Árido Road Movie: Identidade e Tradição entre o Sertão e o Litoral

Árido Road Movie: Identity and Tradition travelling from the Coast to the Backlands

Marcelo Dídimo Souza Vieira[1]

Érico Oliveira de Araújo Lima[2]

Resumo

Esse artigo acompanha o deslocamento que o filme Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005) opera entre Sertão e Litoral. Buscamos as implicações desse movimento no âmbito das formas cinematográficas e de uma discussão sobre identidades e utopias. O recurso ao road movie é investigado aqui, para pensar a estratégia da obra em se apropriar do percurso e da estrada na tentativa de criar pontes entre universos distintos. A tradição e as perspectivas de mudanças são postas em jogo nesses processos de viagem, que podem repercutir, do ponto de vista cultural, em uma abordagem de hibridismos e de perda de referências.

Palavras-Chave: Cinema Brasileiro, Road Movie, Identidade, Sertão, Litoral

 

Abstract

This article examines the displacement that the film Árido Movie (Lily Ferreira, 2005) operates between Sertão and Coast. We seek the implications of this movement in the context of cinematic forms and in a discussion about identities and utopias. The strategy of the road movie is investigated here, to think how the movie appropriates the trip and the road in an attempt to build bridges between different universes. The tradition and the prospects for changes are discussed in these travel. From a cultural point of view, theres is an approach of hybridisms and loss of references.

Keywords: Brazilian Cinema, Road Movie, Identity, Backlands, Coast

 

Introdução

A relação entre utopia e migração – principalmente intermediadas pela presença do sertão – tem força ao longo da história do cinema brasileiro. É nas utopias que os personagens encontram motivação para os impulsos migratórios. Talvez a materialização mais comum dessa tríade corresponda à estrutura, já utilizada aos montes, que comporta a história de famílias (ou indivíduos) que rumaram em direção à cidade grande na tentativa de fugir das mazelas do sertão, como em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Dessa forma, motivados pela utopia de uma vida melhor, que entra em contradição com as condições impostas pelo sertão, tais personagens se põem ao processo de migração com a esperança de que o mesmo represente, em suas vidas, o processo de redenção.

Esse processo migratório, essa busca por uma esperança, é por vezes definitiva, mas também pode representar um determinado momento do indivíduo de revisitar suas raízes, numa viagem pontual. Essa redenção pessoal é, geralmente, significada por um mergulho interno num vazio emocional e psicológico do personagem, redescobrindo suas origens e enfrentando seus demônios de outrora.

Geograficamente, o deslocamento espacial se faz presente para alimentar esse processo de busca, e esse percurso encontra sua melhor representação através do Road Movie, numa viagem que imbrica o pessoal e o espacial. À medida em que o indivíduo se desloca geograficamente, mais ele imerge em suas frustrações e traumas do passado. É uma dupla viagem, às vezes sem volta, noutras vezes o retorno é satisfatório.

Road movies geralmente procuram ir além das fronteiras do escopo cultural, buscando a revelação para o desconhecido, ou pelo menos para a emoção do desconhecido. Tal viagem, decodificada como uma busca pelo novo, também sugere um refúgio móvel a partir de circunstâncias sociais sentidas a partir de alguma forma de opressão. Esta noção crítica das funções que permeiam o road movie pode ser amplamente concebida em vários níveis: cinematograficamente, em termos de inovação estética  através da câmera viajante, montagem e trilha sonora; narrativamente, em termos de um final em aberto e estrutura desconexa do enredo; tematicamente, em termos de personagens frustrados, muitas vezes desesperados, procurando se aventurar fora da sociedade em busca de uma revelação. (LADERMAN: 2002, pp.1-2)

O road movie é um gênero cinematográfico que se caracteriza principalmente pelo percurso, pela viagem, pela estrada, dentre outros aspectos. A história do gênero acompanha a própria história do cinema, mas é somente nas décadas de 1960 e 1970 que os filmes de estrada serão devidamente explorados pelo mercado cinematográfico, que tem como seu representante mais conhecido o filme Easy Rider (Sem Destino, Dennis Hopper, 1969). No cinema brasileiro, é pertinente citar Iracema, uma Transa Amazônica (Orlando Senna e Jorge Bosanzky, 1975) e Bye Bye Brasil (Carlos Diegues, 1980), e mais recentemente, Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005).

