Entrevista com Rudi Lagemann

Rudi Lagemann, roteirista e diretor de Anjos do Sol, trabalhou nos anos 90 como colaborador de diversos diretores do cinema brasileiro: Walter Salles, Ruy Guerra, Fabio Barreto, Jorge Duran, Carlos Manga, Tizuka Yamasaki, João Salles, Daniel Filho e  Cacá Diegues, entre outros.

De 1997 para cá, tornou-se também diretor de televisão e publicidade. Dirigiu aproximadamente 400 comerciais, tendo sido eleito Diretor do Ano pela Associação Brasileira de Propaganda.

Anjos do Sol é o seu primeiro longa-metragem. O roteiro do filme foi selecionado pelo Laboratório Sundance de Roteiros e premiado pelo Ministério da Cultura. “Anjos do Sol” foi lançado com sucesso em 2006 e recebeu os prêmios de Melhor Filme Ibero-Americano do Júri Popular do Festival Internacional de Cinema de Miami e de Melhor Filme no Festival de  Gramado, além de diversas outras premiações.

Atualmente, Rudi Lagemann prepara seu novo longa-metragem “Affair” e trabalha como diretor de teledramaturgia da Rede Record.

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Primeiramente, como foi feita a escolha do tema do filme Anjos do Sol para ser realizado o roteiro e como este foi trabalhado? Por que ambientar a história na Bahia?

Na busca de uma história para um primeiro filme, pesquisei muito sobre trabalho escravo infantil. Dentro deste material, surgiu muita coisa esparsa sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes. O roteiro nasceu desta pesquisa de nove anos, em jornais, revistas, internet, textos de ONGs, sobre a questão da “prostituição infantil”. A primeira notícia foi sobre o tráfico de bebês brasileiros para a Europa. Depois foi a notícia sobre uma menina de programa que tinha o apelido de “50 centavos”. Isto era no início dos anos 90, não era um assunto dominante na mídia e vi que não havia um filme brasileiro sobre o tema desde Iracema, de Jorge Bodansky e Orlando Senna, de 1973. Com o material que tinha pesquisado, observei uma riqueza de fatos para construir uma história bem fundamentada e que me desafiasse na proposta de como construir uma representação simbólica daquela realidade que se apresentava nos textos diversos da pesquisa.

A Bahia aparece na primeira parte do filme que depois se desloca para o interior do Brasil, para a Amazônia e para os grandes centros, no caso o Rio de Janeiro. É como se fosse uma metáfora da evolução histórica do próprio país. Foi na Bahia que Cabral chegou e o Brasil se revelou ao mundo. Depois os bandeirantes entraram pelo interior do país, chegamos às florestas e, por fim, as migrações para as grandes cidades.

Como foi a captação de recursos e a formação da equipe técnica para o filme?

Antes da entrada de dinheiro, houve o seguinte: o roteiro foi selecionado para o Laboratório de Roteiros do Instituto Sundance, do ator Robert Redford, em 2001. Em 2003, o roteiro foi premiado no concurso de Roteiros de Longas de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura, em dezembro de 2003. Recebeu um prêmio de R$ 800.000,00. Com este dinheiro (muito pouco para a realização de um filme que na média custa no Brasil por volta de três milhões), fizemos toda a parte das filmagens. Depois a finalização em imagem e som ao custo de R$ 200.000,00 foi paga com o adiantamento da venda para DVD e R$ 100.000,00 da Globo Filmes que entrou na distribuição do filme com a empresa Downtown. E assim o filme chegou às telas.

Dificilmente, no Brasil, se consegue recursos satisfatórios para uma realização cinematográfica. Sendo assim, como eles foram aplicados, visto que se precisa de equipamentos, cenários, figurinos e ainda tudo tem que estar pronto dentro do prazo?

