PLATAFORMA AMAZÔNIAFLIX E A DIFUSÃO AUDIOVISUAL PRODUZIDO NA AMAZÔNIA

Ádria Sofia Dias Lage 

Mateus Felipe de Jesus Jordão Palmeira 

Suelen Cristina Nino Fernandes 

Resumo: O artigo visa compreender o espaço reservado para a difusão do audiovisual amazônico dentro da nova lógica de consumo e exibição por meio das plataformas de streamings, analisando  a atuação da plataforma AmazoniaFlix nesse contexto. Para isso, traça-se um panorama do cinema  amazônico desde o século XX, ressaltando a dominação do mercado por realizadores externos à  Amazônia, em um primeiro momento, bem como o atual cenário, com a produção local sendo  realizada também por pessoas amazônidas e demonstrando sua maneira de contar as narrativas com olhar mais representativo sobre a região. Por fim, destaca-se a atuação dos streamings no Brasil e como o AmazôniaFlix atua ou pode atuar como um mediador da preservação do audiovisual de identidade amazônica.  

Palavras-chave: cinema amazônico, streaming, cinema brasileiro, amazôniaflix .

INTRODUÇÃO 

Convenciona-se que o cinema brasileiro surgiu no dia 19 de julho de 1898, quando o italiano Afonso Segreto realizou as primeiras filmagens em território nacional. Nesse período, o Brasil lidava com o profundo atraso e subdesenvolvimento que remanesceram do sistema monárquico e escravocrata recém-abolido. Até o Rio de Janeiro, capital do país à época, demorou quase dez anos para ter os insumos mínimos necessários para o  desenvolvimento apropriado do cinema, como energia elétrica industrialmente produzida.

Em contrapartida, em 1912, a cinematografia europeia e norte-americana já havia definido um padrão industrial de produção, estabelecendo uma competição desleal com as obras dos demais países, ainda produzidas sob uma lógica artesanal. Além disso, como parte da herança escravista, não era considerado apropriado que as pessoas “bem-nascidas” executassem  trabalhos manuais, cabendo esses aos negros recém-libertos e a alguns imigrantes. Essa conjuntura  favoreceu que o mercado nacional fosse dominado por estrangeiros não apenas por meio da  ocupação massiva das janelas de exibição por fitas importadas, mas também ao nível de produção  local, uma vez que as posições estratégicas na área técnica, artística e cultural eram dominadas por uma massa de estrangeiros imigrantes. É, portanto, o nascimento de um cinema dito brasileiro, mas exportado do exterior ou, quando muito, gravado no Brasil, mas com força motriz estrangeira. 

Paralelamente, a Amazônia vivia um período de expansão econômica e desenvolvimento  cultural em função do ciclo da borracha, especialmente nas cidades de Belém e Manaus, além das  reformas urbanas para adequar esses espaços culturais a um ideal colonizado de modernidade. O  estado paraense, ligado a uma elite que cultuava as belas-artes europeias, também realizou esforços  para atrair artistas de outras regiões brasileiras e estrangeiros para esses centros urbanos emergentes (Carvalho, 2019, p. 23-28). 

Se ao longo de todo o século XX a cinematografia amazônica era representada  majoritariamente por artistas vindos de outras regiões e nacionalidades, com a nova configuração  da produção nacional pós-anos 1990 encontramos um contexto em que há o incentivo para a  produção descentralizada no Brasil, com um incremento nos estímulos para que o povo amazônida comece a contar suas próprias histórias, além de maior possibilidade de investimento na formação de profissionais para atuar nas áreas técnicas do audiovisual com a criação, por exemplo, da  primeira (e ainda única) graduação superior em Cinema e Audiovisual da região norte em 2010, na Universidade Federal do Pará. É nesse contexto de gradual melhoria no cenário regional que nomes como Jorane Castro, Aurélio Michiles, Fernando Segtowick, Graciela Guarani começam a despontar no contexto cinematográfico nacional pela maneira diferenciada de olhar para a Região Amazônica. 

Todavia o esforço das políticas públicas que visam a regionalização da  produção, o cinema produzido por amazônidas na Amazônia ainda enfrenta a competição pelas  salas de exibição com o cinema estrangeiro e com o cinema do eixo sudeste. Se esta problemática  era a grande questão a ser enfrentada pela produção regional, o período pós pandemia aumentou o nível de dificuldade de penetração destas produções nestes espaços.  