No percurso para analisar a invenção do sertão feita em Árido Movie considera-se relevante o contraste entre sertão e litoral, em torno do qual importantes obras do cinema brasileiro foram construídas. Interroga-se a relação que o filme em questão faz desses dois universos. Árido Movie traz um protagonista típico da modernidade tardia, sujeito a influências culturais múltiplas, que num mundo globalizado, se confundem na constituição dos indivíduos. O pertencimento ao sertão e o laço familiar são questões com as quais Jonas, protagonista do filme, se depara.

Deve-se considerar também o lugar que Árido Movie destina a temas políticos que percorrem seu enredo: o uso político da água, o coronelismo moderno, o misticismo, as relações de poder. Temas caros aos cineastas do Cinema Novo, que enfrentaram dilemas, revisaram suas próprias posturas e lançaram propostas estéticas politicamente engajadas, preocupadas com a coletividade. Árido Movie estabelece um diálogo com essa geração de cineastas, mas é preciso verificar sob qual perspectiva os temas políticos são trabalhados.

Sertão e litoral: uma possível renovação

            Pensar o sertão no cinema envolve a dinâmica da relação desse espaço com outro que tradicionalmente é tratado como seu oposto: o litoral. Campo e cidade são, de forma recorrente, pólos opostos a partir dos quais partem as questões de muitos filmes que tematizam o sertão. Tomando um período recente do cinema nacional, a chamada Retomada, percebe-se de que forma, em um filme como Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a construção simbólica da narrativa gira em torno, essencialmente, da dicotomia entre campo e cidade. A partir do retrato que o filme faz desses dois mundos, pode-se depreender uma forma específica de tematizar o sertão e de se conceber o Brasil. Oricchio (2003) observa que o sertão é, nesse filme, “o lugar da conciliação” (2003, p.138). É nesse espaço que se pode encontrar um Brasil profundo e livre de contaminações presentes no meio urbano.

A cidade é o lugar da violência, no qual uma pessoa pode ser friamente assassinada sob o olhar indiferente de todos. (…) O campo – o sertão, no caso – funciona como exata contrapartida e seria uma espécie de reserva moral da nação. É o lugar da pobreza digna, da solidariedade, dos valores profundos que se foram perdendo em outras partes, mas lá estão preservados, como num sítio arqueológico da ética nacional. (ORICCHIO: 2003, p.138)

            Walter Salles retomará a oposição entre sertão e litoral em um filme posterior, Abril Despedaçado (2001). O litoral é agora uma promessa de uma vida diferente, de fuga da tradição marcada no sertão seco e opressor. A tradição do Cinema Novo é forte aqui, Sertão e Mar em oposição, e como observa Oricchio (2003), a dicotomia entre esses dois espaços é constantemente recorrida através da metáfora da encruzilhada, presente ao final do filme, quando o personagem Tonho (Rodrigo Santoro) escolhe o caminho que leva ao litoral.

            Em Árido Movie, logo durante a exibição dos créditos iniciais, há um movimento de câmera que sugere deslocamentos contidos na própria narrativa do filme. A câmera filma, de cima e deslocando-se da direita para a esquerda, uma grande porção de água, o mar do litoral de Recife. O movimento marca mudança, transição e reunião de mundos distintos, o que, como se verá durante o filme, corresponde também ao próprio retorno do personagem Jonas a sua cidade natal, Rocha, motivado pelo assassinato de seu pai, Lázaro. Jonas vem de São Paulo, cidade que tanto simboliza a grande metrópole caótica no cinema brasileiro[3], e vai para o interior de Pernambuco, no sertão nordestino, retratado pelo diretor Lírio Ferreira como espaço da seca, do uso político e religioso da água, da tradição que prega a vingança em resposta a um crime cometido. Mas esse universo não está completamente isolado. Se, ao longo do filme, há o constante destaque para as diferenças entre Jonas e o mundo em que se vê inserido, não se pode ignorar como a condução da narrativa procura construir pontes, tentando pôr em contato litoral e sertão, ainda que para ressaltar, muitas vezes, pontos de choque.

