novas obras acontece em paralelo à dinâmica desses circuitos, sobretudo ao Festival Pan-Amazônico de Cinema – Amazônia FiDoc, e em contato com os autores para exibições especiais. De acordo com Zienhe Castro, a gestão do conteúdo que é exibido decorre de um árduo processo de curadoria: “a gente negocia com os realizadores e exibe os filmes, alguns entram por pouco tempo, por poucos dias, outros ficam lá disponíveis.” (O LIBERAL, 2022).
A plataforma não opera integralmente como um serviço de streaming constante, considerando a descrição de Comparato (2018) dos critérios técnicos característicos desta forma de consumo, pois não executa o processo de transferência de dados como fornecedor ao usuário, utilizando predominantemente um servidor externo para realização dessa tarefa, fazendo com que nesta primeira fase, majoritariamente seja feita a intermediação da transmissão das obras que são hospedadas no servidores do Vimeo e YouTube, site de compartilhamentos de vídeos.
Aproximando-se, na prática, mais como um canal para a concentração do acesso e exposição deste acervo, a priori, a ideia é que este seja temporário, transicionando posteriormente para um sistema gerido completamente dentro dos servidores do AmazôniaFlix, sendo o provedor do streaming. A plataforma tem atuado ultimamente no formato misto, quando a realiza a exibição de obras por um período específico de tempo em que o conteúdo fica aberto para visualização e votações, geralmente vinculadas a um Festival.
Para analisar a sua importância junto à Amazônia Legal, parte brasileira da floresta, para a popularização e preservação destas obras, pode-se classificar o AmazôniaFLIX como uma plataforma de VOD gratuita. A plataforma desempenha um papel-chave para trazer e garantir a visibilidade para o cinema e o audiovisual amazônico, visto que, o setor de distribuição não tem o espaço adequado dentro do mercado exibidor nacional dominado por produções estrangeiras, em especial, as norte-americanas.
Como Manuel Leite manifesta:
Nós somos uma parte não só essencial, como faltante dentro da cadeia de produção cinematográfica brasileira, porque a grande parte dos conteúdos que são produzidos com dinheiro da Ancine, fica esquecida em algum lugar, porque não tem cadeia de distribuição (FÓRUM DOS STREAMINGS, 2023).
Segundo Zienhe Castro, a plataforma contabilizava mais de 10 mil usuários com cadastro ativo na plataforma. Neste sentido, a AmazôniaFlix emerge da necessidade de atuar dentro da cadeia de distribuição cinematográfica brasileira, como uma plataforma de streaming com curadoria que serve como uma janela de exibição alternativa no meio digital, facilitando o acesso a filmes amazônicos que antes de sua criação não possuíam um canal adequado para o conhecimento deste acervo, limitando o acesso e seu consumo somente em festivais e circuitos independentes de exibição, haja visto que, numa perspectiva comercial brasileira, a região é a mais afetada com a negligência estrutural histórica do setor exibidor com o cinema nacional.
4. CONCLUSÃO
O contexto de crescimento da produção audiovisual brasileira com a retomada das políticas públicas para o setor e com o investimento do setor privado por meio das plataformas de streaming apontam para um futuro promissor na realização de projetos diversos, que buscam representatividade para a alimentar a procura do público por novos produtos. Entretanto, é necessário que os produtores e empresas produtoras começam a refletir sobre o espaço para as produções nacionais, em especial, as amazônidas, neste contexto, de maneira que o produto audiovisual não sofra as mesmas dificuldades já existentes com relação à exibição e distribuição deste conteúdo, de maneira que esteja disponível para todos.
Sendo assim, evidencia-se a relevância e um fortalecimento da plataforma AmazôniaFlix como espaço qualificado para se encontrar a diversidade e regionalização do conteúdo que está sendo colocado para acesso do público, assim como para a preservação da memória de parte da produção amazônida, na tentativa de driblar o esquecimento e a perda do acesso deste acervo importante da história cinematográfica brasileira.
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REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS
CIDADE Invisível. Criação: Carlos Saldanha. 2021 – Netflix.
NO PAIZ das amazonas. Direção e montagem: Silvino Santos e Agesilau de Araújo. Manaus e Rio Branco: J.G. Araújo Produções Cinematográficas, 1922. YouTube.
NOITES alienígenas. Direção e roteiro de Sérgio de Carvalho. Rio Branco: Saci Filmes, 2023. Formato digital.
O COMEDY club. Direção e roteiro: André Araújo. Produção: Gabriel Deeaz e Hugo Gutierry Leite de Farias. Tocantins: SuperOito Produções, 2022.
O REFLEXO do Lago. Direção e Roteiro: Fernando Segtowick. Pará, Marahu Produções, 2022.
PALMAS, eu gosto de tu. Direção: André Araújo, Eva Pereira, Hélio Brito, Marcelo Silva, Roberto Giovanetti e Wertem Nunes. Tocantins: SuperOito Produções, 2020.
PARA Ter Onde Ir. Direção e Roteiro: Jorane Castro. Produção: Jorane Castro e Ofir Figueiredo. Belém: Cabocla Produções, 2016. Amazon Prime Vídeo.
PERDE o Pará seu grande líder. Direção: Líbero Luxardo. Belém: Produções Líbero Luxardo, 1959. YouTube.
ROSINHA, a rainha do sertão. Direção e roteiro de João Batista de Assunção. Rio Branco: ECAJA Filmes, 1974. Super 8mm. UM DIA qualquer. Direção e argumento: Líbero Luxardo. Produção: Líbero Luxardo e Teixeira de Melo. Belém: Líbero Luxardo Produções Cinematográficas. 1965. YouTube.