Filmes sobre um futuro pós-apocalíptico da humanidade, quando fundamentados sobre uma boa premissa e, principalmente, bem-feitos, podem ser ótimos exemplos de um cinema desafiador e complexo. O vácuo deixado pela total desintegração do tecido social, sem leis ou poderes constituídos, pode produzir resultados admiráveis no que diz respeito à dramaticidade. Foi assim com os clássicos de George Romero, com o formidável Extermínio, de Danny Boyle, e, finalmente, com este A Estrada, do diretor australiano John Hillcoat. O principal está aqui – a que ponto a natureza humana pode descer, a natureza de alguém ordinário sob circunstâncias extra-ordinárias – juntamente com dois grandes diferenciais: a profundidade inata de um filme adaptado do consagrado escritor Cormac McCarthy, e a emoção com que Viggo Mortensen se entrega ao papel do pai, que tenta salvar seu filho das mazelas que assolam um cenário dantesco no qual se transformaram os Estados Unidos da América, bem como o mundo.
Após um holocausto de origem não revelada, pai e filho vagam pelo país devastado, onde “nenhum animal sobreviveu, e todas as colheitas acabaram há muito tempo.” Apesar de caminharem rumo à costa, buscando fugir do inverno, a esperança por dias menos sombrios praticamente inexiste. A comida é totalmente escassa, e gangues que recorreram ao canibalismo espreitam por todo lugar. Um revólver com duas balas se apresenta como a última solução, para a autodefesa ou para dar cabo do sofrimento. O roteiro de John Penhall acerta ao manter a escolha de McCarthy em não revelar o que causou a tragédia global, fazendo com que o foco esteja invariavelmente no que pai e filho estão fazendo para conseguir durar mais um dia. Assim, a dinâmica que se estabelece é em torno da sobrevivência e dos sacrifícios. Hillcoat é bem-sucedido em adequar o ritmo tanto aos momentos de tensão quando aos que convidam à reflexão sobre o que trouxe pai e filho – ou a humanidade toda – àquele ponto.
Seria um desrespeito ao filme não comentar a fotografia e a trilha sonora. A primeira, primorosamente realizada pelo espanhol Javier Aguirresarobe, segue fielmente a descrição deste futuro insólito pelo personagem de Mortensen: “cada dia é mais cinza do que o anterior”. Os poucos tons que se destacam aqui e ali servem para nos lembrar do que foi a civilização um dia, como fotografias desbotadas em um álbum velho, mas sem jamais tornar a estética apresentada algo desagradável, ao contrário. O menino desenha em seu caderno com cores sombrias, pois estas são as únicas cores que ele conhece – e, notadamente, se surpreende com um arco-íris. É curioso notar que um singelo prelúdio ao caos que abre o filme – com breves cenas do que o mundo era antes de tudo o que ocorreu – contém mais saturação do que a obra inteira. Os grandes planos com estradas abandonadas e desertas, sendo reconquistadas pela natureza, ou de cidades devastadas, aliados à fotografia de Aguirresarobe, produzem resultados visuais impressionantes. Já a trilha sonora composta por Nick Cave e Warren Ellis, lindamente sombria, é também certeira ao sempre nos lembrar da humanidade dos personagens em certos momentos, que ainda não se perdeu. Um bom exemplo é o momento em que pai e filho se separam do velho, onde o filho lembra ao pai a injustiça que está sendo cometida.
Tais qualidades, porém, empalidecem diante da sábia decisão dos produtores de contratarem Viggo Mortensen para viver o pai. Mortensen demorou a encontrar o sucesso em Hollywood, o qual veio somente após a trilogia Senhor dos Anéis, e, depois de brilhar em obras como Marcados pela violência e Senhores do Crime (ambos de David Cronenberg), chega aqui em seu ápice. Cada gesto, olhar e atitude reverberam emoção; cada nuance do trabalho nos convence plenamente das intenções do pai desesperado. Kodi Smit-McPhee, como o menino, também convence, sobretudo quando começa a se tornar o centro de gravidade moral do filme, e a perceber que a humanidade do pai começa a ceder diante dos obstáculos. Ao mesmo tempo, o filho se torna praticamente uma divindade para o pai, na medida em que representa a única razão para ele se manter vivo. É preciso citar, ainda, a memorável participação do veterano Robert Duvall, que está absolutamente distinto no papel de um velho andarilho. É sempre gratificante ver um ator como Duvall, que já não precisa provar nada, contribuindo imensamente com a história em um papel breve, mas marcante.
É de se esperar que este A Estrada seja uma experiência nada confortável para alguns – pelas decisões difíceis que os pais são levados a tomar ou pelo próprio canibalismo resultado da degradação do homem. Por vezes depressivo e pessimista sobre a natureza humana, é bem verdade que o filme chega a ser angustiante em alguns momentos. É difícil pensar, por exemplo, que esse apocalipse ficcional é absolutamente verdadeiro para muitas pessoas que caminham sobre a Terra, sem esperanças de qualquer sorte. Entretanto, é notório que a beleza deste filme consegue superar tudo isto, permanecendo incólume – não apenas pelas boas atuações e pela estética melancólica de cada enquadramento, mas também em cada gesto do pai, visando proteger seu filho. O belo final permite que o filme construa um forte argumento no que diz respeito à família, que começa a obra despedaçada, e se reconstrói fundamentalmente na família que acolhe o menino.
Arthur Souza Lobo Guzzo é graduado em Comunicação Social pela PUC-Campinas e em Ciências Sociais pela Unicamp.