Cinema Brasileiro Anos 2000, 10 questões

Por Lígia Gabarra*

A mostra retrospectiva do cinema brasileiro nos anos 2000 aconteceu simultaneamente no CCBB de São Paulo e do Rio de Janeiro, no mês de Abril. Foram exibidos 45 longas, além de alguns título de médias e curtas, e realizados 10 debates, um para cada uma das 10 questões levantadas.

A curadoria margeou suas escolhas por essas questões e portanto os filmes não entram em uma lista de “mais importantes” ou de “melhores filmes” dessa década, mas obras que foram consideradas relevantes para se discutir essas questões. É importante lembrar que alguns dos títulos podem ser colocados para discutir mais de uma,  assim como muitos outros longas poderiam exemplificar os temas propostos.

 Organizada pela Revista Cinética, a retrospectiva segue a linha da mostra que os mesmo curadores fizeram em retrospectiva ao cinema brasileiro do anos 90 e o texto inicial do catalogo demonstra já como o panorama cinematográfico está diferente.

O cinema brasileiro passou por um momento de recessão durante os anos 90, quando o governo Collor acabou com as políticas públicas para o financiamento do cinema. A produção de longas daquela década foi marcado por alguns anos de estagnação e outros anos de retomada. O cinema brasileiro dos anos 2000 obteve muito mais espaço para acontecer, os principais motivos: os mecanismos de fomento cresceram, assim como a quantidade de cineastas; existem hoje diversos cursos superiores e técnicos de realização audiovisual, mas principalmente, as novas tecnologias digitais facilitariam imensamente tanto a realização, quanto a distribuição. O número de longas produzidos no Brasil entre 1991 e 2000 gira em torno de 200, enquanto na primeira década de 2000 foram realizados mais de 860 títulos.

“Que pais é esse?”

“Para onde vão nossos heróis”

“Que gêneros são nossos?”

“Quais imagens do Brasil lá fora?”

“Ação entre amigos: opção, afirmação ou necessidade?”

“Subjetividade: Modo ou Moda?”

“O Outro: Temer, Tolerar ou Conhecer”

“Deslocamentos: Para onde e  por quê?”

“Obra em processo ou processo como obra?”

“O que pulsa além dos longas?”

Essas foram as 10 questões debatidas em São Paulo e no Rio por especialistas diferentes. Portanto, enquanto o debate “Que pais é este?” foi feito em São Paulo com Cássio Starling Carlos e Luiz Zanin, no Rio de Janeiro foi a vez de Andréa Ormond  e José Carlos Avelar. Essa multiplicidade garante novamente o que propõe o projeto: ao questionar não é necessário achar uma resposta e sim estabelecer uma discussão. Os vídeo e as transcrições de todos os debates estão (alguns ainda serão colocados) no site http://revistacinetica.com.br/anos2000.

Escolhi 4 questões para  relatar aqui, o critério foi simples: ter assistido todos os filmes propostos a tais questões. Selecionei os momentos que julguei arrebatadores e significativos dentro das discussões atuais e me permiti algumas inflexões.   

Quais as imagens do Brasil lá fora?

Mediado por Cléber Eduardo, o debate contou com a presença de Marcus Mello, editor da revista Teorema e Programador da sala P.F. Gastal em Porto Alegre e Luis Carlos Merten, crítico de cinema pelo jornal Estado de São Paulo. Os filmes propostos pela curadoria foram:

A Alegria (2010), de Felipe Bragança e Marina Meliande

Cidade de Deus (2002) , de Fernando Meirelles

Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes

Estômago (2007), de Marcos Jorge

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hambúrguer

O texto do catálogo, destinado a essa questão, já começa de forma diferente dos outros tópicos, em vez de explicar qual o intuito da pergunta, Eduardo Valente afirma que Cidade de Deus é sem dúvida o filme que melhor representa  o cinema brasileiro desta década, lá fora, se não o faz sozinho. Cidade de Deus superou o universo mais específico do cinema dos circuitos de arte, da crítica e dos festivais, e se tornou uma verdadeira peça cultural como referência de imagem do cinema brasileiro lá fora”, disse Cléber ao introduzir o debate.