Por outro lado, no mesmo período, o mercado das plataformas de streaming teve um  crescimento superior a 20% (vinte por cento) e, em certa medida, contribuiu para a mudança no hábito de consumo audiovisual em todo o mundo. O questionamento que se busca fazer com o artigo é: qual o espaço para uma representação de todos os Brasis neste espaço qualificado que  adentra os lares e leva a produção para o conforto do sofá, especialmente, o cinema produzido na Amazônia, por amazônidas? 

2. PRODUÇÃO DE CINEMA AMAZÔNIDA NO CONTEXTO BRASILEIRO: O  HISTÓRICO APAGAMENTO 

Dentre os cineastas que marcaram a trajetória do cinema amazônico no início do século  XX, pode-se destacar Silvino Santos, imigrante lusitano que documentou a floresta amazônica sob  encomenda de membros da elite manauara por uma perspectiva de exotismo, materializada em  filmes nacional e internacionalmente reconhecidos como No paiz das Amazonas (1922), primeiro  longa-metragem gravado inteiramente no que se entendia por Amazonas naquela época, territórios  que hoje se dividem entre Rondônia, Roraima e o Amazonas em si (Costa, 2006).  

Já nas décadas de cinquenta e sessenta, sobressaíram-se o paraense Milton Mendonça e o  migrante paulista Líbero Luxardo no campo dos cinejornais, curtas informativos exibidos antes da  programação regular dos cinemas. Luxardo foi o responsável pela cobertura do cortejo do  Governador Magalhães Barata no cinejornal Perde o Pará o seu grande líder (1959), obra que  sintetiza a imagem de amigo do povo, construída para o governador Magalhães Barata, e Um dia  qualquer (1962), primeiro longa-metragem realizado no Pará. 

É sintomático que as primeiras grandes obras produzidas na região tenham sido realizadas  por forasteiros financiados pelas oligarquias locais. Carvalho ressalta que a condição de imigrante  constituiu um capital simbólico para Silvino Santos no Brasil, beneficiado pelas relações de  paternalismo exercidas pelos lusitanos aqui radicados, que davam preferência a outros imigrantes  portugueses durante as contratações, ainda que esses fossem menos qualificados que um brasileiro  (Carvalho, 2019). Essa teia de privilégios que envolvia Silvino, em algum grau semelhante a que  posteriormente envolveria o paulista Líbero Luxardo, impulsionou o acesso dele às elites locais.  Segundo Carvalho (2019): 

Entendo que o poder simbólico manejado por Silvino estava em sua condição de imigrante português, tanto para as oportunidades de trabalho (uma vez que no período se dava preferência ao biótipo europeu) quanto para os contatos que manteve com a classe artística, com quem muito aprendeu. Essa não é uma generalização e nem uma regra para todos os imigrantes portugueses que chegavam à Amazônia em busca de oportunidade, mas é a especificidade de Silvino. Quando ingressou como fotógrafo de políticos e empresários da economia da borracha, ele não era dotado de um alto capital econômico.  Mas, no decorrer de sua trajetória de imigrante para um artista importante, sua área de influência cresceu sem precisar necessariamente de um poder econômico. (Carvalho,  2019, p. 39) 

Assim, é falso o senso comum de que esses territórios repletos de estudos e realizações  significativas são ou eram vazios artística, intelectual, estética ou simbolicamente (Monteiro e  Stoco, 2020). Ao contrário, apesar do desconhecimento e do apagamento sistemático que o cinema amazônico ou que os cinemas amazônicos sofrem e sofreram, as experiências cinematográficas  ocorrem na região, assim como em outras partes do Brasil, desde o início do século XX, ainda que conduzida majoritariamente por grupos não amazônidas, e se multiplicam não só numericamente como também em diversidade de autoria, com uma maior inserção de vozes locais, na virada para o século XXI em função dos incentivos públicos e das inovações tecnológicas que barateiam a  produção. 

2.1. A questão da distribuição e regionalização do cinema amazônida 

O Brasil se distancia dos parâmetros mundiais ao adotar a data primeira filmagem realizada  em solo brasileiro como marco inicial do cinema nacional, ao invés de, como na maioria das outras  nações, a data da primeira exibição naquele país. Para Bernardet (2008), tal escolha historiográfica  evidencia a posição central que a produção ocupou desde os primórdios do cinema brasileiro, reservando poucos ou nulos esforços para a manutenção da cadeia de circulação que deveria se suceder após à finalização das obras.  

