Pré- Estreia : Xingu no Cinusp

Por Juliana Pinheiro Prado*


Aconteceu, no dia 20 de março de 2012, na sala de exibição do espaço Cinusp no campus da capital da USP, a pré-estréia do filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger. Após a exibição, com o espaço lotado e pessoas sentadas no chão e nos corredores, foi aberto um debate com o diretor, que veio acompanhado do ator Caio Blat, um dos protagonistas do filme.

Cena do Filme Xingu com os Atores Caio Blat, Felipe Camargo e João Miguel

Xingu é um filme que conta a história dos irmãos Villas-Bôas, Orlando, Carlos e Leonardo, principais idealizadores da criação do Parque Nacional do Xingu, um espaço destinado a abrigar grupos indígenas em uma região entre o cerrado e a Amazônia. A história dos Villas-Bôas, no filme, se estende por cerca de 40 anos, passando por todas as dificuldades de deslocamento, no contexto da Marcha para o Oeste, para se atingir locais ainda não explorados. Na trama há espaço para outras dificuldades, como as de contato e de comunicação com os grupos indígenas, as de negociações com o governo federal, as de convivência e luta contra fazendeiros e latifundiários que cobiçam terras da região e as de saúde.

Hamburger, ao responder a uma pergunta sobre a satisfação de realizar o filme e de como se deu a realização do mesmo, mostra que dificuldades estão longe de serem exclusividade dos irmãos Villas-Bôas: “Prazer foi – eu não digo o tempo todo –, mas o que levou a gente a conseguir chegar até o final do filme foi o comprometimento, o prazer, a responsabilidade, o deslumbramento, a emoção de estar contando essa história. E não só da equipe, mas do elenco, dos técnicos, da produção. A gente ficou muito perto, várias vezes, de não conseguir ir até o final. Foi uma filmagem muito difícil pra todo mundo. Não só fisicamente, individualmente. Muita gente ficou doente, meu filho foi o primeiro a ficar doente, na vésperada filmagem. E depois dele foi quase todo mundo. Dificuldades de transporte, com queimada, muitos imprevistos… Não teve um dia que a gente zarpou pra fazer algo e fez. Chegou lá tinha que mudar um pouco, improvisar um pouquinho e jogo de cintura. O cenário que a gente tinha escolhido queimou, então no mesmo dia tinha que achar outro, de barco, pelo rio. E depois que achou tinha que subir todo mundo, todo mundo subindo de barco. Muitas vezes a gente poderia ter desistido que não seria nenhum absurdo. A gente só chegou ao final por conta desse comprometimento de todo mundo. Teve dia que o almoço não chegou, por exemplo, porque o avião não conseguiu descer com o almoço. E tem uma máxima em cinema que é: peça qualquer coisa pra equipe, mas não atrase 10 minutos do almoço, senão você perde o filme.” O ator também comentou: “Carros quebraram várias vezes. O ônibus dos índios, no primeiro dia. Os índios vieram num ônibus que quebrou no meio do caminho. Era uma estrada que não tinha sinal de telefone. Seis horas no meio do deserto, só carro 4 x 4. Só no outro dia, quando outro carro passar por ali é que vão saber que você está ali. ”

Para o processo inteiro da realização de Xingu foram necessários quatro anos e meio. Destes, segundo Hamburger, de um e meio a dois anos foram utilizados para pesquisa. A equipe chegou a ir duas vezes ao Xingu conversar com os índios. O diretor afirmou que há muito pouco registro e que os próprios Villas-Bôas escreveram alguns livros, mas que são especialmente ilustrativos, o que os obrigou às viagens de pesquisa. Para além disso, havia um interesse em colocar no filme o ponto de vista do índio, motivando muito tempo de conversas. “Daria pra fazer, com a coleção de histórias que a gente tem, uns quatro ou cinco filmes. E aí a gente foi amadurecendo, escolhendo um ponto de vista, escolhendo uma pegada, selecionando as histórias. Então a gente foi filmar, foi produzir.”

Cartaz do Filme dirigido por Cao Hamburguer

As filmagens ocorreram em duas fases, uma no Tocantins, na região do Jalapão e do Araguaia, para reproduzir os mesmos biomas e geografia do Xingu – apesar de não ter havido uma grande preocupação com a reprodução precisa da paisagem –, e outra no próprio Xingu, para que pudessem ser filmadas as aldeias que só existem lá. Para a direção foi um desafio filmar ao ar livre, sem os elementos que ajudam a fazer a cena, como uma escada, uma porta ou um telefone, tendo que lidar com espaços abertos, rios e árvores. Além disso, havia, como ele bem disse, “a grandiosidade do negócio”, a paisagem, as cenas com muitas pessoas, uma história que se passa em 40 anos. No filme houve uma aposta nos atores, de fazer com que a câmera desse o tempo aos atores, com destaque ao tempo dos índios, que é diferente, afirmou Blat.