A questão proposta aqui é discutir os filmes que foram reconhecidos pelo olhar estrangeiro, seja no circuito comercial, de Festivais ou quem sabe, a imagem que o Brasil gostaria de passar. Dois títulos ainda trouxeram um subtema, em Cinema, Aspirinas e Urubus e O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, o estrangeiro está já no filme e portanto esboçam também uma concepção de Brasil para o estrangeiro.

A identidade, que é um dos pilares dessa discussão, está presente em outros debates como “Que país é esse?” e “O outro: temer, tolerar ou conhecer”, mas principalmente no primeiro, existe a consciência de que estabelecer uma síntese de país sempre foi um objetivo do cinema. Fica então destinada a questão “Quais as imagens do Brasil lá fora?” discutir não apenas qual a imagem do Brasil que a nossa produção proporciona, mas o que é relevante na produção em si, em um contexto global.

Ao analisar os números se constata: essa imagem está em crise. Apesar de todo ano nossos títulos circularem por grandes festivais, raras são as vezes em  que aparecem nas listas competitivas.  Em Cannes, apenas Carandiru e Linha de Passe fizeram parte da mostra competitiva; em Berlim, Tropa de Elite e O Ano que meus Pais Saíram de Férias e em Veneza,  somente Abril Despedaçado. Desses, Tropa foi o único premiado, levou o Urso de Ouro. Luis Carlos Merten descreveu uma experiência própria sobre esta crise. Ele colocou Cinema, Aspirinas e Urubus no topo de sua lista de importância mediante aos objetivos do debate: “Tenho a impressão que é um filme que faz uma reinvenção muito interessante e rica do legado do Cinema Novo, trazendo pra uma visão bem contemporânea”. Merten contou como ao assistir pela primeira vez esse filme, em Cannes, dois jornalistas, uma japonesa e um búlgaro, que sentavam ao seu lado, caíram no sono imediatamente. E levantou assim outra hipótese sobre a maneira que os filmes são recebidos em festivais. “É muito estranho falarmos de coberturas internacionais e de como os filmes são recebidos, porque na maioria das vezes a visão é muito precária e muito apressada. Nos festivais, vivemos correndo de filme para filmes”.

Imagem do filme "A Alegria" (Felipe Bragança e Marina Meliande, 2010)

A Alegria é o título da seleção que sugere um fim de década mais promissor, incluído na quinzena dos realizados em 2010, o filme ainda não estreou no Brasil. Sua inclusão nessa retrospectiva é ironicamente sua estreia em São Paulo. A Alegria é um conto fantástico que se passa na capital carioca; Luiza aos 16 anos se torna uma heroína, que num transe ébrio, luta contra o fim do mundo. O filme foi considerado um objeto dificilmente classificável na produção nacional mas também, segundo Merten, não obteve grande repercussão em Cannes.

Marcus Mello optou por focar seu discurso em Jorge Furtado, o diretor de O Homem que Copiava, Meu Tio Matou um Cara e do eterno Ilha das Flores, que obteve um sucesso surpreendente lá fora, diferente dos até então citados. De forma mais tímida Furtado esteve presente em diversos festivais e mercados internacionais, sem passar por festas tão importantes como Berlim ou Cannes. Foi selecionado para mais de 30 mostras pelo mundo todo e ainda foi comprado em muitos outros para exibição em redes de TV e em DVD. Marcus conta que essa descoberta foi uma surpresa, encontrada na revista francesa Cahiers Du Cinéma: Luc Moullet relata que, ao assistir uma retrospectiva do cineasta, ficou absolutamente extasiado com sua produção e não poupou adjetivos para falar sobre , chegando  a compará-lo a Resnais e Godard. Em um trecho traduzido por Marcus, Moullet diz: “o cineasta estabelece um ritmo ágil e adota cortes rápidos para fazer quase todos os momentos soarem decisivos. Filma a vida como se a cada instante uma revolução pudesse ocorrer a partir da maior banalidade. Esse jeito quase frenético de narrar revela a fina sintonia com o material dramático”.