É necessário lembrar que o cinema tem especificidades que não são inerentes às outras artes  performáticas e que “o ato de produzir e representar uma peça é um só, ao passo que realizar e  exibir um filme são duas operações diversas” (Gomes, 1996, p. 15). Assim, não basta apenas o  grandíssimo esforço para se produzir uma obra audiovisual, ainda maior em regiões historicamente  esquecidas. É necessário um trabalho e planejamento ativo para que esse conteúdo chegue ao público através dos setores de distribuição e exibição. 

É louvável que nos últimos anos mais obras amazônidas tenham conseguido destaque no  cenário nacional, como é o caso de O Comedy Club (2022), primeiro filme tocantinense a ser incluso no circuito nacional de cinemas, Para Ter Onde Ir (2016) de Jorane Castro, O Reflexo do  Lago (2022) que fizeram carreira em festivais, com retorno bastante positivo da crítica e de Noites  Alienígenas (2022), longa-metragem acreano ganhador de cinco prêmios na 50º Edição do Festival de Cinema de Gramado. Seu diretor, Sérgio Carvalho, captou investimentos públicos para o seu projeto e destaca a importância dessas políticas para a descentralização do cinema brasileiro. No entanto, ele também desmente a afirmação errônea, que ignora uma trajetória cinematográfica que se delineia desde os anos setenta, de que seu filme é o primeiro longa-metragem acreano.  

Durante a ditadura militar, por exemplo, a juventude do Acre já se apropriava do cinema  como ferramenta de combate aos discursos de precarização da Amazônia que o Estado difundia na  rádio e em outros meios. Nesse cenário, surgem filmes como Rosinha, a rainha do sertão (1974),  longa-metragem clássico do cinema acreano que aborda a chegada de migrantes para a zona rural  do Acre naquele contexto. É preciso salientar, portanto, que Noites Alienígenas de fato não é o  primeiro longa realizado na região, mas o primeiro a ser lançado comercialmente, passando a  integrar, junto com O Comedy Club, o seleto grupo das obras da região norte que entraram na grade de exibição dos grandes cinemas brasileiros na última década.  

Desse modo, percebe-se que apenas as salas de cinema tradicionais não são capazes de  impulsionar da forma devida as produções audiovisuais amazônicas. Alguns dos motivos para isso  podem ser extraídos da obra de Régio (2015), que menciona a concentração do poder no setor de  distribuição e exibição nas mãos de poucas empresas, com destaque para as majors transnacionais  na área de distribuição, hegemônicas no ramo desde a década de vinte. Esses conglomerados de  atuação global são responsáveis por uma padronização dos filmes em cartazes no mundo todo que  privilegia, visando a um lucro certeiro, os blockbusters norte-americanos em detrimento das  produções nacionais.  

Além de enfrentar uma competição desigual com o produto estrangeiro, principalmente  estadunidense, as obras audiovisuais amazônicas ainda encontram um segundo campo de  dominância: o predomínio de obras sudestinas nos pouquíssimos espaços de exibição destinados  às produções nacionais. Em 2016, nenhum dos 142 longa-metragem nacionais lançados  comercialmente em salas de exibição no Brasil foram produzidos na região norte. Em  contrapartida, um total de 114 desses filmes foram gravados na região sudeste, totalizando 80%  dos lançamentos brasileiros nas salas de cinema (ANCINE, 2018). 

Outra questão que dificulta o escoamento da produção audiovisual amazônida nas janelas  de exibição tradicionais é o formato. As salas de cinema brasileiras focam na reprodução de longas-metragens de ficção, excluindo curtas e médias-metragens, documentários e produções  experimentais da grade recorrente. Dos cento e vinte cinco filmes tocantinenses catalogados por  Silva (2017), apenas dois eram longas-metragens e 72% do montante total eram obras documentais.  Há um intervalo de quase dez anos entre o lançamento de Palmas, Eu Gosto de Tu (2014), primeira  obra de Tocantins a estrear nas salas de cinema do próprio estado, e O Comedy Club (2022), que  estreou em dez cidades do país. Essa lentidão na absorção da incipiente produção audiovisual do mais novo estado brasileiro marginaliza ainda mais um cinema que já é fragilizado por ainda estar  em processo de construção de uma identidade própria em meio a um cenário pouco otimista para o financiamento público à produção audiovisual.  

