A Fita Branca e o Sujeito Cinematográfico

*Marina Azzi Nogueira

“A Fita branca” e o sujeito do discurso

Esse artigo buscará através da descrição de certas cenas e sequências do filme A Fita Branca (Das weisse Band, Michael Haneke, 2009) e de pensamentos sobre a Teoria do Sujeito Cinematográfico, com base em textos de Arlindo Machado, mostrar como funciona o sujeito nessa obra de Michael Haneke e como a entidade cinematográfica se relaciona com o narrador diegético da história. Serão mostrados exemplos presentes no filme A Fita Branca de momentos em que o narrador perde o poder de contar aquela história, e quem assume o compartilhamento daqueles fatos com o espectador é o sujeito cinematográfico de fato. Também será abordada a maneira como o sujeito muitas vezes parece estar subjugado a toda a rigidez e ao puritanismo da sociedade da aldeia mostrada em A Fita Branca.

O filme

A Fita Branca (Das weisse band) é um filme de 2009, escrito e dirigido pelo diretor Michael Haneke. O austríaco ganhou a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, por essa obra. Seu objetivo com A Fita Branca é, segundo ele próprio, explicar a origem do mal.[1]

O filme conta a história de uma aldeia no norte da Alemanha às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Esse povoado começa a sofrer com alguns incidentes aparentemente sem solução: a queda do Médico, causada por um arame preso entre duas árvores; a morte suspeita de uma Camponesa na serraria da fazenda; o sequestro e tortura do filho do Barão; a tortura do filho deficiente mental da Parteira. Esses incidentes, considerados criminosos, abalam a estrutura quase imutável da sociedade daquele local.

As crianças da história têm grande peso dramático, sendo inclusive as principais suspeitas aos olhos do público para os crimes acima listados. São crianças castigadas constantemente, educadas de forma rígida e violenta dentro do puritanismo que rege, em grande parte a rotina da aldeia. O objeto que intitula o filme – fita branca -, por exemplo, é usado pelo Pastor da cidade para lembrar seus dois filhos mais velhos, Klara e Martin, do compromisso com a pureza. Martin também sofre um segundo castigo: o menino é amarrado à cama durante a noite para que n encontrado junto ao menino torturado um bilhete que dizincluem a pedofilia, o incesto e o adult crian que trutura rão pratique o onanismo (masturbação), ato considerado uma doença por seu pai.

Uma possibilidade para justificar os crimes, se realmente cometidos pelas crianças, é a atuação delas como espécies de justiceiros em nome de Deus. Assim como elas são castigadas e humilhadas por seus pecados, os adultos também o devem ser. Seus pecados, abordados ao longo do filme, incluem: a pedofilia, o incesto e o adultério. No ataque a Karli, filho da Parteira, é encontrado junto ao menino torturado um bilhete que diz “Por que eu, o Senhor, o Deus de vocês, sou um Deus cuidadoso, punindo os filhos dos pecados de seus pais até a terceira e quarta gerações”. A fita branca, então, deixa de ser óbvia (amarrada às roupas e cabelos das crianças) e torna-se sutil. Essa sutileza, no entanto, não diminui sua maldade. A fita branca dos pecadores é cruel e sanguinolenta.

No desenrolar da trama, o Médico vai embora do povoado com seus filhos, é mostrada uma cena em que ele abusa da filha, Anna, de 14 anos e a Parteira – sua amante, desde antes de sua esposa falacer –  vai à cidade denunciar os criminosos, pois seu filho revelara quem o torturou. Karli também some misteriosamente. O Médico e a Parteira são então acusados pelas pessoas da aldeia de terem cometido os crimes e fugido antes de serem descobertos. Haneke trabalha essa “resolução” de forma que ela pareça falsa e soe como uma desculpa dessa sociedade para esquecer tudo que aconteceu.