Como havia pouco dinheiro, fizemos algo que não é mérito só da equipe deste filme: utilizamos a criatividade e empenho de todos. Foi magnífica a doação da equipe e elenco. Todos receberam cachês dignos, mas quase simbólicos. Não havia como ser diferente. A câmera de filmagem me foi emprestada pela VideoFilmes, empresa dos irmãos Walter e João Moreira Salles, e o equipamento de luz e maquinária veio da Apema que entrou como produtora associada do filme. Gastamos o dinheiro naquilo que não dá para não comprar: negativo, gasolina, comida, este tipo de gasto. Com o restante, foi na base da criatividade e eu gastaria horas e montanhas de papel para exemplificar tudo que fizemos naqueles mágicos dias.

O que você trouxe de toda a sua experiência com outros diretores para o seu primeiro trabalho exercendo essa função?

Se eu não tivesse sido assistente de direção por tanto tempo, o resultado do filme seria outro. Com cada diretor você aprende alguma coisa. Um ensina no aspecto da direção dos atores, outro na questão técnica, outro na ousadia e criatividade. Ao mesmo tempo, quando fui filmar eu já tinha dirigido aproximadamente 300 comerciais. Como se diz na gíria: “eu já estava bem prontinho para filmar!”.

O elenco conta tanto com atores conhecidos do público como não conhecidos. Como foi realizada a escolha do elenco e por que trabalhar com uma protagonista tão nova (com apenas 10 anos de idade), apesar de ser um papel tão denso? Como foi realizada a preparação deste elenco tão heterogêneo?

Sempre tive a intenção de misturar elenco conhecido com anônimos. As meninas que são prostituídas na história tinham que ser desconhecidas para dar credibilidade e um ar documental que eu queria que o filme tivesse. Como diretor, eu não queria uma história limpa. Eu queria um filme duro e seco como é a realidade destas meninas. E por tal era fundamental o público não conhecer as meninas de outros trabalhos. Já o elenco adulto não. Eu queria justamente contrabalançar o talento e experiência profissional de veteranos com o ímpeto das jovens. E o elenco adulto que escolhi é formado por atores que têm um trabalho muito digno em suas carreiras. Sempre fizeram e tiveram uma postura independente com o mercado do audiovisual. Nisso, uma das coisas que foram ótimas foi o resgate para o cinema de Darlene Glória, uma diva da nossa cinematografia.

Sobre a idade da protagonista sempre pensei que ela tinha que ter a cara de criança que era para dar uma cara à toda problemática que é tratada no filme. Eu não queria cair no erro de colocar uma menina de dezoito anos com cara de treze. Mas nisto residia um problema: quando você faz um documentário, filme ou reportagem sobre o tema, os rostos das crianças e adolescentes não podem aparecer por uma questão legal. Nós conseguimos superar isto graças a um acordo feito com o Juiz Siro Darlan (hoje desembargador), que entendeu a seriedade e objetivo do projeto.

Fizemos testes com meninas de várias partes do Brasil. Foram seis meses de testes com mais de setecentas meninas. Ao final, chegamos àquelas que estão no filme. Depois fizemos mais quatro meses de ensaios. Todos os ensaios foram acompanhados por familiares das meninas e tiveram acompanhamento de profissionais, seja na preparação corporal como psicológica.

Qual seria a idéia a se passar com Maria como um não-agente de sua própria história, sendo levada a circunstâncias ruins e, quando ela consegue se livrar de toda essa situação e pode tomar as suas próprias decisões, ela volta à  prostituição?

Se eu fizesse uma redenção da história de Maria ao final do filme, seria contraditório com a realidade destas meninas no Brasil. Além disso, é um final que provoca polêmica e debate, um dos objetivos do filme.

Apesar de tratar um tema polêmico, o filme consegue transparecer compaixão para com aquelas meninas. O que foi pensado para que o filme fosse além do “documental” ou somente expositivo de uma situação?

Tudo no filme foi muito estudado e decupado. A gramática cinematográfica utilizada foi intencional e nada é ali está jogado de forma displicente. O ângulo de câmera, a lente escolhida, o tom de interpretação utilizado, tudo tinha como intenção trazer o naturalismo presente num produto documental, mas em vários momentos a idéia era quebrar isto para dar uma outra dinâmica à história, seja na abordagem de compaixão com o universo das meninas como na exposição da escrotidão humana de vários antagonistas, como o Saraiva de Antonio Calloni.