Mais importante para essa discussão, do que o mérito como cineasta, é um outro aspecto, encontrado por Marcus em muitas das críticas internacionais sobre o cinema de Jorge Furtado. Segundo elas, O Homem que Copiava não é livre de crítica social, mas diferente da maior parte da produção brasileira, não exige um olhar piedoso diante da miséria. Talvez esteja ai a imagem do cinema brasileiro lá fora e, possivelmente, é uma imagem constante para os brasileiros também. Mas ainda que seja uma imagem em transição – tantos são os filmes que não falam mais de miséria no Brasil- é um tema sem muita escapatória, enquanto realidade permanente do nosso cotidiano. 

Para onde vão nossos heróis? 

Entrei neste debate, sem ler o catálogo, esperando uma colocação sobre o Capitão Nascimento, ainda me esforçando para lembrar quem mais poderia ser um herói nesta década do cinema nacional, quem sabe o Zé Pequeno gritando “Dadinho é o caralho!” ou ainda Lula, o Filho do Brasil. Mas os heróis em pauta eram na verdade os cinebiografados da década e os filmes em pauta:

2 Filhos de Franciso (2005), Breno Silveira

Cidadão Boilesen (2009), Chaim Litewski

Madame Satã (2002), Karim Aïnouz 

Meu Nome Não é Johnny (2007), Mauro Lima 

Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei (2008), Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. 

A mesa contou com a presença da historiadora Sheila Schvarzman, professora da Universidade Anhembi Morumbi e do crítico e professor Francis Vogner, além da mediação de Clébler Eduardo.

Lembro-me de uma reportagem, na Folha de São Paulo, de quando foi lançada a cinebiografia de Johnny Cash, Jonny and June, onde o tema era uma  falência dos assuntos ou mesmo dos roteiros em Hollywood, e  de como as cinebiografias eram sintomáticas desse aspecto. O gênero, em geral, procura uma figura para transformar em herói e tenta transformar a vida do tal em narrativa. Achei que essa febre ainda estava começando no Brasil, mas ao listar os títulos percebemos um enxame: Chico Xavier, Olga, Lula, Pelé Eterno, Zuzu Angel, Vips, Vinicius e até o recém lançado Bruna Surfistinha, além dos já citados filmes na pauta.

Três questões centrais foram colocadas como problemáticas desse gênero. A primeira, trazida por Cléber já no catálogo, é que o personagem muitas vezes se torna um problema para a história; a segunda, raramente existe uma relação crítica com o personagem e a terceira, o roteiro muitas vezes usa a biografia para passar uma ideologia que lhe convém. São três aspectos constantes nesses títulos e que estão muitas vezes relacionados entre si.

Uma questão que me intriga, e não sei se posso colocar na fala de Cleber – sobre como o personagem é um problema para a história – é essa de transformar uma vida em ficção; afinal a vida de ninguém tem curva narrativa, é necessário criar um personagem e fazer caber uma vida nesse mundo de começo, meio e fim. Acho que o filme que está colocado em todas essas questões levantadas e que ainda segue ao pé da letra o modelo norte americano de cinebiografia é Dois Filhos de Francisco, e Sheila Schvarzman o descreveu da seguinte forma: “Eu começaria por excluir de uma análise mais detalhada Dois Filhos de Francisco, dada a obviedade da operação estritamente comercial de espetacularização da vida das celebridades em questão. Fundada num melodrama sobre a ascensão ao sucesso de dois cantores, usando de forma eficazmente sentimental os dramas da infância e relações familiares, aquelas coisas que vão direto no nosso coração, as perdas dolorosas, a perseverança de um pai, regadas a músicas de sucesso. Não dá pra discutir, ele é formatado pra nos arrancar e nos fazer chorar.” 

Quanto ao personagem, problema para o filme, Cléber cita Madama Satã como um exemplo que se salva: Karim Aïnous foi capaz de abraçar todas as contradições de seu personagem em um discurso coeso, em que o excluído (pobre, negro e homossexual) luta com todas as suas forças e principalmente com seu corpo: “o filme se engaja com o personagem, e ele passa a ser um emblema discursivo do olhar do seu cineasta. É um dos filmes mais políticos dessa década, e sem negociação, porque o Satã não negocia. Ele, diante de uma instancia do poder, que é anterior a ele entrar em cena, dá porrada”.

