VAI NA FÉ (2023): UMA RELEITURA DO PASSADO COMO REPARAÇÃO PARA UM FUTURO PROMISSOR (DA TELENOVELA?)

Por Vitor Hugo Antonini Pereira

OBJETIVO

O presente ensaio visa discutir como a representatividade (étnica, sexual e religiosa) é desenvolvida na telenovela Vai na Fé (2023), de Rosane Svartman, a partir das esferas cinematográficas e narrativas (roteiro, cenografia, trilha sonora, etc.), assim como no âmbito da produção (marketing e patrocínio), apontando para uma possível tendência a ser seguida frente às discussões sobre o futuro da teledramaturgia brasileira.

INTRODUÇÃO

A TELENOVELA: ENTRE O ANTES E O AGORA

O futuro das novelas tem se tornado uma pauta constante nas discussões sobre teledramaturgia: crise de audiência; adesão ao streaming e a exclusão e substituição de faixas de horários (como o fim de Malhação e a criação de um segundo Vale a pena ver de novo), entre outras. Desde Bom Sucesso (2019), de Rosane Svartman e Paulo Haim, e a reprise de Pega-Pega (2017), de Daniel Ortiz, durante a pandemia da COVID-19 em 2021, a faixa das 19 horas não vinha colhendo bons números de audiência com as pouco lembradas Quanto Mais Vida, Melhor! (2021), de Mauro Wilson, e Cara e Coragem (2022), de Claudia Souto.

Em meio a essa dúvida sobre qual caminho seguir para uma maior relevância do horário, a esperança de uma melhora estava justamente na nova novela de Svartman, Vai na Fé. Longe de ser uma vã confiança, foram várias as estratégias aplicadas sobre a obra para adquirir o alcance que teve, visto que conseguiu ao longo dos 7 meses de exibição recuperar boa parte da audiência perdida no horário e adquirir críticas majoritariamente positivas. A ação que melhor parece explicar seus resultados está na aposta certeira no debate sobre representatividade e diversidade, pautas atuais que, ainda que tardiamente, necessitavam ser mais exploradas pelas telenovelas.

VAI NA FÉ: ENREDO EM DOIS TEMPOS

Quantos protagonistas negros apareceram na teledramaturgia brasileira? Contam-se nos dedos. Quantos destes estavam nos tempos atuais ao invés de sempre vestirem o clássico papel do negro escravizado do século XIX? Talvez Taís Araújo como Helena em Viver a Vida (2009), de Manoel Carlos ou (de novo) Taís Araújo como Preta em Da cor do pecado (2004), de João Emanuel Carneiro, ou ainda Taís Araújo (novamente!) como Clarice em Cara e Coragem, e mais uns outros poucos personagens além desses. A questão é que Vai na Fé parece ter entendido o problema ao escalar mais de 70% de seu elenco com atores negros, inclusive o casal principal, Samuel de Assis e Sheron Menezzes, que também é a protagonista.

Entretanto, limitar-se a trazer uma representatividade apenas ao elenco seria raso demais, sendo, neste ponto, onde a novela parece mais se destacar: todo o enredo perpassa por uma discussão sobre a diversidade e representatividade (do negro, do bissexual, do adepto a religiões de matrizes africanas, etc.), ao trabalhar em sua estrutura, uma dinâmica entre passado e presente que visa reler e reparar uma espécie de apagamento social de certos acontecimentos e personagens, que extrapolam o mundo ficcional e dialogam com o mundo real.

Na trama principal, temos Sol (Sheron Menezzes), moradora de Piedade, no Rio de Janeiro, que vende quentinhas para ajudar na renda da família e que passa a ser dançarina de Lui (José Loretto), relembrando seu passado de princesa do Baile do Nei, famoso baile funk dos anos 90 e 2000 na comunidade onde mora. Com a morte de seu marido Carlão (Che Moais), Sol reencontra Ben (Samuel de Assis), seu ex-namorado da época do baile e Theo (Emílio Dantas), melhor amigo de Ben, e acaba precisando manter sua filha Jenifer (Bella Campos) longe de ambos, após a menina descobrir que seu pai verdadeiro não era Carlão, mas talvez, Ben ou Theo.

