“Dossiê Rê Bordosa”: biografia, autobiografia e elementos transmidiáticos

“Dossiê Rê Bordosa”: biography, autobiography and transmedia elements

Carla Schneider[1]

Resumo

A análise de planos e sequências do curta-metragem brasileiro “Dossiê Rê Bordosa”,  filme realizado na técnica de animação stop-motion (em exibição nos festivais de cinema, além da internet, desde 2008), serve como ponto de partida para este estudo que identifica o potencial transmidiático associado à linguagem do cinema de animação, e sua apropriação como produtor de imaginários, memórias, representações sociais e culturais.

Abstract

Plans and sequences are analysed from a brazilian short-film “Rê Bordosa Dossier”, a stop-motion movie animation (featured at film festivals, in addition to the internet, since 2008), that serves as the starting point for this study to identify the transmedia potential associated with the language of animation movies, and its appropriation as a producer of imaginary memories, social and cultural representations.

Palavras-chave:
Cinema; animação; história em quadrinhos; transmídia; linguagem

Cinema, animation, comics; transmedia; language

A arte sequencial como princípio

O sequenciamento é o pressuposto que estabelece a natureza de uma arte visual em movimento. Registros históricos datados desde o século XVII (MANNONI: 2003) relatam sobre as primeiras experiências que, partindo de uma sequência limitada de desenhos cíclicos, incorporados à estrutura interna de determinados aparelhos óptico-mecânicos, resultavam em desenhos animados. Esta mesma lógica, embora não tendo o caráter cíclico, foi o que possibilitou, entre 1888 e 1892, as primeiras projeções do Théatrê Optique, de Émile Reynaud (MANNONI: 2003) bem como o evento cinematográfico realizado pelos irmãos Lumière em 1895 (BERNARDET: 1986). Em se tratando de sequenciamento,  vale destacar que “o objetivo principal do dispositivo cinematográfico é produzir um efeito de continuidade sobre uma sequência de imagens descontínua” (MACHADO: 2008, 21). Este tipo de percepção parte de um aparato técnico que fundamenta-se na ilusão do movimento e continuidade, muito em função de especificidades da visão (persistência retiniana) e cognição humana (efeito phi), mas também pela presença de uma narrativa.

Contar histórias é uma atividade que acompanha o ser humano desde sempre, não somente através da linguagem oral e escrita mas também através de registros feitos pelo homem pré-histórico nas paredes das cavernas[2], bem como no legado narrativo observado nas pinturas egípcias (LUCENA, 2005). Da mesma maneira que o homem primata buscava no seu entorno os materiais e suportes, inclusive criando instrumentos específicos para compor imagens tradicionais – cuja essência estava na unicidade e subjetividade da expressão de suas ideias e histórias (MARTINS: 1992), o homem contemporâneo remete-se a uma infinidade de possibilidades expressivas e narrativas, valendo-se dos mais diversos aparelhos e tecnologias que geram imagens técnicas (SANTAELLA: 2005). Segundo os estudos de Flusser (2002, 7-8) “as imagens são superfícies que pretendem representar algo (…) são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas.” Na atualidade, muitas imagens são observadas através das mídias. Cabe esclarecer que os primeiros usos do conceito “mídia” estavam associados somente aos meios de comunicação de massa tradicionais, como o impresso e o televisivo. Contudo, segundo Lucia Santaella (1992, 2007) houve uma generalização de tal maneira que na atualidade “mídia” designa todos os meios de comunicação, dentre eles o livro, a fala, e as histórias em quadrinhos. Além disso, Henry Jenkins (2008, 27) afirma que na contemporaneidade há um “fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos” mediado por um tipo de convergência que origina transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais.

É neste contexto mencionado por Jenkins (2008) e Santaella (2007) que o presente artigo se propõe a realizar a análise de alguns elementos do filme “Dossiê Rê Bordosa” (Cesar Cabral, Coala Filmes, 2008), curta-metragem brasileiro de animação em stop-motion. A escolha deu-se mediante a constatação de seu perfil transmidiático, uma vez que o argumento origina-se de fatos associados aos quadrinhos, do ilustrador brasileiro, Angeli. Num primeiro olhar, esta narrativa animada demonstra que vai além da mera transposição de elementos entre mídias (impressa e audiovisual) evidenciando, através da linguagem da animação, potencialidades produtoras de imaginários, memórias, representações sociais e culturais relacionando elementos entre passado e presente, entre real e ficcional, entre autobiografia e biografias.