Ambos, Cleber e Sheila expuseram a dicotomia entre Satã e Johnny, enquanto o primeiro é um personagem marginalizado tentando impor, de todas as formas, seu espaço; Johnny é um jovem de classe média querendo fugir do tédio da burguesia e, assim como Bruna Surfistinha, rebelde sem causa. Sendo, esses dois últimos Bruna Surfistinha e Meu Nome Não é Johnny, casos claros em que não existe qualquer forma de crítica diante do personagem. A maior parte das cinebiografias é feita como forma de elogio ao seu objeto.

O único exemplo, citado pela mesa, de biografia que é crítica em relação a seu personagem é Cidadão Boilensem, documentário sobre as ligações do presidente da Ultragaz  com a ditadura. Parece necessário um sujeito ser fã de tortura, para que ele seja alvo de crítica. Trata-se de um raro exemplo de cinebiografia documental que tenta olhar os dois lados da questão.

Simonal, Ninguém Sabe o Duro que eu Dei foi exposto como o completo oposto de Boilensen, tanto em termos narrativos quanto históricos. O documentário sobre Simonal, trata, mais do que sobre a música do cantor ou de sua importância, da  defesa às acusações que colocaram um fim em sua carreira; Simonal teria sido um grande delator da ditadura. E se de fato ele foi ou não um delator, o filme não dá chance à dúvida, os depoimentos são todos favoráveis e redentores, mesmo depois do depoimento do seu contador, que conta ter apanhado em uma delegacia. Sheila acentua o enrosco que o filme se coloca nesse momento: “Essa inconsciência parece se reproduzir na própria argumentação do filme. O que significa, eu me pergunto, um cara mandar caras do DOPS baterem [em outro]? Não tem significado, está tão inconsciente de onde ele está vivendo, em 69, 70. Então, me parece que essa inconsciência que está no personagem, está no filme, no momento em que o contador dá o seu depoimento, narrando a truculência com a qual foi tratado, mas também os interessantes embates, quando ele conta. Nesse momento a biografia do Simonal se esvazia, o contador ganha a cena e é como se o espectador, assim como o Simonal do período, não tivesse como reagir àquele relato. Como um cara tão bacana, que segura multidões no Maracanãzinho, foi capaz do que foi. O filme não é capaz de mostrar as contradições do personagem e do seu tempo, os aspectos políticos, o clima de perseguições e autoritarismo e o responsável.”

Símbolos de "Olga" (Jayme Monjardim, 2005)

O personagem do torturador foi levantado com certa ironia como o grande vilão do novo cinema nacional. E o irônico é o novo posicionamento diante do personagem, existe um deslocamento de valores históricos que a ficção assume também. O Lula não era o herói de hoje há 20 anos, assim como a Olga comunista não era tão palatável. Mas além da relação do público com o personagem ter mudado, existe uma maneira muito pessoal de retratá-los. Olga, personagem, não é tanto uma revolucionária, quanto ela é mãe e mulher. Francis Vogner realça essa idéia, ao se lembrar do cartaz do filme, abaixo da foto de Camila Morgado com olhos azuis penetrantes, existem símbolos relacionados ao personagem: o do comunismo, o do judaísmo, o da mulher e por fim, o do amor representado por um coração. Voltamos ao mesmo princípio melodramático comercial de Dois Filhos de Francisco. Não existe um intuito histórico de contar a saga de Olga, mas uma necessidade de emocionar. Os três membros da mesa afirmaram justamente como o personagem da mãe teve um papel essencial em humanizar certos personagens, ou de criar um vínculo dramático com o público; Chico Xavier, perdeu a mãe e passou o resto da vida ajudando mães a encontrar seus filhos no além; Zuzu Angel adquire um olhar crítico à ditadura porque ela é mãe e perdeu seu filho e Cazuza, o filme, é baseado na biografia escrita pela mãe do cantor.