O treinamento dos índios ocorreu simultaneamente ao treinamento dos atores profissionais. Enquanto pela manhã, ao lado de sertanejos e de indígenas, os atores aprendiam a manejar ferramentas, a encontrar água e alimentos, a sobreviver na mata, à tarde era a vez dos índios, que, ao lado dos atores, faziam exercícios de interpretação e ensaios. Em um momento do debate, Caio Blat revelou: “Foi realmente um processo fascinante, esse de troca, de encontro, de como eles começaram a projetar na gente os Villas-Bôas. Como a gente chegou lá no barco, como eles pintaram a gente, fizeram uma dança com a gente, nos receberam… Foi uma troca muito forte, muito verdadeira, muito bonita.” Falando ainda da experiência de trabalhar com os índios, Blat reiterou a projeção dos Villas-Bôas neles: “Às vezes os índios chegavam no meio de um ensaio, de um improviso, e começavam a gritar com a gente, a discutir com a gente na língua deles. Os índios têm muitas questões com os Villas-Bôas, muitas críticas. Eles descarregaram um pouco da raiva que eles têm em cima da gente. Da gratidão que eles têm também. De certa forma eles projetavam na gente.”

Quanto ao fato de trabalharem com não-atores, tanto o diretor quanto o ator concordaram na resposta. Para eles, esse é um exercício interessante, pois o não-ator traz algo novo ao filme. Blat ilustrou seu ponto de vista com um comentário a respeito de uma cena muito importante do filme, na qual há um encontro de Leonardo Villas-Bôas, representado pelo próprio Caio Blat, com uma índia. “A gente teve que descobrir essa encenação no escuro. Todos nós ensaiamos essa cena no escuro, no meio da mata, tentando ver como a câmera conseguia enxergar o brilho da lanterna e como que eu ia perseguindo essa índia, e chamando-a. Eu acho que essa cena foi um símbolo de como foi o processo de troca, de como eu me comunico com ela. E a índia começou um improviso: começou a falar na língua dela.”

Durante as perguntas, uma das espectadoras presentes manifestou o seu encantamento pela cena em que ocorre o primeiro contato dos irmãos Villas-Bôas com os índios, aproveitando para perguntar acerca da sua procedência ou originalidade. Cao Hamburger respondeu da seguinte forma: “A cena do encontro, ela é muito interessante. Eu conversei sobre essa história com, sei lá quantos índios, muitos, muitos. Eu fui duas vezes ao Xingu, passando em todas as aldeias, e conversando, conversando, conversando com gente que tinha participado da história, com descendentes… Os mais velhos tinham conhecido os Villas-Bôas, os mais novos ouviam desde criança. E essa história do primeiro encontro, os antropólogos chamam de mito. Já é um mito. Todos contam exatamente igual. O jeito como eles apareceram no rio. Como eles [os índios] estavam pescando, como se assustaram. A gente resolveu não traduzir as falas por uma questão de lógica. A gente tá vendo do ponto de vista dos Villas-Bôas, e os Villas-Bôas não entendiam naquele momento o que era falado. Um senhor que trabalhava, que fez muitas expedições com os Villas-Bôas quando era jovem – ele tinha 12 anos quando viu pela primeira vez os brancos chegando e ele lembra – falou-me que achou que eram tamanduás vestidos, por conta das barbas e do cabelo grande e sujo. Fediam. A gente fez essa cena do abraço, que era para estar filmada como um mito. Tem uma coisa meio mítica, até. A gente ouviu sempre assim, desse mesmo jeito. A gente produziu assim. Bem provável que não tenha sido exatamente desta maneira, que tenha sido mais ou menos. Mas a gente foi muito fiel ao mito que existe no Xingu.”