Dossiê Rê Bordosa: dos quadrinhos à animação

“Dossiê Rê Bordosa” é um filme de animação concebido como um documentário que reconstrói um fato histórico: o misterioso assassinato da personagem Rê Bordosa, em dezembro de 1987. Estruturado em quatro eixos temáticos (qual foi o crime, quem foi a vítima, quem foi o assassino e quais eram os motivos), utiliza-se da técnica stop-motion[3] para, desde o princípio, apresentar provas documentais quanto ao fato ocorrido. Um dos elementos que direciona a dinâmica entre os planos, embora não seja constante em todos eles, é a voz masculina e feminina dos narradores, em off. Expressivas, remetem ao estilo do filme “O Bandido da Luz Vermelha”, dirigido por Rogério Sganzerla, em 1968.

Nos planos iniciais deste filme em análise, observam-se imagens que foram criadas especificamente para relembrar o “crime” ocorrido a mais de 20 anos, através das manchetes de capa de jornais (Clarin, The New York Times, Folha de São Paulo) e revistas (Veja, Rolling Stones) da época (1). Além disso, há imagens de quadrinhos desenhados por Angeli, nos quais ele estaria torturando Rê Bordosa, bem como jogando-a “nas águas sujas da cidade”, dando margem para a leitura de uma analogia visual sobre o autor que encaminha a sua criação para a morte. (2).

Para Robert Rosenstone (2010) o filme histórico recria fatos ao escolher certos vestígios do passado (pessoas, acontecimentos, momentos). O uso da linguagem da animação associada a filmes do gênero documentário tem ocorrido em algumas produções brasileiras e internacionais, nos últimos anos, como em “O Divino, De Repente” (Fábio Yamaji, 2009) e “Persepolis” (Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud, 2007), por exemplo. Esta é uma prática de produção e leitura que requer um estudo específico já desenvolvido através da tese de India Mara Martins (2009)[4] e da dissertação de Jennifer Jane Serra (2011)[5].

Observa-se que em “Dossiê Rê Bordosa”, há o regaste de pessoas, acontecimentos e momentos. O tratamento da biografia do provável assassino, Angeli, bem como da vítima, Rê Bordosa, é uma das abordagens apresentadas. Há planos centrados no relato de quatro pessoas que conviveram com o ilustrador Angeli, na época do fato, descrevendo um pouco do seu perfil e também características comportamentais da personagem Rê Bordosa. É a construção identitária individual que parte de referências vindas do grupo social ao qual o sujeito está inserido (ROSSINI: 2004). Cada um desses relatos traz elementos das biografias de Angeli e Rê Bordosa, ambas marcadas pela boemia, sexo, drogas e rock and roll. Em se tratando de biografias, Giovanni Levi (2005) acredita que elas podem ser abordadas através de tipologias distintas. Dentre elas está a “biografia contexto” que alia questões subjetivas e cenário externo, evidenciando ícones históricos, culturais e sociais.

Dentre os planos deste curta-metragem animado, surgem ícones que remetem a década de 80, num tom de conspiração relacionada ao filme “Desejo de Matar”, de Charles Bronson, e as mortes de John Lennon e Trancedo Neves (3). Já pelo ponto de vista da biografia da vítima, Rê Bordosa, percebe-se uma certa apologia a memória de suportes de captação e visualidade de imagens em movimento. São planos que destacam efeitos visuais de imagens de um canal de TV (4), quando da captação do sinal analógico que, por vezes, apresentam texturas características, falhas e ruídos, bem como de imagens registradas em filmadora Super 8 (5) com passagens da infância da personagem. Este é um tipo de montagem já observado desde a década de 60, um momento marcado pela renovação do documentário, quando “imagens ficcionais misturam-se a cenas reais, procurando criar para o filme uma nova forma de dizer: baseados em fatos reais.” (ROSSINI: 2010, 3).

“Dossiê Rê Bordosa” frequentemente faz esse jogo dual entre o real e o ficcional. Faz emergir um tipo de memória sobre a qual se tem uma certa dificuldade em estabelecer a linha que separa o passado mítico do passado real (HUYSSEN: 2000). Aliás, dentre os relatos aparecem dois personagens de Angeli, conhecidos como Bibelô e Bob Cuspe; cujo tratamento dado a seus depoimentos é o mesmo dado aos prestados por pessoas reais. Na linguagem visual e da animação, todos são bonecos de stop-motion (6).