            A câmera percorre o mar de Recife ao som de música eletrônica que retoma o tema trazido por Antonio Conselheiro em sua pregação messiânica e reapropriado por Glauber Rocha em seu pensamento estético e político, “o sertão virou mar, e o mar virou sertão”. Imagem e som ressaltam como as fronteiras entre os dois mundos já não são tão claras. Porque se o sertão de Lírio Ferreira não se livrou de muitas práticas tradicionais, que devem ser continuadas por Jonas, cobrado por sua família, a estética do hibridismo proposta pelo filme conduz a uma justaposição de esferas distintas, não necessariamente integradas, mas sob mútua influência. Há celulares na pequena cidade de Rocha, há plantações de maconha e a promessa de aventuras que atraem os jovens amigos de Jonas para uma viagem de Recife ao interior do estado, há motocicletas e há a televisão, vista como o elemento de união mais geral, já que, através da imagem televisiva difundida em massa, Jonas, o homem do tempo no jornal produzido em São Paulo, pode ser visto diariamente por seus familiares.

            Não há, nesse sentido, espaços isolados na abordagem de Lírio Ferreira. A conexão sertão-litoral é operada não só pela presença de personagens estrangeiros ao universo sertanejo: o já referido Jonas, seus três amigos, a videasta Soledad, mas pela própria postura do cineasta, que trabalha um projeto estético de misturas, de aproximar referências culturais, o tradicional e o pop, o global e o local. Esse projeto já se anunciava na obra anterior de Ferreira, Baile Perfumado (em parceria com Paulo Caldas, 1997), que abordava a trajetória do cineasta Benjamin Abrahão e suas tentativas de registrar o grupo de Lampião, de forma a superar o conflito entre sertão e mar, marcante na tradição cinematográfica do Cinema Novo. Nagib (2006) observa na abordagem do filme uma tentativa de criar uma continuidade entre sertão e mar, quase identificados entre si. Em Baile Perfumado, encontram-se imagens de um sertão de fertilidade, com caatinga verde e muita água (de mar e também de rios) – nesse ponto, Árido Movie vai por outro caminho, trazendo a falta de água e a seca como elementos constituintes do espaço do sertão.

Baile Perfumado rompe o isolamento insular, indispensável à utopia glauberiana, para criar um clima que sugere uma confraternização globalizada, na qual um libanês é atraído por um cangaceiro e vice-versa (…) trata-se da abordagem do Brasil por meio de um instrumental internacionalizado, alheio ao purismo do projeto nacional que alimentou o início do cinema novo. (NAGIB: 2006, p.53)

            E a utopia glauberiana, a que a autora se refere, é marcante no projeto de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), conduzido sob a forte idéia de uma separação entre litoral e sertão. Os filmes iniciais de Glauber Rocha têm essa proposta clara de marcar o isolamento do sertão, concebido como um espaço representativo por excelência da situação de classes no Brasil.

O filme de Glauber [Deus e o Diabo] radicalizava a idéia de um isolamento do sertão como mundo autônomo, dotado de lógica própria, personagens próprias, forças próprias. Tal endogenia é condição para que tal mundo possa adquirir a qualidade do que, separado do resto e organizado como um cosmo fechado, se torna um espaço alegórico que representa a nação. Trata-se de um mundo ascético, sem nenhum resíduo de urbanidade, habitado por personagens que vivem em condições mínimas, com o fardamento típico de acampamento cangaceiro ou de vaqueiro pobre. O mundo do sertão tem uma dignidade e uma inteireza que dependem desse isolamento e dessa escassez. A falta de conforto como que sanciona tudo, até a violência. O espaço aí segrega, opõe valores. Sertão e litoral pertencem a universos distintos. Não têm nada a ver” (XAVIER: 2000, p.114).

            Essa proposta inicial do Cinema Novo, pré-golpe de 1964, marcada pela demarcação clara de fronteiras, fundada na dualidade, no estabelecimento de pólos claramente opostos, ocorre sob influência marcante da conjuntura política da época e do desejo dos cineastas de proporem transformações políticas para o Brasil. Marcados pela esperança e propondo uma abstração (o sertão como alegoria do próprio país), esses filmes iniciais têm como elemento importante em sua construção o distanciamento do espaço representado. Orientam-se pela busca de uma “imagem realista do Nordeste seco e distante, do povo nordestino e sua condição de explorado, pela ausência do ‘habitat natural’ dos próprios cineastas (jovens de classe média urbana)” (RAMOS: 1990, p. 348).