O filme Anjos do Sol foi considerado talvez o mais polêmico do Festival de Gramado de 2006. O que você espera que ele tenha causado no público?

Três anos após o lançamento do filme, ele consegue se manter na mídia, é presença constante em eventos e passou a fazer parte da realidade do nosso país. Agora em fevereiro, uma operação da policial federal no Ceará, chamada Anjos do Sol, desbaratou uma rede que explorava sexualmente crianças e adolescentes, libertando-as. O filme que nasceu da realidade voltou para fazer parte desta e, além disso, modificá-la. O filme provoca polêmica, tem quem o adore, quem goste, quem desgoste, mas ninguém passa impune. E isto é ótimo. Quantos filmes brasileiros você pode contar que tenham tal repercussão na vida social do país?

O que significa não só para você como pessoa, mas para o cinema nacional, todos os prêmios que o filme ganhou, como os seis Kikitos (incluindo o de melhor filme) e o Melhor filme pelo júri popular no Festival de Miami?

Prêmio é bom para a distribuição do filme, pois todo o filme independente, como é o caso de Anjos do Sol, utiliza os festivais como vitrine de distribuição. O filme poderia ter participado de muitos outros festivais caso não fosse a nossa inexperiência. Ganhamos o Festival Internacional de Miami, mas por participar deste festival não pudemos participar de outros, com maior grau de importância porque estes exigem ineditismo. Ganhar vários prêmios em Gramado, para mim, pessoalmente, foi ótimo porque sou cria da casa. Comecei fazendo cinema no Rio Grande do Sul, fato que me orgulha muito. E ser reconhecido com prêmios na sua casa é sempre bom.

Os filmes nacionais estão cada vez mais ganhando prêmios tanto no Brasil quanto no exterior, assim como tendo um maior espaço no circuito. Que fatores colaboram para esse maior prestí­gio dos filmes nacionais?

O momento do cinema brasileiro é ótimo. Entre 1995 e 2005, houve uma grande renovação sendo que aproximadamente 100 novos diretores surgiram no Brasil. Pouquíssimos países no mundo têm este trunfo. A renovação manifestou-se na reconquista de uma parte do público que havia se afastado das produções nacionais e também no respeito da crítica local e internacional.  Além disso, montou-se alianças com o mercado exibidor. Tudo isto se manifesta nos prêmios internacionais e em parcerias com distribuidoras do exterior. O próprio Anjos do Sol tem sua distribuição internacional atendida por uma empresa de Los Angeles. O caso de Tropa de Elite é significativo. O filme tem o mesmo distribuidor internacional que Cidade de Deus. Os produtos passam a se encadear, aqui e lá fora. Em dez anos, ganhamos dois Ursos de Ouro em Berlim. Fato inédito e estimulante.

O que se esperar do futuro da produção cinematográfica no Brasil?

O cinema brasileiro sempre sobreviveu através de ciclos. Nunca foi uma indústria constante. Em sua história, que já tem mais de 100 anos, sempre houve fases onde havia uma riqueza de produção como também fases de vacas magras. Recentemente, depois do furacão Collor, que destruiu toda uma estrutura cinematográfica existente, no início dos anos 90, o cinema brasileiro começou a se recuperar. Como eu disse acima, de 1995 a 2005, 100 novos diretores fizeram seus primeiros filmes (estou incluído neste número). É uma nova geração em forma e pensamento de traduzir o Brasil para a tela. Há vários nomes importantes que surgiram e aos poucos o público e crítica foram conquistados pela nova onda cinematográfica brasileira. Ao mesmo tempo, no mercado externo, o cinema brasileiro voltou a ocupar importante espaço, seja em festivais, seja nas próprias salas de cidades de todo o mundo. Walter Salles, com Central do Brasil, e Fernando Meirelles, com Cidade de Deus, encabeçam a lista dos novos notáveis, porém, há um enorme grupo de diretores brasileiros que têm conquistado um espaço importante no exterior. Além desta conquista de espaço aqui e lá fora, agora o cinema brasileiro já se coloca com novos desafios, principalmente quanto ao conteúdo e forma. Agora já é época de contar novas histórias de um modo diferente. Esta é a questão atual.

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