A Menina Santa (Lucrecia Martel, 2004)

*Por Loiane Vilefort

Amália – aquela que ama – é uma adolescente no período típico de explosão de hormônios. Suas descobertas pessoais de sexualidade, no entanto, se misturam tão bem a religiosidade aprendida na escola que, impulsos sexuais lhe aparecem como missão religiosa. Essa é a premissa principal de La Niña Santa: a percepção pessoal desses dois universos que se resvalam a todo o momento.

“Que queres Senhor de mi?” canta a professora de religião logo na sequencia inicial. Ela e suas alunas discutem o possível chamado do Senhor e levantam a questão de que é preciso estarem atentas para conseguirem “ouvi-lo”. Claro que as aspas são minhas, pois a questão do filme envolve exatamente essa ambiguidade do ouvir e não ouvir, daquilo que não pode ser dito, ou mesmo do que não se sabe dizer ou não se consegue ouvir.

A trama se passa em um hotel, que traz uma ideia de circulação, de ser um lugar de passagem: é onde Amália vive com sua mãe, Mirta, e que, no momento, abriga um congresso de médicos. É o lugar no qual Amália e Jano irão se esbarrar a todo momento, reforçando a tensão dessa relação – que começa com um assédio do doutor, disfarçado exatamente de esbarrão em meio a uma pequena multidão que assiste um artista de rua.

A ideia do resvalo atua nessas duas vias: os olhares que se vêem e se evitam pelos espaços do hotel, sustentando algo que nunca é dito, e os distintos universos (sexualidade e religiosidade) que se esbarram e se misturam na cabeça de Amália. Não fica claro ao espectador um pensamento concreto da menina, porque ela própria busca essa compreensão. Sabemos apenas que Amália trata o assédio sofrido como uma missão destinada a ela para salvar o homem que a molestou. E nesse sentido ela o procura, o segue e cria uma tensão sob o que não pode ser dito.

Muito se fala sobre o trabalho de Martel na banda sonora de seus filmes, no entanto, em La Niña Santa, a diretora foca suas escolhas narrativas na evidência desse som. Mais do que um elemento importante na construção da história, ele se revela como um protagonista dela. Tudo dentro da trama se relaciona ao sentido da audição: o “chamado do Senhor”; os cochichos e segredos de Amália e sua amiga Josefina; a insistente ligação do ex-marido de Mirta – que recusa sempre em atendê-lo; o artista de rua que musicaliza ruídos de interferência sonora; a especialidade do doutor em otorrinologia (garganta, audição e olfato), dentre outros elementos.

Podemos sentir certo abafamento do som em muitas cenas, onde os resvalos dos olhares e o desconforto comportamental acontecem por conseqüência dessa tensão que paira naquilo que existe, mas não se vê – ou melhor dizendo, não se ouve. Em mais de uma cena me peguei imaginando que a próxima fala do Dr. Jano seria algo no sentido de questionar Amália sobre o que ela pretende o seguindo, e pude perceber que é exatamente esse clima que

Martel pretende criar. Aqui não importa a pergunta e muito menos a resposta, o que interessa é a suspensão do não dito.

Quando Amália cai enferma de febre e Dr. Jano a examina, temos a ideia dos sentidos muito bem exposta por Martel. A febre atua como uma exteriorização de toda a tensão sexual e religiosa da menina e que não é explicada por nenhuma delas, nem mesmo pela ciência do médico. Amália, então, se aproxima do ouvido do doutor e confessa que o espiona, comentando, em um sussurro, sobre a respiração dele ao dormir. Nesse momento o que está centralizado no enquadramento é exatamente o ouvido do Dr. Jano. E, se observarmos com atenção a decupagem de Martel, essa não é uma cena isolada em que temos como foco principal a orelha. Podemos afirmar novamente, portanto, o protagonismo do som.

Do início ao fim do filme não sabemos o que querem Amália, Mirta, Jano ou mesmo a amiga, Josefina. São personagens que estão longe de serem estereótipos ou mesmo apresentarem valores morais definidos. Vemos uma ambigüidade em todas as relações e atitudes; não se coloca em questão o certo ou o errado. Martel não levanta nem mesmo um questionamento acerca do assédio sofrido por Amalia; Jano não encarna um papel de vilão, ele é só mais um entre todos aqueles que perdidos em meio aos seus sentidos não sabem definir nem mesmo a si próprios.

Nesse sentido, o filme não busca nenhum tipo de julgamento dos personagens, são todos humanizados dentro de seus desejos e instintos pessoais, onde as relações entre si trazem a tona, para cada um em particular, suas próprias noções de julgamento. E é por esse motivo que os filmes de Lucrecia parecem terminar sem um final. A diretora não se coloca em um posicionamento moral claro, ao contrário, permite que seus personagens se deixem estar no mundo sem algum tipo de veredicto sobre suas atitudes. Tudo termina em aberto, como tudo aquilo que não foi dito durante o filme e que continuará sem ser expresso em palavras.

A cena final acaba por apresentar muito bem como a narrativa e o som de Martel são trabalhados de forma tão particularmente relacionada. É representada a amizade entre Amalia e Josefina em seu estado mais puro e mais ambíguo enquanto vemos e ouvimos o cantarolar abafado das meninas na piscina, no momento exato onde tudo parece desmoronar dentro do hotel. Afinal, nada disso realmente importa. Nosso sentido auditivo do cantarolar dessas duas adolescentes se auto descobrindo se mostra, por definitivo, como sendo o mais importante. E enquanto nos perdemos em pensamentos nessa audição, sobem os créditos finais do filme, mas não se encerra a história.

*Loiane Vilefort é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

Deixe uma resposta