Entrevista com Rafael Lage

* Por Lidiane Volpi

Na edição que contempla o documentário enquanto meio pelo qual a voz do outro faz-se ouvida, Rafael Lage, realizador do longa metragem Malucos de Estrada – A Reconfiguração do Movimento Hippie no Brasil, concedeu entrevista para RUA. Ao longo da entrevista são abordadas questões como a imersão e integração ao mundo dos homens e mulheres retratados frente a câmera, bem como questões pertinentes ao fazer documentário em si.

RUA: Na edição de Março, a temática da RUA gira em torono do documentário. Para vocês qual a importância que o documentário tem frente aos outros produtos audiovisuais?

Rafael Lage: O documentário nos surgiu como uma ferramenta midiativista. Por anos os artesãos vinham tendo seus artesanatos apreendidos pela prefeitura, que não se importa em levar também bens pessoais como ferramentas, mochilas, barracas de camping, documentos e outros itens. Porém, sempre que os artesãos denunciavam a situação, os fiscais e a policia alegavam que os fatos não haviam acontecido e utilizavam a “fé pública” (o principio de que o agente público sempre diz a verdade) como ferramenta de coação.

Nesse contexto, onde o abuso de poder estava legalizado, somente provas factuais poderiam servir de base para uma denúncia consistente. Assim surgiu nosso primeiro doc “A criminalização do artista – como se fabricam marginais em nosso país” (http://vimeo.com/27659191  vídeo de 17 min, com mais de 265.000 views.). A partir deste vídeo, foram instaurados inquéritos no ministério público e nas corregedorias da prefeitura de Belo Horizonte e na Policia Militar. Devido a gravidade das imagens que o vídeo revelava, houveram 3 audiências públicas sobre o tema e por fim, com o apoio da Defensoria Pública do estado de Minas Gerais, foi feita uma Ação Civil Pública contra o município de Belo Horizonte e através de uma decisão liminar, atualmente os artesãos estão liberados para expor sua arte e todos os artesanatos apreendidos tiveram de ser devolvidos.

Posteriormente, percebemos que não bastava denunciar a violência contra os artesãos, era necessário trazer a tona o universo desta cultura tão marginalizada e desconhecida pela sociedade. Por isso estamos realizando o documentário Malucos de Estrada. O filme foi rodado em 19 estados do Brasil e sua produção já dura 4 anos. O documentário irá tratar do complexo processo de reconfiguração que o movimento hippie teve ao se mesclar com a cultura popular brasileira nos últimos 40 anos.

Todos somos auto didatas e para nós não se trata de fazer cinema, de fazer vídeo, participar de festivais e tal. Nossa missão é lutar pelo reconhecimento dessa cultura desconhecida e o documental tem sido nossa melhor ferramenta para trazer isso a tona.

RUA: Em um país no qual o cinema existe devido a leis de incentivo e que, nem sempre, congraçam a todos, quais são as dificuldades inerentes ao processo de realização de um documentário?

Rafael Lage: O dinheiro é um problema. Mas para quem faz com o coração, o universo sempre conspira, fica a dica. Como o tema de nossos vídeos é a contracultura e denunciamos a ilegalidade das ações do estado, isso também nos dificulta muito, essa coisa de ser criminalizado e ter de lutar contra quem deveria lhe servir. Acho que é isso, tirando a falta de verba e de ter o governo como inimigo, nunca tivemos mais problemas.

Mas é porque a gente não quer participar do mercado, a gente quer compartilhar conhecimento. O conhecimento não é um produto, ele é um bem comum e deve ser livre. Por isso, prefiro ver as enormes facilidades no tempo moderno de se realizar vídeo. O equipamento tem um preço acessível e temos multi plataformas na internet, a maioria gratuita, que fazem o seu material chegar a milhares de pessoas.

RUA: Malucos de Estrada -A Reconfiguração do Movimento Hippie no Brasil, é feito através de financiamento coletivo. Como se deu a opção por este meio?

Rafael Lage: O fato de se tratar de um assunto inédito – o que implica na ausência de pesquisas e estudos teóricos reconhecidos que sirvam de referência e legitimidade para os argumentos do trabalho –  e, principalmente, o fato do trabalho basear-se numa quebra de paradigmas – já que busca reconhecimento para uma cultura situada à margem do establishment e milita contra a repressão da institucionalidade – , limita sobremaneira a possibilidade do gestor público compreender e apoiar a importância deste trabalho. Além disso, a vinculação de uma marca a este trabalho, no caso de parcerias com empresas privadas, é uma situação amplamente rejeitada pela posição contra-hegemônica da cultura dos “malucos de estrada”.

Queremos, sobretudo, fazer um documentário independente que tenha a liberdade de expressar vários assuntos e pontos de vista sem amarras institucionais ou de interesses de mercado. Além disso, o financiamento colaborativo por si só cria uma movimentação importante em torno da temática, suscitando desde já a reflexão sobre o tema.

E por fim, nosso filme é livre de propriedade, qualquer pessoa pode reproduzir e até mesmo remixar o doc.

RUA: Como se deu o processo de pesquisa e captura de material para o projeto, principalmente no que tange o contato com a história, com a vida do outro?

Rafael Lage: Como o tema é inédito e não existe absolutamente nenhuma referência acadêmica, temos de partir de um zero e construir toda a narrativa do movimento. O que favoreceu é o fato deu ter viajado 10 anos na estrada, o que me fez conhecer intimamente este universo e gera uma identificação imediata com o entrevistado. Vários outros artesãos participaram desse processo, seja filmando ou ajudando a pensar a cultura dos “malucos”.

Não tivemos condições de realizar uma etapa de pesquisa/produção, tudo acontecia junto com as filmagens. Nomes iam surgindo, locais eram apontados e o filme é muito orgânico nesse sentido.

RUA: É possível fazer um paralelo entre a história dos homens e mulheres artesãos que  na tela são retratados com o ato de se produzir um filme?

Rafael Lage: Eu me sinto como um artesão que viaja recolhendo a matéria prima nos 4 cantos do país, mas ao invés de pedras, sementes e penas, eu busco seres humanos, e diga-se de passagem, o ser humano é uma matéria prima dificil de se trabalhar. Tudo isso para construir um artesanato digital, que é o documentário. Nesse sentido, sinto que apenas troquei os alicates pela câmera fotográfica.

RUA: Como é a organização de produção (equipe de filmagem) de vocês? Como é o trabalho do coletivo ao qual fazem parte?

Rafael Lage: A equipe de filmagem teve diversas configurações ao longo dos 4 anos de produção do documentário. E as situações de filmagem também mudam muito. Ora com 2 câmeras e técnico de som, mas 60% das filmagens foram feitas por mim, contando só com a câmera, um tripé e o microfone direcional ou lapela.

O coletivo possui 3 camadas. Tem o núcleo duro, que são as pessoas mais próximas e que mantém o trabalho vivo, algo em torno de 5 pessoas. A segunda camada é de colaboradores diretos, pessoas que compartilham seu trabalho e colaboram com arte gráfica, edição, tradução, pesquisas e outras tantas necessidades que surgem. Em torno disso, temos uma série de colaboradores nas redes, pessoas que compartilham nosso material e colaboram financeiramente para que o trabalho continue.

* Lidiane Volpi é graduanda de Imagem & Som na UFSCar e Editora Geral da RUA.

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