Se os filmes de ficção baseiam-se em personagens imaginados ou reconstruídos pela ação da criatividade, esse fator implica que eles também são portadores das verdades sociais e, portanto, de veracidade. (ROSSINI: 2008, 145).

Em Dossiê Rê Bordosa, a transposição dos relatos para a linguagem da animação em stop-motion, independente das fontes serem baseadas em pessoas reais ou personagens fictícios, traz para o primeiro plano, reflexões quanto a verossimilhança, quanto ao sentimento de que os relatos apresentados correspondem ao jogo constante entre o real e o fictício. No vídeo do making of[6] deste curta-metragem, o diretor e animador Cesar Cabral informa que existem aproximadamente dez horas de gravações dos relatos. Não há como saber sobre o processo de seleção e montagem deste material, se as frases, por exemplo, foram usadas nos planos do filme segundo o seu sentido original ou se foram consideradas para atender determinados efeitos narrativos. De certa forma, até pela aplicação da linguagem da animação, aqui desenvolvida na técnica stop-motion, fica o sentimento de que tudo não passa de uma grande brincadeira. Já não são as pessoas trazendo seus relatos e sim bonecos delas que são manipulados em função da linguagem técnica e, porque não, das intenções da narrativa.

Além das pessoas e dos acontecimentos, outra curiosidade apresentada neste filme é a autobiografia, quando o provável assassino, Angeli, se apresenta e relembra de um momento na sua vida que, de alguma maneira, lhe inspirou a criação de Rê Bordosa. Verifica-se que no mesmo plano, Angeli está inserido num acontecimento do passado, embora a narração esteja no presente, quando descreve o ocorrido olhando para a câmera (7). Na sequência, o plano remete a uma conversa que ocorreu entre Angeli e Rê Bordosa dentro de um banheiro masculino (8), e então ele retorna o olhar para a câmera e a narração para o presente (9).

O efeito resulta como um flash-back que, conforme Guerin (2004), não é simplesmente um voltar ao passado, mas sim uma figura retórica, um passado subjetivo que estaria no mesmo patamar de um sonho, de uma digressão, de um parênteses. Reafirma-se o jogo dual que perpassa boa parte deste curta-metragem, especialmente em detalhes como as imagens finais que são apresentadas junto aos créditos. Por ali verifica-se, enfim, que o processo de produção da animação resulta da mimesis (10) dos bonecos animados, quadro a quadro, sobre os vídeos das pessoas filmadas enquanto deixavam seus relatos. Inclusive, num desses planos, Angeli menciona a frase “Eu sou a Rê Bordosa, hein!  Eu que sou a Rê Bordosa!”.

Na perspectiva criador e criatura, uma simbiose é estabelecida através da metalinguagem utilizada por Angeli em algumas tiras e histórias em quadrinhos, nos quais ele se inclui na interação com seus personagens e, assim sendo, também se torna um personagem. Esta dinâmica também está presente em alguns planos de “Dossiê Rê Bordosa”. Estar em repouso na banheira é um hábito típico de Rê Bordosa. No encadeamento entre os planos desta narrativa animada, diversas vezes surge a banheira vista num giro de câmera, em 360 graus, com um trilha sonora de suspense (11). A ideia que se tem é que a Rê Bordosa está por ali, descansando ou até mesmo morta; revelando-se, no final, que é Angeli (12, 13); inserindo novamente o jogo duplo que oscila entre o criador (Angeli) e a criatura (Rê Bordosa).

Esta relação pode ser vista também pelo aspecto psicossocial, pelo narcisismo e hedonismo definidos por Gilles Lipovetsky (2004, 56) como um “hiperindividualismo distanciado, regulador de si mesmo, mas ora prudente e calculista, ora desregrado, desequilibrado e caótico.” Tanto Angeli como Rê Bordosa são seres paradoxais que lidam simultaneamente com o prazer pela conquista da liberdade (década de 80 no Brasil, período pós a ditadura imposta pelos militares) mas também com a angústia advinda da responsabilidade sobre as suas próprias escolhas. É um constante reinventar-se. Rê Bordosa menciona que embora a sua vida seja um mar de prazeres, sexos, festas e aventuras, isso não é o paraíso e sim o inferno. Ela é “a
barata que resistiu a todos os inseticidas”, frase retirada de um dos quadrinhos de Angeli e que está no plano inicial deste filme. Já Angeli, nas animações que surgem junto com os créditos, afirma que ele é a Rê Bordosa mas que não gosta de mulher com o jeito dela, que “matá-la foi a melhor coisa que poderia ter feito” apesar disso ter lhe gerado momentos de angústia, quando precisou “abrir as janelas e ficar respirando, respirando fundo”.