Questionado sobre os patrocinadores Eletrobrás e BNDES e a posição assumida no filme, em especial levando-se em conta o contexto de discussões acerca do projeto da usina de Belo Monte – sobre o rio Xingu – o diretor comentou: “Eu acho maravilhoso que nós vivemos em uma democracia e essas duas empresas não se deixaram influenciar por questões de interesses próprios delas e aprovaram editais de filmes que podem levantar questões que elas terão que se justificar num futuro. A gente em cinema, no Brasil, não pode se dar o luxo de dizer: ‘ah, esse dinheiro eu não quero!’, se não não faz o filme. E eu acho bom que esse filme tenha incomodado, pois essas questões, para terem mobilizações, precisam incomodar. Eu, pessoalmente, não só estou preocupado com Belo Monte, mas, no momento, acho que Belo Monte é só um exemplo mais visível de uma política que considero atrasada, retrógrada, e que o Brasil está perdendo uma chance de pensar em outras fontes de energia e de preservar a Amazônia, que é um lugar que só o Brasil tem. Eu, pessoalmente, sou contra, apesar de não ser um especialista, de não saber todos os prós e contras. Especialmente por ser no rio Xingu, pois o rio Xingu é um símbolo de resistência.” O ator Caio Blat também fez questão de expor seu ponto de vista: “Nós, que estivemos lá, que fizemos o filme, temos liberdade total para nos posicionarmos, não temos nenhum compromisso com os patrocinadores do filme, nunca houve isso, pelo contrário. O nosso filme, todo o modelo e a pesquisa, foi feita não só por pesquisadores, como também por povos indígenas, versões, muitas histórias. Muitas histórias que estão no filme, fatos que estão no filme, foram contados só pelos índios. Não existia registro por historiadores ou antropólogos. Eram histórias que só os índios guardavam. E a gente pôde, pessoalmente, ver – porque a gente fica muitas vezes aqui em São Paulo tentando ler os dados, tentando entrar nesse jogo e poder participar do debate, mas a gente não imagina o que é estar lá, isolado. E o que eu trago muito firme comigo é o temor dos índios, o olhar deles, o temor na voz. Eles estão realmente assustados. Primeiro porque quando a gente chegou, existia uma questão, que considero tão grave quanto Belo Monte: a questão do Código Florestal, que está sendo reformado. O mapa do Xingu, do parque, você pode ver do ar, do avião. A divisão é clara, tudo em volta está devastado. É soja, pecuária. São 500 pontos de queimada por dia no Mato Grosso. O rio Xingu não nasce dentro do parque, ele é alimentado por rios que vêm de fora do parque e se encontram ali, formando o rio Xingu. E esses rios já estão embarreirados antes de entrar no parque, pra irrigar essas plantações de soja. A água já não está entrando no parque como antigamente, a água não é mais cristalina, o fluxo do rio não é mais natural, e se puserem a hidrelétrica do outro lado, simplesmente o rio vai parar de correr. Imagina a simbologia, o sentido de um rio que corre, como o próprio símbolo da vida ali, no meio da mata, e eles falam que o rio vai virar um aquário, vai ficar fechado na cabeceira e fechado lá embaixo também. A situação é muito preocupante. Eles pediam muito que a gente fosse junto com eles até essas barreiras pra chamar atenção e participar um pouco. Quando a gente é ator, especialmente no cinema brasileiro, a gente acaba se tornando um pouco responsável pelos filmes que faz.”

Caio Blat e Cao Hamburguer

O diretor falou que, ao iniciar seu projeto de filmagem, a primeira surpresa aterrorizante que teve foi a de que o nível de discriminação e de preconceito que a sociedade brasileira tem com relação ao índio é muito grande. E que mesmo o Estado age de maneira violenta para com o indígena. O filme, que conta com uma fotografia clássica, finaliza com cenas fortes, de imagens documentais da época da construção da estrada Transamazônica. Hamburger fala que os irmãos Villas-Bôas já falavam do “abraço da morte”, com uma previsão do que aconteceria com a construção das barragens. Para ele, uma grande ironia é a imagem do ex-ditador Médice inaugurando a construção da Transamazônica em Altamira, justamente onde está sendo construída Belo Monte.

Caio Blat, mais adiante, explicou que as aldeias desenvolveram um sistema de satélite com gerador que é ligado fazendo com que os índios possam ter acesso à internet e possam assistir a uma programação nacional, como jornais ou novelas, e que, em seguida, o sistema é desligado e eles voltam-se à sua própria realidade cultural. O ator se questiona sobre qual o significado dessa realidade para os jovens índios, sobre quão séria é a escolha de permanecerem na aldeia e preservarem a sua cultura, especialmente quando têm a possibilidade de irem para a cidade estudar, trabalhar ou se estabelecer.

O clímax do debate se deu quando Hamburger explicou que os dois encantamentos que teve e que o motivaram a produzir o filme foram “primeiro a história dos irmãos Villas-Bôas, que, realmente, é uma história incrível, em seguida o quanto é atual, o quanto é importante a gente, através dessa história, pensar o presente e o futuro.” Para ele, mesmo sendo uma história que se passou há 50 anos, é um tema que persiste, em especial se for levado em consideração o preconceito que existe na sociedade brasileira em relação ao índio, a barreira que é construída em torno do assunto. O filme surge, assim, como uma tentativa de se iniciar um debate mais amplo. Para isso, o diretor buscou um filme que pudesse ser desfrutado, que contivesse aventura, humor, encantamento pela paisagem, pelas aldeias, pelos índios e que, assim, atraindo a simpatia do espectador, plantasse uma semente de reflexão, sem que para isso precisasse assustar o público com o caráter de denúncia, sendo essa a justificativa para que o filme, apesar das imagens reais fortes ao final, trouxesse a mensagem positiva da construção e preservação, pelo menos até os dias atuais, do Parque do Xingu.

Cao Hamburger, às pessoas que já saíam, ainda falou: “Eu queria pedir a vocês, quem gostou do filme, que compartilhem. A gente tem o trailer, que tá no Google. O trailer e as palavras de quem gosta é o que a gente tem pra divulgar e pra vencer os filmes americanos… Competir, né? Vencer…” (risos)

*Juliana Pinheiro Prado é estudante de Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).


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