1) Você estava iniciando seus estudos em cinema na ECA quando começou a escrever no jornal O Diário de S. Paulo. Foi sua primeira experiência crítica?
Sim. Foi um ano de aprendizado nessa atividade regular de cobertura dos lançamentos e resenha dos filmes. Numa primeira fase, eu e os parceiros da equipe escrevíamos os textos durante a semana; depois, houve a concentração de todo o trabalho na segunda-feira, para compor a página de crítica da terça-feira, seguindo um modelo de outros jornais (em São Paulo, o Jornal da Tarde). Antes, escrever havia sido esporádico, mas o meu primeiro texto publicado foi uma resenha de Todas as mulheres do mundo, no jornal ARTES, dirigido pelo Carlos Von Smith, em 1967.
2) Como se deu o convite para escrever em O Diário de S. Paulo?
O jornal convidou o Paulo Emilio para assumir a crítica. Ele achou mais interessante abrir espaço para os alunos exercitarem a sua capacidade de escrita e de opinião; uma grande oportunidade. Houve uma reunião na ECA para tratar do assunto e, em conjunto, o Paulo Emilio, o Jean-Claude Bernardet e o Rudá de Andrade decidiram fazer a proposta que o jornal aceitou. Chamaram os alunos para formar a equipe.
3) Você fazia parte de um grupo de alunos que colaborava com a coluna de cinema. Quem eram as outras pessoas?
A equipe se formou no diálogo entre os estudantes e os três professores que foram muito abertos às nossas sugestões. Fiquei como coordenador, no sentido de fazer a ponte com o chefe de redação do jornal, o Joaquim Pinto Nazário, e conduzir as reuniões do grupo. No início, participavam o Eduardo Leone, o Djalma Batista, a Marília Franco, o José Possi Netto (que estudava teatro, mas estava sempre em contato com o pessoal de cinema). Depois vieram também o Sérvulo Siqueira, Maurice Politi, Valéria Silveira, Frida e Álvaro Ferreira.
Há um autor que, em 1969, assina alguns textos: o Cláudio de Andrade que era, em verdade, um pseudônimo usado pelo Jean-Claude que havia sido cassado pelo regime militar e impedido de continuar seu trabalho na USP.
4) Como vocês se organizavam para montar a coluna? Como decidiam quais filmes seriam objetos das críticas?
De posse da lista dos filmes em lançamento, escolhíamos aqueles que seriam objeto de nossa atenção, partindo de critérios como procedência, histórico do diretor, expectativas quanto ao interesse geral, recorte temático, etc…
Em função das características do filme e de manifestação expressa do interessado em escrever sobre ele, definíamos as tarefas da semana. Depois, ficou mais complicado, porque tínhamos de fazer as escolhas durante o fim de semana para que todos pudessem ir à primeira sessão de segunda-feira para ter a crítica pronta mais ou menos 19 horas. O jornal tinha um horário de fechamento e, como sempre, a parte de cultura era das primeiras a ficar pronta, pois não havia aí o risco da notícia crucial de última hora.
5) É possível notar uma comunicação direta com o leitor, tratando-o de “você”, “se você for assistir…”. Essa Comunicação muitas vezes é em tom de crítica ao público que corre ao cinema para ver, aquilo que você chama de “enlatados” no artigo “O INC e os festivais”. Outras vezes é possível notar um didatismo, como no artigo de “2001”. E por fim, ainda há a vontade de entender o público leitor e possivelmente espectador dos filmes analisados. Essa relação com o público está, de alguma forma, ligada à militância política do grupo?
Havia aquela informalidade típica dos estudantes e esses momentos de recado que podiam ser mais simpáticos ou agressivos em função sim da militância, pois nosso cotidiano era feito de assembléias na universidade, passeatas, discussões políticas, tudo pautado pela noção de engajamento muito forte na época. Dentro disso, havia nuances no grupo e houve um deslocamento em cada um de nós ao longo daquela experiência. O dado comum era uma postura de defesa do cinema de autor, dentro ou fora da indústria, de Welles (minha primeira crítica) ao Cinema Novo, conforme a feição que a “política dos autores” dos Cahiers du Cinéma tomou na esquerda brasileira.
6) Em dez de dezembro de 1968, você escreveu a resenha “Lixo sem limites”, que trata de “O Bandido da Luz Vermelha”. Em treze de dezembro é decretado o AI-5. Seu último texto antes do AI-5 é sobre o filme de Sganzerla. Depois desses dois acontecimentos, percebemos uma mudança em relação aos filmes do dito “cinema industrial”. Gostaria que você comentasse sobre essas mudanças e a forma como “O bandido” e o AI-5 influenciaram essa sua experiência crítica.