Como contraponto, há uma cadeia alternativa de distribuição, concentrada em movimentos  locais como o Festival Chico, existente desde 1999, e o cineclube Canto das Artes, criado em 2004. No entanto, nenhuma dessas formas de divulgação possibilitam o cinema tocantinense a atingir um  público significativo, diverso e para além da instância local.  

Esses dados alarmantes indicam a necessidade urgente de se encontrar meios para que os  cinemas amazônicos sejam incorporados aos circuitos de exibição. Nesse contexto, a ascensão e  consolidação dos serviços de streaming nas últimas décadas pode representar, se usado de forma  eficiente, um novo caminho para a divulgação do audiovisual dessa região.  

3. A ASCENSÃO DOS STREAMINGS NO MERCADO BRASILEIRO 

Segundo o livro Ficção Televisiva Ibero-americana em Tempos de Pandemia (2021) do  Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva, grande parte do surgimento de novas  plataformas de streaming e do aumento massivo do consumo dessas interfaces no Brasil ocorreu  após o ano de 2019 com a eclosão dos primeiros casos de Covid-19 em território brasileiro.  

As medidas sanitárias adotadas para frear o avanço da pandemia, como a quarentena e o  isolamento social, foram responsáveis pelo aumento exponencial do consumo e da propagação  desses meios, pois fizeram com que grande parte da população buscasse ocupar o tempo ocioso  que tinham dentro de suas casas com o consumo de conteúdo audiovisual e cinematográfico através  da internet. Isso acelerou a consolidação do ambiente digital como preponderante entre os meios  de comunicação nacionais, processo já em curso há alguns anos, tendo como ponto de virada o estabelecimento da internet como meio de comunicação mais utilizado pela população brasileira em 2019, ultrapassando a TV aberta (OBITEL BRASIL, 2021. p. 106).  

Neste panorama, há o lançamento e ampliação do catálogo de serviços de streaming nacionais e a chegada de diversas plataformas estrangeiras no mercado brasileiro, que até então era  dominado pela gigante norte-americana Netflix. É possível citar dentre os principais expoentes  deste fenômeno: a chegada da Amazon Prime Video e da Disney +, além do fortalecimento do  Globoplay, serviço do Grupo Globo em funcionamento desde 2015 que, de 2019 para 2020, teve um aumento de 150% no número de assinantes (Obitel Brasil, 2021).  

O streaming, segundo Comparato: 

É a tecnologia que envia informações multimídia por meio da transferência de dados,  utilizando redes de computadores – especialmente a internet. Foi criada para tornar as  conexões mais rápidas. […] O streaming possibilita que um usuário reproduza mídia, como  vídeos, que são sempre protegidos por direitos autorais, de modo que não viole nenhum  desses direitos, tornando-se bastante parecido com o rádio ou a televisão aberta.”  (Comparato, 2018, p. 623). 

Sendo assim, o streaming de vídeo dá a possibilidade de um indivíduo, utilizando um  provedor de internet, assistir a um conteúdo digital instantaneamente por qualquer dispositivo  eletrônico compatível, que tenha acesso à rede, sem a necessidade de fazer o download completo  do arquivo. A tecnologia libera o objeto videográfico para o processamento gradual à medida que  o usuário o assiste e concede ao espectador o controle temporal da visualização, permitindo-o  pausar, acelerar ou pular partes da obra.  

Essas praticidades e flexibilizações do acesso ao conteúdo constituem um diferencial do  streaming e dão sentido à demasiada popularidade dessa forma de consumo, que propicia o  aparente controle do que e de como assistir, diferentemente das salas de cinema, da televisão aberta  ou da TV à cabo, em que o telespectador fica refém de horários e de conteúdos pré-determinados.  