A narração

O filme é amarrado a partir da narração de um homem que aparenta ter mais de 50 anos. Ele diz que vai contar fatos que aconteceram na aldeia em que vivia, mas que não sabe se essa história é inteiramente real, por não ter testemunhado boa parte dela, e que, apesar de muitas perguntas terem ficado sem resposta, é importante narrar aqueles acontecimentos, pois eles poderiam talvez explicar questões nacionais de um futuro muito próximo.

O narrador, que é revelado ser o Professor da aldeia, então com 31 anos, é a principal ferramenta de Haneke para, mais do que explicar, confundir o espectador. Os numerosos planos-sequência também caracterizam fortemente o filme e tornam aquele ambiente absolutamente possível, como se o fato de aquele local e pessoas estarem sendo filmadas fosse quase acidental. Essa sensação é reforçada pela constante referência ao que acontece offscreen, como na cena em que o Pastor castiga seus filhos com o chicote. Essa sequência causa uma falta de ar absoluta no espectador, apenas com a lentidão dos passos e a espera pelos gritos cheios de dor. Essas qualidades de A Fita Branca ajudam a reforçar a confusão que assola o espectador durante a maior parte da exibição. Sendo aquele um universo diegético tão verossímil e independente do mundo real, as coisas não são explicadas e mastigadas à exaustão para entendimento de quem observa do outro lado da tela.

O narrador, como dito anteriormente, não tem certeza de tudo que está relatando – e assume isso -, porém, há acontecimentos do filme que dificilmente poderiam ter sido “fofoca” na aldeia. O Professor não poderia ter tido conhecimento de alguns fatos e, ainda assim, eles são apresentados para o espectador. Fábio Andrade diz, em resenha para a Revista Cinética, “(…) o narrador – ponto de vista que o filme assume, sem se furtar a trapacear quando lhe parece conveniente (…)” [2], explicitando a independência que a trama assume quando os conhecimentos do narrador limitam o que deve ser mostrado ao espectador. Pode-se basear tal independência em trechos de A Fita Branca que mostram, por exemplo, a discussão entre a Parteira e o Médico em que o homem deixa claro todo o desprezo e asco que sente pela amante; o momento em que a Baronesa diz para o marido que pretende deixá-lo e os motivos para tal (cena na qual a personagem feminina descreve a aldeia como “ambiente dominado pela maldade, inveja, indiferença e brutalidade”); a conversa entre os filhos do Médico, Anna e Rudi, em que o menino descobre a morte e fica indignado com ela; a filha do Pastor, Klara, prestes a matar o pássaro de estimação de seu pai; entre muitos outros.

Ainda assim, o narrador tem importância no que cabe à interpretação do público. O Professor desconfia das crianças e esse sentimento é mostrado gradualmente também nas imagens, ainda que tal opinião não seja dita claramente pelo narrador por um longo tempo. A influência desse personagem vem, inclusive, por conta de seu papel de contador daqueles acontecimentos. Como o Bentinho de Machado de Assis, o Professor diz aquilo que lhe parece mais interessante (ainda que pareça fazer isso mais inconscientemente do que o personagem machadiano).

O sujeito e a lacuna em “A Fita Branca”

Nos dois primeiros capítulos de “O sujeito na tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço”, Arlindo Machado introduz a teoria do sujeito cinematográfico através de comentários e uma breve contextualização histórica. Em “O enigma de Kane”, Machado, após descrever toda a questão que põe em cheque a qualidade técnica da narrativa de “Cidadão Kane” (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), por conta da ausência de personagens diegéticas que testemunhassem Charles Foster Kane em seus momentos finais pronunciando a palavra-chave “Rosebud”, propõe a questão básica: como é possível dizer que a última palavra de Kane não foi ouvida, se tais imagens e sons foram mostrados dentro do filme?