Transmidiatização: uma aposta criativa para as narrativas animadas

Personagens de histórias em quadrinhos como protagonistas de filmes nas grandes telas dos cinemas têm resultado, com uma certa frequência, em sucesso de bilheteria. Inúmeros são os exemplos, especialmente em produções internacionais e em live action com atores, ao invés da animação nas suas mais variadas técnicas. Vale destacar que, se o personagem já é conhecido do grande público, ao chegar ao cinema será apenas uma questão de reconhecimento, uma vez que ele já faz parte do imaginário das pessoas. Portanto, esta noção é essencial quando se considera a transposição de uma personagem de mídia impressa, como as histórias em quadrinhos – com uma linguagem visual fundamentada no uso da linha e de apenas duas informações de cor, isto é, no contraste branco e preto, para quando se passa para um formato colorido e tridimensional como a técnica de stop-motion proposta pelo filme “Dossiê Rê Bordosa”, em 2008. Destaca-se que este “re-conhecimento” perpassa todas as etapas do processo, desde a concepção do boneco, seus movimentos, sua voz. Vale lembrar que Rê Bordosa também aparece em algumas cenas do longa-metragem em animação 2D, “Wood&Stock: Sexo, Orégano e Rock´N´Roll” (Otto Guerra, 2006). Percebe-se que o reconhecimento visual de Rê Bordosa, no comparativo entre as histórias em quadrinho e sua versão na animação 2D e na animação stop-motion, acontece naturalmente. Entretanto, há um estranhamento quanto à voz, que na produção de 2006 contou com a participação da cantora Rita Lee (um ícone da música e cultura brasileira, em especial na década de 80), pois diferentemente a animação de 2008 traz a voz da atriz Grace Gianoukas, também expressiva e coerente com a personagem. O que ocorre é que como a primeira referência de voz para a Rê Bordosa estava em Rita Lee, em 2006, ao assistir esta personagem no filme de 2008, é isso que se espera. Em entrevista ao site Pílula Pop[7], Cesar Cabral esclarece que tinha contatado Rita Lee e estava tudo quase certo para ela gravar a voz da personagem. Mas, ao conhecer a atriz Grace Gianoukas com as personagens doidas que representa no teatro, achou que “ela tinha a pegada que eu queria para a Rê Bordosa (…) É algo muito subjetivo. (…) No “Wood&Stock”, é diferente porque é uma Rê Bordosa morta-viva, que acordou ali no IML. E no “Dossiê”, ela ainda está viva.”  Todas as escolhas que se faz para a representação de uma personagem já conhecida, precisam ser pensadas e planejadas criteriosamente para que não haja um comprometimento quanto ao seu reconhecimento. Em outra entrevista para o blog Animação S.A[8], o diretor deixa evidente este cuidado. A representação da personagem precisa ser aceita por todos os envolvidos: pessoal da direção de arte do filme, o próprio autor da personagem e o público em geral. Na questão do reconhecimento por parte do autor (cartunista Angeli), na mesma entrevista, Cesar Cabral menciona a existência de um contrato no qual o autor tem total direito de solicitar uma nova versão para a personagem nos planos e sequências, caso entenda que esteja ocorrendo uma descaracterização. Neste ponto, “Dossiê Rê Bordosa” acerta, pois além de conquistar a aprovação direta de seu autor, foi agraciado com dezenas de prêmios[9]. Verifica-se que este sucesso não ocorre apenas pelo fato de ser uma narrativa animada bem resolvida tecnicamente e constituída sobre uma personagem conhecida pelo público – em especial os jovens da década de 80. Este curta-metragem vai além da ideia de realizar, através da linguagem cinematográfica e da animação, uma história que já existe em tiras e quadrinhos, conforme observado nas narrativas animadas “Angelitos”[10], de Humberto Santana e “As Cobras – O Filme”[11], de Otto Guerra, Lancast Mota e José Maia.