Antes da popularização da internet e, consequentemente, dos streamings, o serviço que mais  se aproximava dessa experiência personalizada ao consumidor, ao menos no quesito de seleção de  obras, eram as videolocadoras, que permitiam o aluguel em formato físico de filmes, séries,  animações e demais conteúdos cinematográficos. Esse modelo de negócio, que viveu sua era de ouro entre os anos 80 e o começo dos anos 2000, deu seus últimos suspiros em meados da década  de 2010, período em que disputou público com três concorrentes que facilitariam ainda mais o  consumo doméstico de audiovisual: os streamings, a pirataria e a televisão à cabo, que hoje já passa também por um processo de obsolescência. A decadência das videolocadoras deu lugar ao que hoje chamamos de Video on Demand (VOD), realizado pelas plataformas de streaming gratuitas ou com acesso condicionado. De acordo com Doc Comparato: 

No Video on Demand, por meio de uma página na tela da TV, do computador ou do  smartphone, o assinante pode escolher diferentes filmes e programas de TV que estejam  disponíveis para alugar. Trata-se de um sistema de visualização personalizada de  conteúdos audiovisuais que permitem ao espectador ver um filme ou um programa no  momento em que desejar. (COMPARATO, 2018. p. 624). 

Cabe destacar, portanto, que a rigor o VOD é o que possibilita essa personalização do  conteúdo para o usuário, enquanto o streaming é a modalidade de transmissão usada dentro dessas  plataformas. Assim, todo Video on Demand é também um streaming, mas nem todo streaming é  um Video on Demand.  

3.1 A participação das produções amazônidas dentro desse mercado. 

Os streamings apresentam características que podem ser usadas em prol de uma  democratização da cultura, como as tarifas mais baratas e um alcance superior ao da TV à cabo,  além de um acervo um pouco mais receptivo em comparação ao cinema tradicional para produtos  fílmicos de fora do eixo estadunidense, exemplificado, por exemplo, com a ascensão das séries  coreanas na Netflix. No entanto, é notória ainda a reprodução por esses serviços da mesma lógica  de desinteresse pelas produções amazônidas vigente no setor de exibição e de distribuição desde o  século XX. 

O professor Rubens Rewald, em entrevista ao Jornal da USP, é ainda mais categórico ao  afirmar que, embora as plataformas de streaming estimulam e financiam a produção audiovisual, “a padronização de conteúdos e o interesse pela venda fazem com que obras não  convencionais e alternativas percam espaço [nesses meios]”, complementando que os filmes de  mais risco passam por um período conturbado com a diminuição da importância do cinema como janela de exibição. Assim, ainda que a situação os filmes amazônidas não tenha se alterado com a  queda de frequência ao cinema tradicional – espaço que nunca os acolheu de fato -, é necessário  um cuidado redobrado para que as produções de polos periféricos não sejam mais uma vez  ignoradas pelo setor de exibição nas plataformas streaming. Dentro do modesto universo de obras  realizadas na Amazônia que conseguem ocupar esses espaços podemos citar a presença de Para Ter Onde Ir, hospedada atualmente na plataforma Amazon Prime Vídeo e Noites Alienígenas, na Netflix. 

Usualmente, as poucas obras produzidas na região que são inseridas nessas plataformas  trazem um olhar de fora para essas locações, como é o caso da segunda temporada da série Cidade  Invisível (2021), criada por um carioca (Carlos Saldanha) e gravada no Pará após a primeira  temporada ser alvo de críticas por levar elementos do folclore nortista para o cenário do Rio de  Janeiro, que já foi ostensivamente explorado no audiovisual.  

É evidente que existem formas responsáveis de se trazer um olhar externo para a Amazônia,  entretanto não se pode retirar o protagonismo da classe artística local quando se trata da concepção  de projetos audiovisuais na região, haja vista que, além de ser essencial que os trabalhadores desse  mercado historicamente apagado tenham a oportunidade de exercer suas profissões, é preciso que  as vozes amazônidas estejam por trás da criação da identidade veiculada a essas obras. Nesse ponto, destaca-se que uma representação jamais será apenas o objeto representado em si, mas sempre uma reprodução dele sob a perspectiva de quem o representa.  

Como exemplo disso, relembra-se que Silvino Santos registrava a exuberância da floresta  amazônica por uma égide de exotismo porque os grupos que o financiavam desejavam atrair  novamente o interesse do capital brasileiro e estrangeiro para a região, assim como Líbero Luxardo  construía intencionalmente em seus cinejornais uma imagem romantizada de Magalhães Barata,  seu amigo e liderança do partido em que Luxardo era filiado (PSD). Se até essas imagens  de caráter documental são impregnadas pelos valores de quem as produz, é necessário um cuidado  ainda maior para que a ficção, segmento com um compromisso ainda menor com a realidade, não seja pensada apenas sob a perspectiva dos grupos dominantes, e, mais que isso, é preciso assegurar que a ideia que esses grupos marginalizados têm sobre si e sobre o espaço que residem, sintetizadas no audiovisual amazônido, cheguem ao público. 