            Esse olhar do cineasta urbano de classe média que olha para o sertão é fundamental, segundo Bernardet (2007), para que se possa alcançar um alto nível de abstração. O autor observa, por exemplo, que “Vidas Secas [1963, Nelson Pereira dos Santos] é um filme urbano a respeito do campo, e sua validade vem de seu elevado grau de abstração” (BERNARDET: 2007, p.88). Ainda que tenham o isolamento do espaço do sertanejo como pressuposto fundamental da construção fílmica, as obras da primeira fase do Cinema Novo não estão isentas de uma perspectiva urbana. É o olhar do cineasta que vai dar esse elemento de urbanidade e tornar a situação retratada no filme traduzível em termos gerais. Ainda sobre Vidas Secas, diz Bernardet:

o filme deixa o sertão para colocar-se num nível mais geral. Fabiano [protagonista de Vidas Secas] deixa praticamente de ser um homem particular, com problemas específicos, para tornar-se o homem brasileiro esmagado pela sociedade e colocado diante dos possíveis caminhos que lhe oferecem. Ele é tanto o sertanejo quanto o pequeno-burguês citadino, e talvez mais o segundo que o primeiro. (…) Fabiano não é apenas sertanejo, mas é qualquer um de nós que, no campo ou na cidade, estamos cerceados pelos poderes esmagadores da sociedade e vemos nossas possibilidades de realização e de progresso truncadas. (…) Para chegar a esse resultado, era necessário que o autor do filme fosse um homem da cidade. (BERNARDET, 2007, p.87)

            O sertão dos primeiros filmes do Cinema Novo não está, portanto, completamente livre dos elementos de urbanidade. Pode-se pensar que, em termos da estrutura narrativa proposta pela obra, é efetivamente do sertão que se está falando. Mas quando se trata das implicações políticas e sociais que o filme pode trazer, é importante considerar também o olhar do cineasta que se propõe a falar do campo a partir de sua formação fundada no meio urbano. Quando os realizadores do Cinema Novo fazem sua autocrítica, no período posterior ao golpe de 1964, eles passam a ambientar boa parte de seus temas no espaço urbano e não estruturam seu pensamento estético segundo uma visão dualista do Brasil. Se antes partia-se da eleição de um espaço que representaria o país por excelência, aos poucos o projeto cinemanovista passa a mudar o enfoque e o tom: sem a mesma esperança de mudança social de antes, os cineastas começam a se preocupar menos com a alteridade e a olhar para si mesmos, de forma mais clara que na fase anterior. “Aos reclamos de que o Cinema Novo só se ocupa de sertão e de favela, alguns filmes do período respondem com temas urbanos, de classe média: projetam na tela as mazelas da classe a que pertencem o realizador e o público” (XAVIER, 2001, p.62).

            E esse olhar vai caminhar em direção oposta a uma postura didática e conscientizadora. Xavier (2001) observa a aproximação dessa nova abordagem dos cineastas com a gestação do tropicalismo, que opta pela mistura de textos, linguagens e tradições, realizando o que o autor denomina de “invenções-traduções” (2001, p.30).

A colagem tropicalista apresentaria um inventário das descontinuidades da história dos vencidos, cujo termo final seria a crise do sujeito no mundo contemporâneo, em especial a morte de dois sujeitos históricos: a do proletariado no seio da cultura de massas e a das nações no seio da globalização. (XAVIER: 2001, p. 31)

            Esse olhar influenciado pelo tropicalismo deixou marcas na cultura brasileira de forma geral e tem ecos no projeto estético de Lírio Ferreira em Árido Movie. É reflexo, sobretudo, dessa crise do sujeito de que fala Xavier, o que Hall (2005) caracteriza como a desintegração das identidades modernas e o “descentramento do sujeito”.