Em resumo, a história principal explicita bem a retomada do passado em conflito com o presente pela protagonista: é o passado de dançarina que lhe proporciona uma profissão mais estável e rentável do que a de vendedora ambulante, ao mesmo tempo em que também é o responsável pelas críticas das pessoas da comunidade evangélica da qual frequenta, fazendo-a culpar a si mesma por sua gravidez imprevisível, recaindo à “culpa cristã” do pecado e a omissão do pai verdadeiro da filha.

O subtexto de cunho jurídico na trama também colabora a esse dinamismo temporal: Jenifer é bolsista por cota numa renomada faculdade de direito e tem aulas com Lumiar (Carolina Dieckmann), atual esposa de Ben, ambos advogados. Em seu ofício, o casal se vale da releitura de acontecimentos anteriores numa reinterpretação de fatos para reparar algum crime cometido, utilizando-se sempre do discurso referencial (fatos ocorridos anteriormente à fala apontando para o passado), dentro do contexto jurídico. É dentro dessa esfera que Jenifer deseja seguir carreira e, portanto, se faz valer disso para resgatar o passado da mãe e descobrir seu pai verdadeiro.

REVISÃO, REINTERPRETAÇÃO, REPARAÇÃO: BRASIL?

A tensão entre o antes e o agora, gerada pelo fruto do antes (Jenifer) que, no agora, resolve retornar ao ponto inicial ao desenterrar o passado, abre feridas mais escondidas do que cicatrizadas depois de um pouco mais de ¼ da trama da novela. Seu pai verdadeiro é Theo, que estuprou Sol há 20 anos atrás e a engravidou armando para que ela terminasse com Ben. O presente, portanto, sai de uma esfera de estabilidade e os conflitos se intensificam: o abuso de Sol vem à tona e ela precisa lidar com o trauma que tentou esconder a vida inteira; Ben desfaz a amizade que tinha com Theo e este precisa mentir para se defender do crime que cometeu, recorrendo à falsificação dos fatos.

Toda revisão dos acontecimentos pede uma reinterpretação: Sol e Ben relembram o romance que tiveram e se apaixonam, Jenifer se arrepende de culpar a mãe por mentir e Theo vira um divisor de águas para os conhecidos: alguns o defendem, outros se afastam. E se a reinterpretação é verídica, o processo clama por uma reparação. O crime de abuso feito por Theo é levado ao tribunal por Ben, que agora é advogado de Sol e de outras mulheres vítimas de Theo, todas elas com a aparência idêntica a da protagonista. 

É por meio desse processo de relação entre duas temporalidades que parece haver certa simbologia com o debate de representatividade feito atualmente, em que a questão étnica manifestada no elenco e no enredo apresenta sua maior crítica à sociedade brasileira. Não é somente o abuso de Theo para com Sol que está em jogo, mas também a figuração que isso traz: um homem branco que abusou de uma mulher negra separando-a de seu amor também negro, cabendo a filha, fruto deste abuso, voltar ao passado traumatizante para resgatar a verdade, culminando na punição do homem branco e na concretização do amor preto. 

Vai na Fé traz uma narrativa que esboça a História; escancara a História; repara a História, mas admite que não pode modificá-la. Ainda que admita a impossibilidade da reconstrução passadista, o enredo mostra a possibilidade de reparação: Theo é preso e pagará a “justiça dos homens”, enquanto Sol se casa com Ben, reatando o romance rompido há 20 anos atrás. Jenifer, como promessa de um futuro que se constrói tanto na reparação do passado quanto na luta do presente, segue como advogada decidida a reparar os crimes ainda impunes pelos outros.

A representatividade encontra destaque, de fato, no elenco negro e representatividade cultural preta, mas também em outras formas de diversidade nas tramas secundárias: Clara (Regiane Alves) passa a namorar uma mulher depois de se divorciar de Theo; Benjamin se converte ao candomblé depois de ter visões que falavam sobre Xangô (Orixá ligado a justiça), e Yuri (Jean Paulo) também se descobre bissexual em sua trama. 