Concluo a questão com uma última reflexão de Cléber Eduardo: “Estamos numa espécie de agenda positiva, no mau sentido. E todo personagem que traz algum nível de complexidade difícil de lidar, nos filme, acaba sendo jogado pra debaixo do tapete(…) precisamos ir pro afeto pra não pegar a dimensão histórica e concreta”

Subjetividade: Modo ou Moda?

Estava especialmente curiosa por esse tema com, quem sabe, uma vontade cruel de saber que filmes seriam colocados entre um grupo e outro (modo ou moda), e ao fim do debate talvez tenha ficado claro em qual das pilhas entrava cada um, mas a oposição colocada no título não era mais que um gracejo. Talvez a grande questão estabelecida por esse debate é: por que os artifícios da subjetividade se tornaram tão presentes em nosso cinema e como eles se manifestam?

A mesa foi mediada por Eduardo Valente e também contou com a presença de Cesar Zamberlan, editor da Cinequanon, e Pedro Maciel Guimarães, doutor em cinema pela Sorbonne. Os filmes selecionados: 

Dias de Nietzche em Turim (2001), Julio Bressane 

Eu me Lembro (2005), Edgar Navarro

Nome Próprio (2007), Murilo Salles

Pan-Cinema Permanente (2007), Carlos Nader

Tropa de Elite (2007), José Padilha.

Subjetividade em "Tropa de Elite" (José Padilha, 2007)

Pedro Maciel iniciou sua fala descrevendo quais seriam os artifícios de linguagem ligados a subjetividade, ou ao cinema de primeira pessoa, são eles: a voz em off, ou narração; a câmera subjetiva, que simula o ponto de vista do personagem, e a identificação secundária em que o personagem se relaciona diretamente com o público, como por exemplo quando ele olha para a câmera. Deste último caso são raros os títulos, nenhum da lista se enquadra. Pedro lembrou de dois longas desta década como exemplo: Cleópatra, de Bressane, em que Alessandra Negrini se exibe para câmera e se experimenta diante dela, e Baixio das Bestas, de Cláudio Assis, em que Matheus Natchergaele encara a câmera e anuncia “Sabe o que é bom do cinema, é que no cinema você pode fazer tudo que quiser”. Cláudio Assis também colocou um personagem falando direto com a câmera em Amarelo Manga, quando Ligia, a moça que serve todos os bêbados da região olha para o expectador e diz “Eu não encontro ninguém que me mereça, só se ama errado, eu quero que todo mundo vá tomar no cu”.

A câmera subjetiva é presente em Dias de Niesztche em Turim, quando o personagem passeia investigando a cidade, mas o olhar do filosofo sobre Turim é também o do diretor. Pedro apontou essa presença clara do diretor também em Pan- Cinema Permanente, em que Carlos Nader em determinada altura do filme passa a procurar uma essência além da máscara no poeta Wally Salomão, objeto do documentário. A busca é completamente mal sucedida, Wally é tão habilidoso com a sua interpretação que pretende até fingir que foi desmascarado. Nader conta que o mais próximo que chegou de filmar o Wally despreparado, foi enquanto ele dormia, mas depois revela que o poeta fingia o sono. Nesse sentido acredito que o filme falha ao tentar encontrar a subjetividade de Salomão; essa busca sem êxito não é nenhum demérito, Cléber explica: “A crise é do filme que – embora tente acessar a senha da subjetividade de Wally, um momento de distração ou de falta de consciência da encenação – jamais logra êxito. O poeta é ator de si. Estar no palco significa que o dentro está fora da cena – a não ser que, evidentemente, manifeste-se na superfície da imagem, no corpo, na impostação vocal, nos versos e nos gestos largos, despudorados e sem pedir licença para acontecer. A subjetividade do poeta, muito bem organizada aos fragmentos pela montagem, é uma subobjetividade.” A subjetividade exposta é a de todos em volta de Wally: do diretor, daqueles que falam sobre sua poesia e principalmente de quem interage com Wally; ao provocar as pessoas com suas artimanhas ele era capaz de extrair dos outros partes que a elas eram desconhecidas.