O lançamento do filme do Rogério Sganzerla foi o momento decisivo de toda a nossa experiência, pois já estávamos no esquema de compor a página de segunda-feira e tivemos a chance de tornar o nosso trabalho no jornal em tribuna de defesa e promoção do filme que nos ofereceu a primeira bandeira concreta, o que unia a vontade de militância com a cinefilia de uma forma que os filmes do Cinema Novo lançados em 1968 não haviam permitido – tinham sido poucos e sem impacto. A página do jornal expressa muito bem nossa posição. Contribuiu para isto toda a discussão sobre o tropicalismo que tivemos em 1968, e o grupo era muito ligado ao que acontecia na música e no teatro, de modo que nossa recepção ao Bandido se apoiou na adesão àquele movimento, o que significava polemizar dentro e fora da universidade. Minha memória daquele dezembro termina com o emocionante show de Gal Costa no Teatro de Arena, depois do Ato 5, com muita gente já na prisão. Dado o clima já instalado, tornou-se uma performance de despedida de toda uma época. E é simbólico o lugar em que o show ocorreu.
Pela tônica do meu texto sobre o Bandido, já se anuncia um esgotamento do ataque mais sumário à indústria cultural; num estilo de manifesto, trato de questões de comunicação de massa e o mundo da mídia como uma referência mais complexa, algo a ser melhor conhecido e discutido como lugar de enfrentamento e apropriações. Não surpreende que tenha vindo depois uma atenção maior (de minha parte, pelo menos) aos gêneros do mercado, o que se definiu ainda dentro de uma pauta que privilegiou a paródia e os exemplos de meta-cinema em que certos autores, como Tinto Brass, por exemplo, exploravam ironicamente as regras e os clichês.
Em verdade, mostrou-se ingênua a postura de bater nos “enlatados” sem aprofundar os argumentos, sem exibir os seus mecanismos que, para nós, trazia também o crédito do “crítico especializado” que reconhece nuances e identifica detalhes importantes. Mudou também o tom com que se usava o “você”, pois já estava claro que não falávamos “de cima” como jovens iluminados pelas promessas de rápida superação daquele estado das coisas, daquela ordem político-militar que se mostrou muito mais poderosa do que parecia em 1968.
7) Em algum momento desta experiência houve censura aos textos?
Era a mesma que definia a leitura, por parte dos censores, de todo o jornal, seguindo a rotina da época. Você detecta a censura em algumas frases alteradas – por exemplo, lá está “mulher da vida” em vez do “prostituta” que escrevi para falar de uma personagem. Havia cortes, e não temos os originais para cotejo. E havia estratégias de drible que levavam a invenções de estilo como no caso de meu artigo sobre O bravo guerreiro do Gustavo Dahl que supõe um leitor capaz de ir além do que está explícito. Como sempre, o entrave gera invenções, embora não suprima a fonte do bloqueio.
8] Em “Sertão Mar”, na análise de “Barravento”, você diz que a sua militância política na época em que viu o filme (aqui considero que você o tenha visto em 1968, num momento próximo ao da escrita da crítica – acerca da reprise de “Barravento”), você diz que a sua militância política na época não considerou a ambiguidade da obra. Essa postura diante do discurso fílmico, num primeiro momento partindo da militância para a análise e num momento posterior saindo do cerne do discurso para encontrar uma significação política, é traço de um amadurecimento crítico, talvez obtido através de seus estudos ou é traço da crítica de uma época?
A mudança, no meu caso, vem de algo que ocorreu também na minha relação com outros filmes ao longo do tempo. Naquele momento, inexperiente, segui o consenso que já havia em torno de Barravento, buscando explicações que seguiam linhas muito gerais. Mais tarde, depois de estudar o filme com maior atenção (dentro de um trabalho de tese), tive outra percepção da estrutura e passei a discutir as contradições do filme. Mais sensível à forma, fiz uma leitura mais pertinente. Não creio que o problema tenha sido a militância per se, pois vejo que se pode ainda dizer coisas sobre os filmes do Cinema Novo (e até de Barravento), que considero equivocadas ou preguiçosas, e isto não deriva de qualquer militância política. O ponto central é a experiência, a sensibilidade e a disposição do crítico em ver-e-ouvir sem fórmulas prontas o que vem da tela. Você tem razão quando, no meu caso, fala em amadurecimento, pois foi isto mesmo se tomamos a questão como passei a conduzir análises e a avanço de relação com o estilo de cada obra, pois a forma artística é uma mediação que permite caracterizar significações de caráter político, pois aí também, e às vezes isto é decisivo, está a política. O que não exclui outras questões ligadas à posição que você assume quando intervém no debate numa certa conjuntura. Volto ao exemplo de O bandido. Talvez eu não concorde com tudo o que escrevi então para manifestar minha posição, mas o essencial foi ter tomado aquela posição que, tal como a defesa que fiz de Terra em transe em debates universitários de 1967, teve enorme papel no meu trabalho posterior. Não por acaso, Alegorias do subdesenvolvimento é um ajuste de contas com aquele momento de primeira reação aos filmes que marcaram meu período de formação na universidade, antes de pós-graduação e pesquisas mais rigorosas. O dado curioso é ver como minha opção pela passagem ao mundo urbano era então unilateral, não admitia nuances, tal como se vê na resenha de O dragão da maldade contra o santo guerreiro que escrevi em 1969 (este é outro filme que recebe tratamento distinto mais tarde).