Identidade, tradição e migração: o sujeito como estrangeiro

            Na sua investigação sobre o nascimento e a morte do sujeito moderno[4], Hall (2005) faz um apanhado das mudanças de concepção a respeito do lugar do sujeito e da identidade. O pensamento moderno foi sofrendo alterações ao longo dos séculos e permitiu construir uma concepção geral de que o indivíduo estaria liberto de apoios estáveis nas tradições e nas estruturas (2005, p.25). Quando se chega ao que Hall e outros teóricos denominam de modernidade tardia (segunda metade do século XX), os movimentos que se sucedem dão-se no sentido de “deslocar” o sujeito moderno e fragmentar as identidades construídas na modernidade (2005, p.34). O que este percurso feito por Hall permite observar é que a crise do sujeito no período da globalização dificulta o estabelecimento de fronteiras claras que definem o pertencimento do indivíduo. As referências de identificação do sujeito são múltiplas e podem ser mesmo contraditórias: ele não representa unicamente uma classe, uma etnia, uma nação, um povo – na verdade, pode ter laços com diferentes grupos, em diferentes níveis de identificação.

            A própria idéia de nação e de uma cultura nacional é socialmente construída e já não basta para enquadrar os sujeitos. “As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (2005, p.48, grifo do autor). O pertencimento é uma condição que se desloca, não é algo estático no tempo e no espaço. E as culturas a que se possa pertencer não estão dadas exteriormente, mas em constante construção numa interação dialética entre sujeito e mundo social.

            Nesse ponto, Hall ainda chama atenção para os processos de criação de uma idéia de cultura nacional unificada, à qual estariam submetidos os sujeitos. O autor pontua que esse processo ocorre a partir de uma perspectiva de poder cultural.

Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. (HALL: 2005, pp.61-62)

            E o que formas de representação, muitas vezes, tentam operar é essa unificação de uma idéia geral de nação, de cultura, de região. A tentativa de construir uma imagem do Brasil, a partir da construção de uma idéia unificada do que seria a cultura brasileira já foi criticada por Bernardet (1991):

É nítida a tendência a procurar expressões referentes a algo de difícil definição e que uniria o conjunto da sociedade brasileira, que seria um denominador comum, marca de uma originalidade que diferencia esta sociedade das outras. De algo que seria a identidade da sociedade brasileira, que produziria uma “cultura brasileira”, ou mesmo uma “civilização brasileira”, e, portanto um “cinema brasileiro”. (…) Ao negar diferenciações de tipo regional e outras, ao não levar em consideração as contradições sociais, ao buscar um elemento que homogeneíze a sociedade, ao buscar essa essência que seria comum ao conjunto do corpo social e em relação à qual teriam papel secundário eventuais diferenciações e contradições, revela-se indubitavelmente uma busca de hegemonia ideológica. (BERNARDET: 1991, p.60)

            Bernardet coloca-se aí em diálogo com Paulo Emílo Sales Gomes (1996), que já dizia em seu clássico texto Cinema: trajetória no subdesenvolvimento: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro” (GOMES: 1996, p.90). O que se põe em questão é em que nível de mediação cultural trabalham os filmes que se propõem a construir uma imagem do país e uma imagem do brasileiro. Sobretudo tendo em vista o descentramento do sujeito moderno e a multiplicidade de identidades que podem ser concebidas, deve-se discutir em que chaves são colocados os personagens no cinema e que implicações tem essas formulações imagéticas.

            Em Árido Movie, Jonas é o sujeito deslocado. No passado, integrou o universo sertanejo, na cidade de Rocha, mudou-se para São Paulo, grande centro urbano do país, e precisa, então, fazer o movimento de volta, confrontar-se com sua antiga realidade. Suas “origens” são a cidade de Rocha, mas ainda assim, ele sente-se um estrangeiro em sua própria terra, o que é explicitado pelo personagem em um diálogo do filme. Ao citar o livro O Estrangeiro, de Albert Camus, Jonas deixa claro em determinado diálogo: “É que eu me sinto estrangeiro em qualquer lugar. Até nos meus sonhos”. Ele é o personagem deslocado, sem raízes, e a história, os costumes, a tradição de sua família em Rocha lhe são completamente estranhas, “coisa do passado, parada no tempo”. A própria noção de “raízes” já começa a ter seu sentido questionado. Mas a tradição teima em chamar o personagem para o prosseguimento do costume atávico. Confrontado por sua avó, Dona Carmo, em dado momento, ele é convocado a aceitar um laço que o une ao passado e à terra: “Queira ou não queira, você tem a ver com isso” – é a voz que apela a um dos elementos que compõem a identidade de Jonas, o elo familiar, o sangue.