A CÂMERA, O SOM, O FUNK, A PROPAGANDA

É imprescindível o destaque à direção artística de Paulo Silvestrini. O trabalho da cinematografia trabalha os paralelos temporais entre 2023 e os anos 2000. Os flares e blurs, reflexos e desfoques nas imagens, evocam o sentimento de lembrança junto com as luzes fortes entre tons quentes e frios sempre que as personagens se lembram das noites no baile funk 20 anos antes, como uma juventude intensa, porém distante e imprecisa – daí a necessidade de voltar ao passado para esclarecer os fatos. A montagem justapõe ou alterna entre os personagens no passado e no presente, como quando o Ben do presente encara o Theo do passado na viatura ou depondo no tribunal, lugar que na verdade deveria ser ocupado pelo Theo no presente – visto que acontecem no agora – demonstrando a impossibilidade de separar passado e presente na trama. 

A trilha sonora também mescla músicas atuais e antigas, como a trilha de Ben e Sol, Garota Nota 100, de MC Marcinho, sucesso do funk no final da década de 90, interpretada na novela pela voz da cantora Ludmilla. A própria música tema, Vai dar Certo, de MC Liro e MC GM, traz consigo a ideia de superação e “ir na fé” que a novela transmite, além de que conta, por meio das imagens da abertura, o dia-a-dia de muitos brasileiros: a primeira imagem é uma mulher acordando com o despertador às 6:27 da manhã. Acompanhamos alguém fazendo o café, se arrumando e indo trabalhar e estudar. Em seguida, alguém prepara uma marmita para vender no almoço (como Sol fazia), e, mais tarde, saindo do trabalho e chegando em casa para festejar com os amigos ou assistir à novela. Curioso como a abertura se encerra mostrando o pôr-do-sol, horário próximo ao início da novela, como se representasse todos os passos do público da novela em seu dia-a-dia até o momento em que se sentam no sofá para assisti-lá.

No mais, Vai na Fé ainda segue apontando tendências para o futuro da teledramaturgia através do poder mercadológico: se tornou a novela das 19h com maior faturamento – a anterior era Cheias de Charme (2012), de Felipe Miguez e Izabel de Oliveira. A novela contou com mais de 15 marcas patrocinadoras, que passaram a inserir o merchandising dentro do próprio enredo, como no capítulo 152, em que uma cena da novela continua nos comerciais por meio de uma propaganda televisiva. Ainda há muito o que se discutir sobre a problemática desse desdobramento mercadológico inserido na trama, como propaganda quase que forçada, ainda que seja uma solução encontrada para engajamento publicitário. 

Apesar de tudo, Vai na Fé aponta, ao menos, para um futuro promissor das novelas, que agora também miram sucesso no streaming, com projetos da HBO Max e Netflix, sem contar a já exibida originalmente no Globoplay, Todas as Flores (2022), de João Emanuel Carneiro, que trouxe a inserção da propaganda de determinadas marcas dentro da novela, já que não há intervalos comerciais no streaming. 

CONCLUSÃO

Longe de ser a solução para os problemas de representatividade, como apontado por Antônio Pitanga, ator e diretor: “A dívida é muito grande. Você não adoça a boca do seu filho depois de ter chicoteado há décadas.[…]” . Um futuro incerto, talvez, mas longe de ser amedrontador. O povo brasileiro ainda tem muito que ver (e se ver!) nas telenovelas. Retomando Pitanga: “Onde está esse negro, onde estão essas mulheres negras, proporcionalmente, em áreas estratégicas? Não é fazer uma novela. Quero mais.” É necessário sempre querer mais, e sempre cobrar mais.

REFERÊNCIAS

VAI na fé. 2023. Direção geral: Cristiano Marques. 2023 (8055 minutos)

MORATELLI, Valmir; FRAGUITO, Giovanna. O puxão de orelha de Antônio Pitanga sobre a inclusão de negros na TV Globo. Veja. 6 de jul. de 2023. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/o-puxao-de-orelha-de-antonio-pitanga-sobre-inclusao-de-negros-na-tv-globo/>. Acesso em: 19 de ago. de 2023.

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