Silva (2017) contabilizou que 80% das 125 produções audiovisuais tocantinenses que  catalogou estão disponíveis em plataformas de vídeos gratuitas como o YouTube e o Vimeo. No  entanto, ligadas a um mercado audiovisual fragilíssimo e a um setor de distribuição local ainda quase inexistente, representado em 2017 por uma única empresa, é notável que não há em termos  gerais nenhuma estratégia de divulgação ou de distribuição associada à postagem dessas obras, que não são distribuídas, mas despejadas na internet.  

Acerca disso, Silva pontua: 

Com a massificação da Internet, os modelos de exibição e distribuição de filmes mudaram,  como também a produção cinematográfica. Hoje há projetos específicos para canais de  YouTube ou filmes feitos para a plataforma stream, que nem chegam a ter a sua estreia em  uma sala de cinema. Contudo, a Internet permite uma visualização maior da cadeia  cinematográfica. No caso do Tocantins, o realizador, que normalmente também é produtor  de suas obras, pode ter uma visão do caminho que o seu filme poderá percorrer. No  entanto, na generalidade, como já dito nas entrevistas, a distribuição e exibição dos filmes  ainda não é uma preocupação dos realizadores, porém o cenário está mudando e a Internet  é o principal meio que os produtores poderão utilizar para que os seus filmes sejam vistos  por pessoas de outros estados. Todavia, é necessário planejar a distribuição e exibição, como se planejam a produção para que isso seja possível. 

Tem-se, portanto, uma visão do mercado produtor que aponta para a necessidade de melhor  planejamento da vida da obra audiovisual brasileira para outras janelas que não apenas as salas de  cinema, que não tem conseguido dar conta de equilibrar a balança da distribuição do filme nacional. O streaming se apresenta como um caminho possível para não só exibir a produção nacional como também investir em novas produções, todavia o audiovisual produzido distante do eixo tem sofrido com a mesma dificuldade de acesso a estes espaços.  

É importante considerar que as produções realizadas por amazônidas não têm encontrado  espaço nas grandes plataformas e nem mesmo nas de nicho, além disso, por vezes é até difícil para  o pesquisador mapear a produção cinematográfica dos últimos anos, pois os relatórios produzidos  pela Agência Nacional de Cinema tratam de números de CPBs emitidos por região e não os títulos  na internet. Fazendo uma simples pesquisa em mecanismo de busca, neste sentido, a plataforma  AmazôniaFlix se apresenta como uma solução para reunir a produção feita na Pan-Amazônia e  criar o espaço para que o público conheça o cinema feito nesta Região. 

3. O AMAZÔNIAFLIX: A FLORESTA DO CINEMA E O CINEMA DA FLORESTA 

É sob o panorama do boom dos streamings durante a Pandemia do Covid-19, que em  setembro de 2020 é criado a AmazôniaFlix, a primeira plataforma de streaming da Amazônia, idealizada pelos cineastas amazônidas Zienhe Castro e Manoel Leite com o intuito de difundir e  internacionalizar as produções audiovisuais feitas dentro das fronteiras da região Pan-amazônica,  em solo brasileiro e estrangeiro. Tendo consciência da vigente dinâmica virtual no mercado de  distribuição e de consumo ao produto audiovisual, a plataforma intenciona ser representante de  uma camada excluída nesse contexto, que cresce e se fortalece mundialmente, afinal, protagoniza  uma revolução na linguagem e na forma de contemplar a produção audiovisual.  

A plataforma apresenta como objetivo: 

Ao tornar a produção cinematográfica amazônica acessível mundialmente, este projeto  tem como um dos seus principais objetivos marcar a presença da nossa cultura nesse novo  mundo do mercado da distribuição streaming, agindo como incentivo para que mais filmes  sejam produzidos na nossa região. […] Ao mesmo tempo, o mundo conhecerá o CINEMA  de identidade amazônica, e com ele a nossa cultura, através da nossa voz, da nossa  imagem, e dos frutos do nosso próprio talento. (AMAZÔNIAFLIX, 2020). 

Sendo assim, a plataforma se promove enquanto um dispositivo de incentivo a essa  produção, ressaltando também o protagonismo da participação de realizadores locais para construir um portal que espelhe a Amazônia através dos próprios amazônidas. 