            Como o Tonho de Abril Despedaçado, Jonas encontra-se dividido entre submeter-se a uma tradição ou libertar-se.

Decisão difícil, pois a tradição é pesada, mas confere estabilidade ao indivíduo, faz com que se sinta parte de um mundo coerente, codificado, áspero, porém com valores estabelecidos, onde se sabe como agir diante de cada situação. A alternativa é a liberdade, com seus encantos e também com sua angústia e incertezas. (ORICCHIO: 2003, p.145)

            Mas a tradição também é problematizada no contexto da globalização e é vista por muitos como inventada[5]. Há quem prefira categorias como a Tradução para solucionar a dicotomia entre seguir a tradição e optar por um caminho completamente novo. Sobretudo com a potencialização do fenômeno da migração no contexto da globalização e da compressão espaço-tempo, compreender o problema a partir do conceito de Tradução pode esclarecer muitas questões.

Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, petencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. (HALL: 2005, pp. 88-89, grifos do autor)

            Jonas está traduzido. O filme mesmo se constrói numa perspectiva de tradução: há em Árido Movie algo como uma crise de identidade, o dilema entre dialogar com a tradição temática do Cinema Novo e incorporar os novos ritmos e fluxos de uma modernidade tardia.

            É no nível do dilema e da contradição que se constrói o protagonista. A dificuldade em se definir já fica clara logo no início do filme, quando são mostradas as primeiras imagens de Jonas. São imagens desfocadas do homem do tempo que prevê as condições climáticas no Brasil em um telejornal paulista. O desfoque da fotografia já anuncia a indefinição contida no personagem. O rosto de Jonas só será visto pela primeira vez na televisão, mostrada no mesmo momento e no mesmo local em que seu pai é assassinado. Na cidade de Rocha, enquanto a tradição o chama, Jonas é lembrado, constantemente, de sua condição de “homem da TV”, “homem do tempo”. A visibilidade midiática e as ligações com o espaço urbano marcam uma idéia construída pelos outros sobre Jonas: ele é fraco, “um playboy” de sotaque estranho, não tem coragem de matar alguém. E a visão que ele tem dos outros também indica o que ele não quer ser: atrasado, vingativo.

            Jonas encontra-se dividido da mesma forma que já estiveram outros personagens do cinema brasileiro. Antônio das Mortes, em Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), trazia a contradição na constituição do seu próprio ser, como indica Bernardet (2007). Era um personagem reduzido à contradição, ao dilema: um “bastardo” (2007, p.96). Antônio das Mortes destrói as duas fontes de alienação do vaqueiro Manuel, o “misticismo violento” encarnado pelo beato Sebastião e a “violência mística” do cangaceiro Corisco. Liberta o povo, mas sendo pago pelo inimigo, o que põe em questão em que pólo ele se apoiou em sua postura, se na revolução, ou na obediência ao opressor. Nem um nem outro, e essa é a contradição. “Antônio está entre dois pólos, não se integrando em nenhum; é solitário; não se realiza; enquanto as outras personagens são encaminhadas no fim do filme, ele não o é; desaparece. Ele dá as possibilidades de realizar a guerra, a guerra é dos outros” (BERNARDET, 2007, p.99, grifo do autor). Era o que Jonas queria, que a guerra fosse problema dos outros.

            Antes de Deus e o Diabo…, Bahia de Todos os Santos (Trigueirinho Neto, 1960) também trazia um personagem que encarnava a ambigüidade. Era Tônio, habitante de Salvador, que não se encaixava em lugar nenhum: tinha problemas com a família, não se engaja nas lutas de seus colegas, não sabe para onde ir. Trata-se de

um indivíduo cheio de contradições (…) é incapaz de abandonar Salvador e incapaz de parar de pensar em viajar;; é incapaz de dormir com a prostituta, de abandonar a estrangeira; de abandonar completamente a família ou de passar a viver com ela, de não se interessar pelos grevistas ou de se ligar profundamente a eles. Mas a maior de suas contradições, essa absolutamente insolúvel, Tônio a encontra em seu próprio físico: nem preto, nem branco, mulato. Branco para os pretos, preto para os brancos. Tônio é só. (BERNARDET, 2007, p.89)