Dossiê Rê Bordosa traz questões contemporâneas na concepção de narrativas animadas e se constitui num exemplo que contribui com a produção da animação brasileira no âmbito autoral, industrial e cultural, pois traz este perfil múltiplo que dá margem para obras derivadas; perfil este que está alinhado com questões atuais, como a convergência das mídias, que cria rotas para os fluxos de conteúdo entre os diversos suportes e linguagens, originando narrativas transmidiáticas.

Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado como atração de um parque de diversões. (JENKINS, 2008: 135)

“Dossiê Rê Bordosa” cria uma nova narrativa, cujo argumento se fundamenta em fatos que envolvem a misteriosa morte de Rê Bordosa. Este é um falso mistério, uma vez que a morte de Rê Bordosa tem o seu local, motivo e assassino, revelados em detalhe, quadro a quadro, na história que está na revista Chiclete com Banana de dezembro de 1987 ou, ainda, para as gerações mais recentes, entre as páginas 82 e 109 do livro “Rê Bordosa; do começo ao fim”, publicado em 2006. Por ali descobrimos que o motivo da morte é pelo rumo que a sua vida seguiu e que estava na presença de seu marido (quem diria, Rê Bordosa com marido), o garçom Juvenal. Angeli até a jogou nas “águas sujas da cidade”, mas ela sobreviveu. O tratamento diferenciado que “Dossiê Rê Bordosa” traz no seu argumento constata-se a partir dos questionamentos que fomentam o enredo do filme: Por que um artista resolveu matar sua personagem mais famosa daquela época? Vinte anos após a sua morte, o que seu criador tem a dizer? Estas são questões que não chegam a ser respondidas e, inclusive, abrem espaço para diversas respostas. Segundo Arlindo Machado, as conclusões finais do público variam, pois resultam de toda uma construção fílmica:

Mesmo quando eu vejo através da mediação dos olhos das personagens (ou do Ausente, se quiserem), a relação emocional, a empatia que estabeleço com esses mediadores vai depender de um emolduramento criado pelo conjunto do “texto” fílmico, e essa relação é complexa porque inclui também, além da transfusão de olhares, a intervenção da maquinaria sonora e o papel significante da montagem (MACHADO, 2007: 83).

A montagem, o som, os comentários dos entrevistados e as falas dos narradores, todos esses elementos determinam as diversas versões em torno da história. Trabalhar com a multiplicidade de questões é uma opção de trabalho criativo para a narrativa animada, pois assim ela se enriquece ao ampliar as camadas de leitura, atingindo um público maior, embora ainda mantenha, no caso de “Dossiê Rê Bordosa”, uma abordagem de conteúdos direcionados aos adultos.

Para Henry Jenkins (2008, p. 46) “A narrativa transmidiática refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta a convergência das mídias (…) é a arte da criação de um universo”, universo este que se desdobra em diversos suportes midiáticos com suas linguagens específicas. Para este autor, isso requer uma postura de participação ativa da plateia, pois para dar conta de todas as camadas de leitura é necessário fazer pesquisas entre todas as referências existentes. Para compreender melhor a construção narrativa de “Dossiê Rê Bordosa”, foi necessária uma pesquisa entre todas as histórias publicadas sobre Rê Bordosa para captar determinadas escolhas inseridas nos planos do filme. Acredita-se que as pessoas que já conhecem a personagem desde a sua vida plena, na década de 80, provavelmente percebem e interrelacionam determinados detalhes logo ao encontrá-los. Por conta deste perfil transmidiático, não surpreende a informação mencionada em entrevista de Cesar Cabral, novamente para o blog Animação S.A., sobre a existência de um projeto para desenvolver novas narrativas animadas em stop-motion só que em formato de série para TV, com o título “Angeli, the Killer”. Seriam como obras derivadas de “Dossiê Rê Bordosa” e dos quadrinhos de Angeli, uma vez que algumas cenas que foram animadas para o filme acabaram sendo retiradas no processo de montagem e que rendem, juntamente com a criação de novos elementos, todo um novo desdobramento intrigante envolvendo o criador e suas criaturas, isto é, Angeli e seus personagens.

Pode-se concluir, por fim, que “Dossiê Rê Bordosa” é um filme tipicamente pós-moderno porque, segundo Laurent Jullier e Michel Marie (2009, p. 270) “joga um jogo duplo e extrai grande parte do seu encanto do ecletismo de suas piscadelas intertextuais.” Este jogo duplo caracteriza-se por detalhes atuais que podem ser compreendidos pelas gerações mais recentes – mesmo que não tenham vivido o período pós Ditadura da década de 80 – mas também atualiza a memória de outras gerações, trazendo modos de subjetivação e sensibilidade, mediante relações reflexivas que remontam todo o contexto histórico, social e cultural representado por Angeli e Rê Bordosa.

