Sinal e Ruído (Neil Gaiman e Dave Mckean, 1992)

Por Gabriel Pozzi*

Um cineasta decide escrever um filme sobre o apocalipse. Simultaneamente, recebe a notícia que tem um câncer incurável, e passa a viver seu apocalipse individual.

O mote da história é simples e direto. Em mais uma parceria do escritor Neil Gaiman com o ilustrador Dave McKean, a graphic novel “Sinal e Ruído” nos prova que sempre é possível explorar temas saturados como a morte por novos prismas.

“O mundo está sempre acabando para alguém. Esta é uma boa frase”

Publicada em 1992, a dupla já famosa por “Sandman” trouxe ao mundo uma bela história em quadrinhos repleta de melancolia e reflexões. Seria possível um diretor de cinema iniciar um novo projeto audiovisual sabendo que jamais conseguirá terminá-lo? Como escrever um roteiro baseado na temática da morte se você sabe que está fadado a ela em poucas semanas? A intertextualidade e, por que não, a metalinguagem de Sinal e Ruído é fascinante.

O cineasta, que não é identificado pelo nome na história, é um rapaz solitário, com poucos amigos, já um velho senhor, que sabe que seu único legado são seus filmes. Portanto há diversos momentos em que o personagem questiona quando é o momento exato de sua morte. Será aquele em que seu coração parar devido a sua enfermidade, ou aquele em que seus filmes não serão mais assistidos?

Imagens do filme sendo criado na mente do cineasta se misturam com imagens de sua vida real, ao mesmo tempo em que as reflexões levantadas pelo personagem podem tanto se referir à sua situação quanto ser falas do roteiro do filme. Aqui entra meu fascínio pela intertextualidade supracitada. No momento em que Gaiman escreveu a história, precisou pensá-la não apenas como uma história em quadrinhos, mas também como um filme. E a metalinguagem entra no momento em que o personagem do diretor explica como pensou naquelas cenas de cinema, que evidentemente foram pensadas pelo autor da HQ. Pode parecer confuso, mas como é extremamente bem executado, torna-se prazeroso.

McKean, um ilustrador fantástico, consegue fazer essa mistura sem deixar o visual da HQ caótico, afinal, a cada momento que os desenhos se tornam mais abstratos e confusos o leitor nota que aquilo faz parte da identidade da história, onde cada ruído pode ser incorporado como um sinal. O nome da HQ, inclusive, parte desse princípio da teoria da comunicação, onde o sinal é a mensagem que o emissor quer passar e o ruído é aquilo que a atrapalha. Reed, um personagem que ajuda o diretor em suas meditações, questiona essa relação. Para ele, os ruídos seguem um padrão, e da mesma forma que o sinal, fazem parte da mensagem e dizem algo importante.

“Tudo significa alguma coisa, mesmo aquilo que não significa nada”

Enxergando a vida como uma mensagem, a morte pode ser um ruído na mesma, mas faz parte dela. A sociedade espera pelo apocalipse, procura sinais dele em toda a parte, e a iminência da morte faz com que muita coisa deixe de fazer sentido. Os personagens do filme do cineasta se perdem nos afazeres de seu último dia na Terra. O diretor, da mesma forma, vive o dilema de continuar escrevendo, ou se perder como seus personagens, que nunca seriam concretizados. Se a morte pode ser tanto sinal quanto ruído, Reed possivelmente estava correto.

O principal desafio de Gaiman e McKean consistia em entrar na cabeça do diretor de cinema e mostrar isso ao público sem clichês e exageros de estereótipos. A tarefa é complicada, pois há no senso comum uma ideia de artista, o leitor espera do personagem um comportamento de sensibilidade, de excentricidade, talvez um pouco de loucura. Os autores não deixaram isso de lado, mas sabiam que não podiam transformar seu personagem principal em um artista genérico superficial. Ao término do HQ o leitor sabe: a dupla passou pelo desafio com maestria.

 O cineasta não é tratado como um lunático que se desprende da realidade no seu processo de criação, ou como um profissional que tem hora marcada para escrever e materializar sua obra. Não, o cineasta mistura suas vibrações, está sempre conectado ao seu trabalho e aos seus conflitos pessoais. Não em vão os melhores filmes da história são aqueles em que você sente a fruição orgânica por trás do resultado final, em que o espectador percebe que o diretor de fotografia não escolheu seu enquadramento porque uma apostila lhe disse que aquele era o melhor ângulo, mas sim porque se envolveu com a obra a ponto de saber exatamente que ir contra o convencional naquele caso em específico lhe traria um visual perfeito ao filme.

“Cinema é uma obsessão. Quando você é compelido a fazer algo não há escolhas”

Impressiona o fato que tais conclusões e percepções podem ser extraídas a partir de poucas páginas, figuras e falas. Gaiman e McKean conseguem expressar algo extremamente sólido muitas vezes a partir do abstrato. Os pensamentos não se concluem, as cenas do filme não seguem ordem cronológica, as conversas do cineasta com outros personagens começam da metade, e inclusive – aquilo que pode se configurar como o maior exemplo dessa “solidificação do abstrato” – em uma história cujo tema é a morte, o final da mesma chega antes do esperado.

Talvez nem todos os leitores (e por que não, espectadores) de Sinal e Ruído tenham as mesmas reflexões. Uma boa obra, evidentemente, necessita de diversas conclusões. Particularmente, minha principal compreensão da história é que o diretor não morrerá enquanto apreciarem seus filmes. Um cineasta pode ser imortal.

Garanto que a leitura de Sinal e Ruído não decepcionará, mesmo você já sabendo o final. Pois é como a vida: mesmo sabendo que iremos passar por nossos apocalipses individuais, vale a pena se divertir e ver o que acontece até lá.

*Gabriel Pozzi é estudante de Artes Visuais na UNESP.

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