            Toda essa contradição, já presente em personagens de filmes dos anos 1960, é reforçada pelos efeitos do mundo contemporâneo. O conflito instaurado em Jonas é provocado pelo deslocamento, pela mudança de contextos. Ao migrar, ele estabelece contatos com conjunturas diferentes e aproxima mundos distintos. A migração como desencadeador do conflito acaba tendo efeito num nível mais particular: é com o sujeito individual, com o singular, que se preocupa primordialmente. “O cinema brasileiro, como outros, registra agora o efeito, sobre as estruturas dramáticas, do processo de compressão do espaço e do tempo produzido pelo avanço técnico. (…) o velho tema das migrações vai adquirindo outro sentido” (XAVIER, 2000, p.116).

Considerações Finais

            “O sertão virou mar, e o mar virou sertão”: dessa idéia parte Árido Movie. A partir daí, Lírio Ferreira promove a união entre sertão e litoral e inverte a perspectiva revolucionária de Glauber Rocha para uma idéia de permanência. Os eventos em Árido Movie são marcados pela continuidade das condições dadas previamente, e os vislumbres de modernidade que são lançados ao longo do filme estão no nível da inovação tecnológica e do fim de fronteiras entre dois mundos. Mas a estrutura social básica não muda: se os jagunços comandados pela família oligárquica agora têm motocicletas e não cavalos, a função repressora permanece a mesma. O toque entre sertão e litoral fica apenas na superfície, não tem implicações políticas mais gerais.

            O efeito dessa mistura se reflete também no dilema de Jonas, personagem que, convivendo com dois universos distintos, opera o encontro das realidades. Sujeito a múltiplas influências, ele tem uma identidade difusa, não se sente em casa, é um estrangeiro. Ao confrontar-se com a tradição, tenta resistir, questiona suas raízes e o continuísmo do costume da vingança. Em Jonas, há vislumbres de uma atitude política no âmbito individual, uma resistência, um questionamento das condições postas. A postura dele acaba, entretanto, tão confusa quanto suas sensações. Sem saber o que fazer, ele também não sabe marcar uma posição clara, acaba passando por sua pequena cidade natal de forma inerte. O chá de Zé Elétrico gera o transe em Jonas, retira-o de um eixo claro e acaba encaminhando-o para o inevitável. A opção de Lírio Ferreira por um final aberto é uma opção de se retirar daquele mundo, escapar de escolhas, porque, assim como Jonas, ele não marca posição, apresenta-se de forma difusa.

            Árido Movie não escapa a temas caros à tradição cinematográfica brasileira. Volta-se para o sertão, em diálogo tanto com o Cinema Novo quanto com os filmes contemporâneos. Da geração cinemanovista, retira temas, do cinema contemporâneo, continua a abordagem já distante da idéia de falar pela coletividade. É um filme inserido na lógica da globalização, com seu hibridismo estético e seu esvaziamento de propostas políticas.

Road movies são muito legais para abordar seriamente questões sócio-políticas. Em vez disso, eles expressam a fúria e o sofrimento nas extremidades da vida civilizada, e dá aos seus protagonistas inquietos a falsa esperança de uma passagem só de ida para lugar nenhum.  (ATKINSON in COHAN e HARK: 1997, p. 1)

Referencias Bibliográficas

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NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgias, distopias. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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_______________. O cinema brasileiro moderno. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2001.


[1] Professor Adjunto III do Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. Mestrado e Doutorado em Multimeios / Cinema pelo Departamento de Multimeios da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente realiza Estágio Pós-Doutoral no Departamento de Cinema da Columbia University.

[2] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará.

[3] Os exemplos podem ser desde São Paulo S/A (1965, Luiz Sergio Person) até o recente O Invasor (Beto Brant, 2001).

[4] Ver: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2005, sobretudo o capítulo 2.

[5] “Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas (…) Tradição inventada significa um conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado” (Hobsbawn e Ranger, 1983, apud Hall, 2005, p.54).

 

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