Figura 1 – Imagem de capa da plataforma AmazôniaFlix.

Fonte: AmazôniaFlix (2023) 

Sob um design fluido e prático, a plataforma gratuita tem em seu catálogo curtas, longas,  séries, animações e documentários que foram produzidos na região amazônica. O catálogo  “Degustação”, feito para funcionar permanentemente no ciberespaço, conta atualmente com um  pouco mais de 40 títulos paraenses na Mostra Égua do Filme. Essas obras estão hospedadas em um  servidor externo ao do AmazoniaFlix, mas a proposta é que haja posteriormente o lançamento da plataforma completa, disponibilizando no servidor gerido pelo próprio website uma versão  expandida do acervo já existente.  

Ademais, ressalta-se a atuação desse ciberespaço para exibição virtual de Mostras e  Festivais, tendo a exibição de filmes dentro do servidor da plataforma por um tempo  predeterminado. A manutenção da publicação de novas obras acontece em paralelo à dinâmica  desses circuitos, sobretudo ao Festival Pan-Amazônico de Cinema – Amazônia FiDoc, e em contato  com os autores para exibições especiais. De acordo com Zienhe Castro, a gestão do conteúdo que é exibido decorre de um árduo processo de curadoria: “a gente negocia com os realizadores e exibe os filmes, alguns entram por pouco tempo, por poucos dias, outros ficam lá disponíveis.” (O LIBERAL, 2022).  

A plataforma não opera integralmente como um serviço de streaming constante, considerando  a descrição de Comparato (2018) dos critérios técnicos característicos desta forma de consumo, pois não executa o processo de transferência de dados como fornecedor ao usuário, utilizando predominantemente um servidor externo para realização dessa tarefa, fazendo com que nesta  primeira fase, majoritariamente seja feita a intermediação da transmissão das obras que são  hospedadas no servidores do Vimeo e YouTube, site de compartilhamentos de vídeos.  

Aproximando-se, na prática, mais como um canal para a concentração do acesso e exposição deste acervo, a priori, a ideia é que este seja temporário, transicionando posteriormente para um sistema gerido completamente dentro dos servidores do AmazôniaFlix, sendo o provedor do streaming. A plataforma tem atuado ultimamente no formato misto, quando a realiza a exibição de obras por um período específico de tempo em que o conteúdo fica aberto para visualização e votações, geralmente vinculadas a um Festival.

Para analisar a sua importância junto à Amazônia Legal, parte brasileira da floresta, para a popularização e preservação destas obras, pode-se classificar o AmazôniaFLIX como uma plataforma de VOD gratuita. A plataforma desempenha um papel-chave para trazer e garantir a visibilidade para o cinema e o audiovisual amazônico, visto que, o setor de distribuição não tem o espaço adequado dentro do mercado exibidor nacional dominado por produções estrangeiras, em especial, as norte-americanas.  

Como Manuel Leite manifesta:

Nós somos uma parte não só essencial, como faltante dentro da cadeia de produção  cinematográfica brasileira, porque a grande parte dos conteúdos que são produzidos com  dinheiro da Ancine, fica esquecida em algum lugar, porque não tem cadeia de distribuição (FÓRUM DOS STREAMINGS, 2023). 

Segundo Zienhe Castro, a plataforma contabilizava mais de 10 mil usuários com cadastro  ativo na plataforma. Neste sentido, a AmazôniaFlix emerge da necessidade de atuar dentro da  cadeia de distribuição cinematográfica brasileira, como uma plataforma de streaming com  curadoria que serve como uma janela de exibição alternativa no meio digital, facilitando o acesso  a filmes amazônicos que antes de sua criação não possuíam um canal adequado para o conhecimento deste acervo, limitando o acesso e seu consumo somente em festivais e circuitos independentes de exibição, haja visto que, numa perspectiva comercial brasileira, a região é a mais afetada com a negligência estrutural histórica do setor exibidor com o cinema nacional. 

4. CONCLUSÃO 

O contexto de crescimento da produção audiovisual brasileira com a retomada das políticas  públicas para o setor e com o investimento do setor privado por meio das plataformas de streaming apontam para um futuro promissor na realização de projetos diversos, que buscam  representatividade para a alimentar a procura do público por novos produtos. Entretanto, é  necessário que os produtores e empresas produtoras começam a refletir sobre o espaço para as  produções nacionais, em especial, as amazônidas, neste contexto, de maneira que o produto  audiovisual não sofra as mesmas dificuldades já existentes com relação à exibição e distribuição  deste conteúdo, de maneira que esteja disponível para todos. 