Machado diz que esse “defeito” observado por Pauline Kael no filme de Orson Welles é “irrelevante, pois se baseia num conceito de verossimilhança demasiado escrupuloso para as liberdades do mundo diegético”.[3] É a partir desse “pretexto” e da indagação acima que o autor tece alguns comentários e pensamentos acerca da teoria do sujeito e das discussões que ela já alimentou. O segundo capítulo, intitulado “Ubiqüidade e transcendência”, começa a tratar da natureza do sujeito cinematográfico no sentido de descrever qual é a sua função dentro do filme – possuir e compartilhar “a visão de um observador imaterial e privilegiado, capaz de assumir posições e deslocamentos impossíveis a um ser humano comum” [4] e também de como isso é feito e organizado dentro de uma obra audiovisual.

Tendo feito essa introdução sobre o trabalho de Arlindo Machado em seu livro sobre o sujeito do discurso no cinema, inicio então a análise de aspectos de A Fita Branca sob esse viés.

O filme de Michael Haneke causa um pouco mais de confusão se o pensarmos considerando aspectos da teoria do sujeito cinematográfico por conta da presença de um narrador, já descrito anteriormente. Temos, portanto, a visão de duas “entidades”: o narrador diegético eleito para contar uma história que não deixa de ser parte de sua vida – o Professor -; e o sujeito, observador onividente e que escolhe exatamente o que vai mostrar, em que ordem vai mostrar e por quanto tempo vai deixar essas imagens expostas para o espectador.

O sujeito, em A Fita Branca, escolhe, na maior parte das vezes, um ponto de vista contínuo (o que pode ser atestado pela enorme quantidade de planos-sequência). Mesmo assim, muito permanece escondido, aparentemente até do próprio observador invisível, pois ele também está subjugado às regras daquela sociedade. O sujeito deve lidar com as portas fechadas e os cantos escuros. Ainda que saiba muito, essa entidade cinematográfica parece saber desses fatos do mesmo jeito que os outros moradores: ouvindo comentários esparsos pelas ruas, encostando seu ouvido nas portas e espiando por buracos de fechadura e frestas. E os habitantes da aldeia parecem saber que sempre há alguém à espreita. São exemplos disso: o momento em que o Pastor vai castigar cada um de seus filhos com varadas (a porta do cômodo permanece fechada, ainda que toda a família esteja ali, testemunhando a violência, e não haja mais ninguém na casa); e o passeio que o Professor tenta fazer com sua noiva, que pede para que ele não a leve para um bosque (o Professor tenta convencer a jovem de que ele jamais desrespeitaria sua futura esposa, argumento que não a convence).

Outras questões que acabam fortalecendo o sujeito cinematográfico, mesmo que às vezes ele pareça não ser tão onividente, são as escolhas em favor do peso dramático da história. Pode-se citar novamente a sequência em que a Baronesa diz para o Barão que pretende ir embora daquela aldeia, após seu filho Sigi, que já havia sido torturado, ser atacado por um dos filhos do administrador por causa de uma flauta. Durante a conversa dos dois, o administrador chega à casa para conversar com o Barão. A impressão inicial é de que o homem foi até ali para conversar sobre o incidente entre os filhos de ambos. Não é mostrada a conversa dos homens, mas sim a Baronesa, ainda na sala de jantar, preparando um drink e bebendo-o. Quando o Barão volta ao cômodo, ele informa sua esposa de que o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, tinha sido assassinado, fato que foi o estopim da Primeira Guerra Mundial. A escolha em não mostrar a conversa entre os dois homens, mas apenas o plano do Administrador indo embora, observado pela Baronesa, e o Barão contando para sua esposa aquele fato tão importante no contexto europeu da época, traz muito mais peso e credibilidade à notícia (que alterou não somente o curso da narrativa do próprio filme, mas a história mundial).

A partir desse momento, os boatos acerca dos crimes ocorridos durante o último ano naquela aldeia parecem esfriar. O Professor tenta em vão descobrir o paradeiro de Karli, filho da Parteira, mas, já tendo sofrido ameaças do Pastor por acusar seus filhos e as outras crianças de serem as responsáveis por aqueles acontecimentos hediondos, acaba também por afrouxar suas investigações. A sensação que fica é a de que os crimes seriam resolvidos se não fosse o estouro da Primeira Grande Guerra. Nesse momento, as impressões do Professor-narrador adquirem maior importância do que os segredos que o sujeito cinematográfico poderia revelar e o espectador fica à mercê da falta de conhecimento daquele personagem.

