Neste artigo, será feita uma reflexão a respeito de experiências de orgãos estatais com produção do chamado “cinema educativo”. Contudo, a partir da análise das ações destes orgãos, e levando em conta as considerações de Theodor W. Adorno a respeito de educação e dos meios de comunicação, será questionado o que levou tais orgãos a serem considerados produtores de “cinema educativo”.
Após a primeira guerra mundial, verificou-se em diversos países, o surgimento de governos ditatoriais que, exaltando o nacionalismo, prometiam livrar seus países da crise econômica instaurada por conseqüência da guerra, e recuperar a grandeza histórica do passado (ROSA, 2008), trazendo a esperança de que a população recuperaria a sua auto-estima e superaria o trauma da guerra. O governo fascista de Mussolini, na Itália, foi um exemplo desta tentativa.
Reconheceu-se no cinema um instrumento persuasivo de grande utilidade na conquista das massas e na introjeção dos valores do governo de Mussolini, o que levou, em 1924, à criação do L.U.C.E. (L’Unione Cinematográfica Educativa), com objetivo era divulgar a cultura italiana. O L.U.C.E. produziu uma série de filmes que enfatizavam a importância da higiene e de esportes na vida dos trabalhadores. Por trás destes filmes estava o interesse do governo em aumentar a mão de obra de qualidade para superar a crise econômica decorrente da guerra (ROSA, 2007).
Não é difícil compreender o que levou o cinema a ser enxergado como uma possível ferramenta para transmitir os valores do Estado à população: Na década de 20, o cinema tornou-se a principal forma de entretenimento para homens e mulheres de todas as faixas etárias que lotavam as salas de exibição. Contudo, grupos de intelectuais reconheceram a influência que o cinema exercia sobre a mentalidade e comportamento das pessoas, percebendo que o Estado poderia utilizá-lo para a transmissão de seus valores e ideais à sociedade.
Influenciado pela experiência do L.U.C.E., o governo de Getúlio Vargas criou, em 1936, o I.N.C.E., Instituto Nacional de Cinema Educativo, para organizar o uso do cinema na educação dos brasileiros. O Brasil, bem como a Itália, enfrentava o problema do analfabetismo, e os governos de Vargas e Mussolini enxergaram no cinema uma alternativa para comunicar seus valores à população. Vargas chegou a mencionar a vantagem do cinema sobre os livros, pelo fato do primeiro ser um elemento que “influía diretamente sobre o raciocínio e a imaginação, apurando as qualidades de observação, aumentando os cabedais científicos e divulgando conhecimento das coisas, sem exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os mestres, nas suas aulas, reclamam” (ROSA, 2007). Pode-se dizer que havia sido encontrada a fórmula perfeita para a manipulação do povo: as autoridades podiam transmitir suas ideologias para a população, sem preocupar-se com a sua instrução.
As produções do INCE eram uma forma de propaganda de governo: mostravam sanatórios mantidos pelo estado, e crianças em colônias de férias, “realizando atividades físicas, lavando as mãos antes do almoço e comendo refeições saudáveis, tudo supervisionado pelos olhos do Estado Novo.” (ROSA, 2007).
Filmes que ensinavam os jovens a cumprirem seu papel na sociedade, valorizando o trabalho manual e mostrando as expressões de alegria e compenetração de jovens trabalhadores contribuíram para valorizar a economia do Brasil. O cinema tornou-se, nas mãos do fascismo e do estado novo, um instrumento que contribuía para manter os trabalhadores no sistema que convinha ao governo de seus países.
Esta questão é trabalhada por Theodor Adorno que aponta que, usada em favor dos interesses capitalistas, a cultura deixa de ser utilizada em momentos de lazer para o distanciamento do indivíduo em relação ao sistema em que vivem, podendo refletir a respeito dele e se posicionar criticamente em relação à organização da sociedade em que está inserido. Os momentos de lazer são transformados em um instrumento que contribui justamente para manter os trabalhadores dentro do sistema. (ADORNO, 1994).
A questão levantada por Adorno pode ser identificada no uso que Vargas e Mussolini deram ao cinema: Por meio da valorização do trabalho, e garantindo a existência de trabalhadores saudáveis, tornava-se mais fácil manter a população, que sentia-se “enobrecida” por meio do trabalho, vivendo de acordo com os interesses do Estado.
Adorno afirma ainda que a Educação deve ser um caminho para a superação da alienação, contribuindo para a formação do pensamento crítico, formando sujeitos mais esclarecidos, afirmando que:
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se adaptarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior.
Em relação aos meios de comunicação de massa, Adorno afirma que para que sejam instrumentos de educação, antes de propagarem qualquer ideologia, devem contribuir para a formação dos sujeitos que os possibilite desmascarar as ideologias que lhes são transmitidas. (ADORNO, 1995). Aceitando-se esta teoria, é difícil aceitar, tanto o INCE quanto o LUCE como educativos, visto que existiam justamente para transmitir as ideologias do Estado de forma que estas parecessem nobres e fossem aceitas pela população. Ao invés de levar ao desenvolvimento de aptidões críticas que permitissem desmascarar ideologias que pudessem levar os indivíduos a serem manipulados, os filmes produzidos por estes orgãos representavam uma forma de manipulação que assegurava os interesses do Estado, indo justamente contra aquilo que Adorno considera necessário na educação.
Contudo, é importante lembrar que Adorno trata a respeito da Educação para a formação de sujeitos que possam ser assim preparados para compreender a sociedade em que vivem, o que ele considera de extrema importância política, por ser, para ele, uma exigência da democracia para que esta possa funcionar de acordo com o seu conceito. E nem Fascismo nem Estado Novo, foram regimes democráticos.
Ainda assim, quando se fala em cinema educativo, é necessário levar em conta se o que está sendo considerado “educativo” tem alguma relação com o conceito de educação. E neste ponto, é no mínimo questionável o que foi produzido nos governos de Vargas e de Mussolini sob o rótulo de “cinema educativo”.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor W. Notas sobre o filme. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor Adorno: Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. p. 100 – 107 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
ADORNO, Theodor W. Sobre a música popular. In: COHN, Gabriel (org). Theodor Adorno: Sociologia. São Paulo: Ática, 1994. p.115-146. (Coleção Grandes Cientistas Sociais)
ROSA, Cristina. O Cinema Educativo através dos discursos de Mussolini e Vargas, 2008. http://www.mnemocine.art.br/index.php?option=com_content&view=article&id=94:o-cinema-educativo-atraves-dos-discursos-de-mussolini-e-vargas&catid=42:historia-no-cinema-historia-do-cinema&Itemid=67
(Acessado em 06/08, às 15h)
ROSA, Cristina, Câmera na mão, política na cabeça. 2007.
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=633&pagina=1-
(Acessado em 06/08, às 15h43)
Paula Monteiro Siqueira é graduanda do curso de Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Gostei!! Muito claro numa linguagem de fácil entendimento.
Ótimo texto! Este sim “educativo”!! Abraço
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