O último artifício citado, a voz off, esta presente em todos os outros filmes da lista além uma porção de títulos da década: Cidade de Deus, Cheiro do Ralo, O Homem que Copiava, O Ano que meus Pais Saíram de Férias, Céu de Suely e Vips. Tropa de Elite representa um momento interessante da década quando se fala em voz off; as elucubrações do Capitão Nascimento se tornaram mote nacional, apesar do personagem não representar o ponto de vista do filme, que na verdade pretende lançar um olhar critico sobre suas atitudes autoritárias. Nascimento virou um Herói. Para compactuar seu discurso com as expectativas do público, Padilha teve de reformular o papel de Wagner Moura no segundo filme; o trouxe pra perto de uma ideologia mais digerível e o tornou de fato a voz do filme. Eduardo Valente colocou algumas curiosidades interessante sobre o filme: a narração do Capitão Nascimento não estava no roteiro original, ele se impôs como narrador na montagem do filme. Isso foi relatado pelo próprio Padilha. Originalmente, a história era o trajeto da personagem de André Ramiro, Mathias, o recruta negro – e há resquícios disso no filme, “o cinema sempre deixa marcas”. Por exemplo, há referências a uma parte que não existe mais: a infância do Mathias, aparecem nos créditos ‘Mathias aos 7 anos’, ‘Pai de Mathias’, ‘Mãe de Mathias’ como uma forma de dar reconhecimento aos atores que trabalharam, mas não aparecem no filme. O Mathias perdeu o protagonismo e a subjetividade do filme para o Capitão Nascimento ao longo da produção, que é algo curioso de se pensar. E a partir disso o Capitão Nascimento se tornou uma figura tão marcante, ao ponto de impor-se nesta aproximação de discursos.

Eu me Lembro foi o filme mais bem comentado pela mesa quando se falou em voz off  nele, a narração pode-se dizer em primeiríssima pessoa, pois o personagem é altamente identificado com o autor: se propõe a contar as memórias e desafiar a representação temporal quando deseja recuperar suas lembranças mais arcaicas da infância. Aparece aí, então, uma dupla identificação: o narrador se identifica com o personagem, e o personagem se identifica com o espectador. Mas o filme vai mais além, e mistura lembranças pessoais, que são subjetivas, as histórias de uma infância, com lembranças coletivas: as lembranças objetivas e a história de um país. A história de Guiga, personagem narrador, acaba se tornando a História recente do país. A distinção filosófica, que nos diz que subjetivo é o contrário de objetivo, cai por terra, e o filme se apoia sobre essa dualidade. À medida que o filme avança, as visões subjetivas do personagem tornam-se as imagens do filme”. Esse comentário de Pedro Maciel se destaca contra uma das problemáticas da questão anterior “Para onde vão nossos heróis?”: a tendência de olhar para o pessoal na incapacidade de estabelecer um contexto histórico. Essa problemática é encontrada em Nome Próprio, filme baseado nos livros da e na própria persona de Clara Averbuck, uma das primeiras poetizas blogueiras do Brasil. A voz off é em grande parte os próprios poemas da personagem, o que torna a subjetividade do filme ainda mais íntima, que é uma característica do universo do autor virtual. O filme também se volta à “Para onde vão nossos heróis?”, afinal existe uma certa biografia aqui e, como outros, é incapaz de olhar seu personagem de forma crítica, a narrativa se rende ao glamour lírico da personagem.

 O que Pulsa  Além dos Longas?

Eduardo Valente começa seu texto no catálogo sobre esta questão, falando como é impossível se discutir cinema nesta década, resumindo-se a longas. A noção de cinema se assemelha cada vez mais ao audiovisual. E o que separa o fazer cinematográfico do televisivo é muito mais tênue. Valente argumenta que se antes existia um demérito da linguagem da TV em relação à fílmica, hoje a produção americana de séries é tão, ou até mais interessante, que sua produção de longas.

As séries brasileiras se tornaram muito mais comuns nessa década assim como longas feitos diretamente para a TV.  Apesar desse tipo de produção ter mais alcance de público, o que prevaleceu no debate e na curadoria foram os curtas. Talvez, novamente pelo crescimento do número de cursos audiovisuais ou de festivais pelo país, o curta tem uma importância muito grande,  como formato da experimentação e muitas vezes precursor estético. “Foi no curta que se impuseram algumas questões estéticas e de dramaturgia que logo desembocaram na produção dos longas.” explica Valente.