Sendo assim, evidencia-se a relevância e um fortalecimento da plataforma AmazôniaFlix como espaço qualificado para se encontrar a diversidade e regionalização do conteúdo que está  sendo colocado para acesso do público, assim como para a preservação da memória de parte da  produção amazônida, na tentativa de driblar o esquecimento e a perda do acesso deste acervo  importante da história cinematográfica brasileira. 

REFERÊNCIAS 

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BRYAN, Samuel. Com apoio do governo do Estado, filme acreano Noites Alienígenas tem pré-estreia em Rio Branco. Governo do Acre, Rio Branco, 21 de mar. de 2023. Disponível em:  <https://agencia.ac.gov.br/com-apoio-do-governo-do-estado-filme-acreano-noites-alienigenas tem-pre-estreia-em-rio-branco/>. Acesso em: 21 de jul. de 2023. 

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SANCHES, Pedro Alexandre. A cultura do Acre fica visível com o filme ‘Noites Alienígenas’ .  Amazônia Real, Manaus, 05 de jul. de 2023. Disponível em:  

<https://amazoniareal.com.br/cultura-do-acre-visivel-com-filme-na-netflix/>. Acesso em: 23 de  jul. de 2023. 

STOCO, Sávio; MONTEIRO, Lúcia. Dossiê: cinemas amazônicos em tempos de luta. C legenda, Rio de Janeiro, v. 1, n. 38-39, p. 9-14, mai. 2020. Disponível em:  https://periodicos.uff.br/ciberlegenda/article/view/50077/29198

RÉGIO, Marília Schramm. Aspectos da distribuição cinematográfica no Brasil: reflexões sobre  majors e independentes. ORSON, Pelotas, n.9, p. 45-61, dez. 2015. Disponível em:  orson.ufpel.edu.br/content/09/artigos/primeiro_olhar/03_marilia.pdf 

SILVA, Thuanny Vieira. Palmas, eu longe/gosto de tu!: produção e Circulação de Cinema no  Tocantins. Dissertação (mestrado em cinema) – Faculdade de artes e letras, universidade da Beira  Interior, Covilhã. 2017. 

BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. O Sociólogo e o Historiador. Belo Horizonte:  Autêntica, 2011. 

FADANELLI, Fernando. O efeito da utilização de streaming em outros meios concorrentes.  Trabalho de Conclusão de Especialização, (MBA em Gestão Empresarial e Empreendedorismo),  Feliz, 2020. 

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS 

CIDADE Invisível. Criação: Carlos Saldanha. 2021 – Netflix. 

NO PAIZ das amazonas. Direção e montagem: Silvino Santos e Agesilau de Araújo. Manaus e  Rio Branco: J.G. Araújo Produções Cinematográficas, 1922. YouTube. 

NOITES alienígenas. Direção e roteiro de Sérgio de Carvalho. Rio Branco: Saci Filmes, 2023.  Formato digital. 

O COMEDY club. Direção e roteiro: André Araújo. Produção: Gabriel Deeaz e Hugo Gutierry  Leite de Farias. Tocantins: SuperOito Produções, 2022.  

O REFLEXO do Lago. Direção e Roteiro: Fernando Segtowick. Pará, Marahu Produções, 2022. 

PALMAS, eu gosto de tu. Direção: André Araújo, Eva Pereira, Hélio Brito, Marcelo Silva,  Roberto Giovanetti e Wertem Nunes. Tocantins: SuperOito Produções, 2020. 

PARA Ter Onde Ir. Direção e Roteiro: Jorane Castro. Produção: Jorane Castro e Ofir Figueiredo.  Belém: Cabocla Produções, 2016. Amazon Prime Vídeo. 

PERDE o Pará seu grande líder. Direção: Líbero Luxardo. Belém: Produções Líbero Luxardo,  1959. YouTube. 

ROSINHA, a rainha do sertão. Direção e roteiro de João Batista de Assunção. Rio Branco:  ECAJA Filmes, 1974. Super 8mm. UM DIA qualquer. Direção e argumento: Líbero Luxardo. Produção: Líbero Luxardo e Teixeira  de Melo. Belém: Líbero Luxardo Produções Cinematográficas. 1965. YouTube.

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