Referências

ANGELI FILHO, Arnaldo. Rê Bordosa: do começo ao fim. Porto Alegre: L&PM, 2006.

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. 8.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Dossiê Rê Bordosa, site oficial. Disponível em <http://www.dossierebordosa.com.br>, último acesso em 10/10/2012.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

GUERIN, Marie Anne. El relato cinematográfico. Barcelona: Paidos, 2004.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

LAURENT, Jullier; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Senac, 2009.

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, M.M., & AMADO, J. Usos e abusos da história oral. 7ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p.167-182

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. 129 p.

LUCENA JR, Alberto. Arte da animação: técnica e estética através da história. 2ª ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. 5a. ed. Campinas: Papirus, 2008.

__________. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007.

MANNONI, Laurent.  A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema.  São Paulo: SENAC, UNESP, 2003.

MARTINS, Itajahy. Desenho: arte e técnica. São Paulo: Fundação Nestle de Cultura, 1992.

PURVES, Barry. Stop-motion. Porto Alegre: Bookman, 2011.

ROSENSTONE, Robert A. As histórias nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

ROSSINI, Miriam de Souza. Perspectivas do filme de reconstituição histórica no cinema brasileiro dos anos 70. Fênix (UFU. Online), v. 6, p. 1-15, 2010

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__________. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São

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[1] Carla Schneider é doutoranda, desenvolve sua tese junto a linha de pesquisa Linguagem e Culturas da Imagem, pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (FABICO/UFRGS). Além disso, é professora assistente no curso Cinema de Animação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) http://cearte.ufpel.edu.br/cinema/animacao email: ufpel.carla@gmail.com

[2] “Jurannessic” – vinheta animada que relaciona pintura rupestre, sequenciamento e desenhos animados, apresentada no Festival Internacional Annecy, em 2002. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=uvqLujgcLyI>, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[3] Definir stop-motion, segundo Barry Purves (2011: 6), é um tarefa imprecisa, uma vez que “a maioria das técnicas de animação tem alguns elementos e princípios que se sobrepõem. De modo geral, porém, stop-motion poderia ser definido como uma técnica de criar a ilusão de movimento ou desempenho por meio da gravação, quadro a quadro, da manipulação de um objeto sólido, boneco ou imagem de recorte em um cenário físico especial.”

[4] Documentário Animado: Experimentação, Tecnologia e Design. Tese de India Mara Martins, disponível em <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/13765/13765_1.PDF>, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[5] O documentário animado e a leitura não-ficcional da animação. Dissertação de Jennifer Jane Serra, disponível em
<http://www.doc.ubi.pt/10/teses_jennifer_serra.pdf>, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[6] Rê Bordosa, vídeo do making of. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=Ne8odP7vZmM>, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[7] Entrevista de Cesar Cabral ao site  Pílula Pop. Disponível em <http://www.pilulapop.com.br/retro/overdose_secoes.php?id=788>, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[8] Podcast Dossiê Cesar Cabral, entrevista realizada em fevereiro de 2010. Disponível em <http://animacaosa.podomatic.com/entry/index/2010-02-25T07_38_34-08_00 >, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[9] Prêmios conquistados pelo filme “Dossiê Rê Bordosa”, dados disponíveis no site official, seção Prêmios <http://www.dossierebordosa.com.br> , último acesso em 10 de outubro de 2012.

[10] “Angelitos”, narrativas animadas produzidas por Humberto Santana e transmitidas no programa Metrópolis, da TV Cultura, em 2009. Disponível em < http://mais.uol.com.br/view/xiddtuwnvlqs/metropolis–angelitos-re-bordosa-04023872E4B93366?types=A& >, último acesso em 10 de outubro de 2012.

[11] “As Cobras – O Filme”, curta metragem realizado em 1985 por Otto Guerra, José Maia e Lancast Mota a partir da coletânea de tiras de Luis Fernando Verissimo. Disponível em
< http://portacurtas.org.br/filme/?name=as_cobras_o_filme >, último acesso em 10 de outubro de 2012.

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Este post tem 2 comentários

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    antonio

    super detalhado o artigo. muito bom.

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