Considerações Finais

A frustração que os planos finais do filme, acompanhados da voz over de um Professor muito mais velho listando e datando os primeiros passos dos envolvidos na guerra, assim como a sua vida nos anos seguintes, é absolutamente enorme. Nós, espectadores, assim como o Professor, estávamos muito perto de desvendar aquele mistério, e todos fomos tolhidos por um acontecimento de ordem mundial. Talvez essa sensação seja falsa. Talvez (e muito provavelmente) o puritanismo daquela aldeia não pudesse ser quebrado ou vencido. Talvez os crimes jamais fossem resolvidos, mesmo que a Primeira Guerra não tivesse interrompido nossas investigações. São essas e muitas outras dúvidas que tornam a obra de Haneke incrivelmente encantadora e até mesmo objeto da obsessão de alguns espectadores.

*Marina Azzi Nogueira é graduanda em Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Referências bibliográficas

ALTMANN, Eliska. “(Des)construindo Haneke: olhares da crítica brasileira” http://www.mostrahaneke.com/pdf/15altmann.pdf (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

AMARAL, Leonardo. “Crítica: A Fita Branca, de Michael Haneke”. http://www.filmespolvo.com.br/site/lancamentos/index/33 (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

ANDRADE, Fábio. “Ninho de monstros”. In Revista Cinética – Outubro de 2009. http://www.revistacinetica.com.br/whiteribbon.htm (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

FLFP. “A Fita Branca, a violência e a maldade do ser humano na visão de Haneke”. http://quasenove.blogspot.com.br/2010/02/fita-branca-violencia-e-maldade-do-ser.html (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

LEAL, Bruno. “A incompreensão requentada”. http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/critica-do-filme-a-fita-branca (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

MACHADO, Arlindo. “O enigma de Kane” in O sujeito na tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.

MONASSA, Tatiana. “Quatro filmes de 2009 e algumas questões de religiosidade”. In Revista Contracampo – Março de 2010. http://www.contracampo.com.br/95/artreligiosidade.htm (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

NIGRI, André. “A Fita Branca – sob a paz da disciplina, o vírus da intolerância”. http://bravonline.abril.com.br/materia/fita-branca-paz-disciplina-virus-intolerancia-critica (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

STYCER, Mauricio. “As raízes do mal: Haneke explica “A Fita Branca”. http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/2009/10/24/as-raizes-do-mal-haneke-explica-%E2%80%9Ca-fita-branca%E2%80%9D/?doing_wp_cron (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

VALVERDE, Edu. “A fita branca – e preta – de Haneke”. http://doidosporcinema.wordpress.com/2010/02/14/a-fita-branca-e-preta-de-haneke/ (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

ZANIN, Luiz. “A Fita Branca e a alegoria”. In Estadão Blogs – 12 de Fevereiro de 2010. http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/a-fita-branca-e-a-alegoria/ (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

http://www.imdb.pt/title/tt1149362/ (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Assassinato_de_Sarajevo (acessado pela última vez em 26/06/2012, às 16h)


[1] Trecho livremente traduzido por Mauricio Stycer de entrevista de Haneke a revista “New Yorker”: http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/2009/10/24/as-raizes-do-mal-haneke-explica-%E2%80%9Ca-fita-branca%E2%80%9D/?doing_wp_cron

[2] ANDRADE, Fábio. “Ninho de monstros”. In Revista Cinética – Outubro de 2009. http://www.revistacinetica.com.br/whiteribbon.htm

[3] MACHADO, Arlindo. “O enigma de Kane”. In “O sujeito na tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço”.

[4] MACHADO, Arlindo. “Ubiqüidade e transcendência”. In “O sujeito na tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço”.

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