A mesa para esta questão foi composta por: Esther Hambúrguer, ensaísta, crítica e professora da USP; Leandro Saraiva , crítico de cinema, roteirista e diretor de televisão e mediada por Cléber Eduardo. Os curtas, médias e “outros materiais audiovisuais” usados para debater essa questão foram:

A Pedra do Reino – parte 1 (2007), de Luiz Fernando Carvalho

A Pedra do Reino – parte 2 (2007), de Luiz Fernando Carvalho

Acidente (2006), de Cao Guimarães e Pablo Lobato

As Vilas Volantes: O Verbo Contra o Vento (2006), de Alexandre Veras

Avenida Brasília Formosa (2008), de Gabriel Mascaro

Convite Para Jantar Com o Camarada Stalin (2007), de Ricardo Alves Jr.

Estafeta – Luiz Paulino dos Santos (2008), de André Sampaio 

Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira

Helena Zero (2005), de Joel Pizzini 

Imprescindíveis (2003), de Carlosmagno Rodrigues

Man.Road.River (2004), de Marcellvs L

Morro do Céu (2008), de Gustavo Spolidoro 

Muro (2008), de Tião 

Nevasca Tropical (2003), de Bruno Vianna 

Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2006), de Kléber Mendonça Filho

Ocidente (2008), de Leonardo Sette

Palíndromo (2001), de Philippe Barcinski

Retrato Brasileiro: Maria Gladys (2008), de Paula Gaitán

Um Ramo (2007), de Marco Dutra e Juliana Rojas

Vida (2008), de Paula Gaitán

Leandro começou sua fala comentando Acidente, média de Cao Guimarães e Pablo Lobato, um filme que viaja a diversas cidades do interior de Minas procurando momentos interessantes. Leandro o expôs como um exemplo do chamado antidocumentário: “é um filme que realiza o projeto da desrealização, não tem um tema ou personagem que permeia. É uma série de pequenos ensaios audiovisuais, que poderiam ser ensaios fotográficos, (…) mas são em movimento, isso é um dispositivo no sentido mais externo ao conteúdo (se é que vale a pena falar essa palavra) e é uma base para a experimentação plástica. (…) uma realização do olhar”.  Helen discordou do elogio de Leandro ao filme, colocando que essa externalização de conteúdo se torna mais uma falta de propósito do filme e concentrou sua fala na cinematografia de curtas de Julia Zákia que mistura a ficção com situações documentais.

Os pontos altos do debate circularam em torno de questões estéticas geradas por curtas e médias. Ficou difícil margear todos os temas que a discussão propunha; muita coisa pulsa além dos longas. Com o tempo curto, restou citar essas manifestações audiovisuais e não refletir tanto sobre elas. Seria interessante propor uma mostra de curtas dos anos 2000 e suas respectivas questões.

Por fim, um aspecto muito interessante colocado no catalogo por Eduardo Valente, foi sobre como as manifestações audiovisuais na internet são ainda tão difíceis de classificar: “Finalmente, é preciso notar que ainda mal começamos a tocar com real interesse nas dimensões que a internet ainda poderá apresentar de novidade e imbricações. Fala-se na sua fusão com a TV no futuro, mas a verdade é que até agora ela tem sido mais meio do que espaço de autêntica novidade. Claro que ver exemplos de penetração viral de coisas como Tapa na Pantera ou Dilmaboy cria significados,  mas ainda não se conseguiu amadurecer de fato algo que a internet traga em termos de  conteúdo que possa mesmo fazer a arte audiovisual avançar com força. Mas, claro, apenas começamos a tatear.”

As outras 6 questões

Estão no site da retrospectiva e vale a pena acompanhar os debates, que trazem conteúdo tanto para crítica quanto para a reflexão do realizar. Este relato, apesar de longo, é muito sintético em relação às discussões originais, que não podem deixar de ser conferidas.

*Lígia Gabarra é graduada em cinema pela FAAP e roteirista do programa Tela Digital, da TV Brasil.

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