9) Como se deu o fim da coluna no jornal? Em que ela contribuiu em sua formação como crítico?
Deveu-se em parte às mudanças mais amplas no jornal que agonizava dentro da crise aguda dos Diários Associados e, em parte, à nossa fase de transgressões no estilo da crítica, com aquelas experiências de leitores ingênuos da poesia concreta marcados por um espírito pop-paródico de citações. Era outro eco do tropicalismo nas nossas páginas. O jornal disse que estávamos “empastelando” a crítica, que ninguém entendia o que era aquilo. Tchau.
Terminou aí, em junho de 69, a curta iniciação que se marcou pelo desajeito, não chegando a conformar um método ou um estilo, mas que trouxe a vivência dos desafios da crítica e seus embates no jornal, tudo feito num incrível atropelo, em poucas horas naquela tarde de segunda-feira em que só ficava mais tranqüilo quem tivera a sorte de escrever sobre um filme que havia entrado na sexta (o que não era a regra, mas aconteceu comigo no caso de O bandido). Não tínhamos o instituto da cabine antecipada para os críticos; em tudo, era o oposto do que tenho vivido, seja na relação com suplementos dominicais, seja na relação com as revistas acadêmicas.
10) Gostaria que você comentasse um pouco sobre a importância de sua formação acadêmica no Brasil, para o estudo do cinema brasileiro.
Sou da geração que mergulhou na cinefilia a partir do contato com os “cinemas de arte”, com as salas de reprise dos filmes europeus como o Bijou na Praça Roosevelt e, mais decisivo, com a freqüência a sessões da Cinemateca na Sete de Abril, justamente no prédio dos Diários Associados onde estava o MAM de São Paulo. O cine-clubismo universitário, como aluno de engenharia na USP, e a Cinemateca foram experiências decisivas que me levaram ao curso de cinema da ECA quando este se inaugurou em 1967. Lá re-encontrei a cultura da cinemateca, pois foi Rudá de Andrade o primeiro coordenador do curso, e lá estavam Paulo Emilio, Jean-Claude, Roberto Santos e Maurice Capovilla. Foram os meus primeiros professores, o que logo me familiarizou com as questões do cinema brasileiro, sua história, o modo como se articulavam a questões estéticas e de produção, os debates políticos, a nova geração de cineastas então em primeiro plano, do pessoal do Cinema Novo a Luiz Sérgio Person, incluindo o próprio Roberto e o Capô. Na graduação, Jean-Claude e Paulo Emilio me iniciaram na crítica e na pesquisa histórica, e também tiveram função formadora na ênfase ao momento das escolhas do crítico, das perguntas que coloca, dos valores que assume diante da relação entre cultura e sociedade.Por outro lado, na ECA, era um momento em que se dava um vivo debate em torno do estruturalismo, da lingüística e da semiologia das imagens; para nós de cinema, Eduardo Peñuela foi o condutor deste debate importante na minha formação em termos de método.
No mestrado, tive a felicidade de fazer minha pesquisa sobre a crítica de cinema dos anos 20 sob a orientação de Paulo Emilio (sempre astucioso demais no diálogo que foi definindo os meus caminhos) e tive a chance de encontrar as principais referências que inspiraram minha forma de trabalhar e minha consciência dos métodos críticos e de análise literária nas aulas de Antonio Candido. No doutorado, a viagem a Nova York trouxe uma ampliação de repertório e um novo eixo de aprendizado, pois me deparei com um momento extraordinário do teatro e das artes visuais na cidade, um processo cultural que tinha enorme ressonância na Universidade de Nova York. Uma parcela dos professores estava intimamente ligada à produção cultural; eu tive como orientadora Annette Michelson, uma das fundadoras da revista October, em 1976, e uma porta-voz do cinema experimental desde os anos 50. Foi um banho de consciência analítica e de percepção da forma visual. Mudou minha relação com o cinema. E trouxe novas lições de método. Isto se reflete em muitas de minhas escolhas que envolvem o teatro e a discussão do cinema como arte visual, o que cruza, espero que produtivamente, o meu eixo narratológico construído na Teoria Literária.
Isabella e Luciana,
Parabéns pelo trabalho tão necessário! É muito importante, no tempo em que vivemos, fazer circular novamente um material que ajuda a compor o quadro da pesquisa histórica no cinema brasileiro. Vai ser muito útil para os nosso alunos de História-Memória e Imagem da UFPR. Abraços, Pedro
Fiquei espantado ao saber que Ismail Xavier começou sua carreira de crítico de cinema ainda estudante no ‘Diário de São Paulo’, cujo chefe de redação era o meu pai, Joaquim Pinto Nazario. Que mundo pequeno!
Belo trabalho, parabéns! Muito bom saber esse lado da vida do Ismail.
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