O público é bem diferente de outras mostras e festivais de cinema. Mais baixo. Mais expressivo. Mais familiar. E bem numeroso. Na sua nona edição, a Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis teve um público de cerca de 22 mil pessoas, chegando a levar por dia 1500 crianças para a sala de cinema em sessões escola, numa parceria com a rede municipal de educação.
Neste ano de 2010, a Mostra programou a pré-estreia nacional de Eu e meu guarda-chuva (Toni Vanzolini, Conspiração Filmes, 2010), a exibição de longas internacionais, como O melhor amigo da lua (Mike Maurus, Thomas Bodenstein, Alemanha, 2008), uma mostra competitiva de curtas-metragens brasileiros e outros programas de curtas-metragens internacionais, principalmente animações.
Pude acompanhar a mostra de 26 a 28 de junho, tempo suficiente apenas para assistir a alguns curtas da competição, sentir a reação do público e participar da programação para adultos, composta pelo Fórum de Cinema e Educação e pelo 6o. Encontro Nacional de Cinema Infantil, com foco na produção de cinema para jovens. Apesar do curto contato, ficaram evidentes o cuidado na seleção dos filmes, a rica contribuição da mostra para a formação de público para o cinema e o engajamento em auxiliar a produção de filmes nacionais para a infância e juventude, menos valorizada pelos realizadores em relação à produção para adultos.
Cinema se aprende
Enquanto eu aguardava a abertura da sala, uma mãe advertiu seu filho, entretido com um vídeo:
– Vamos, filho! A gente tem que pegar fila pra ir ao cinema!
Ir ao cinema é um hábito sócio-cultural. Para ser perpetuado, precisa ser ensinado e aprendido de geração em geração. Para pegar um filme, as moças e moços precisam se arrumar, levar seus cacarecos, sair de casa… Meninas de sapatinhos e bolsas ouviam conselho dos monitores do festival:
– Olha lá, cuidado com essas bolsinhas. Se vocês esquecerem, a gente não acha depois.
Cinema é mesmo um espaço privilegiado de coisas perdidas, e isso precisa ser aprendido desde cedo.
Num momento em que a fruição de filmes em sala de cinema encontra-se em baixa por uma série de fatores (o preço dos ingressos, o medo da violência, o trânsito das grandes cidades, a comodidade do home video e de filmes na internet…), a Mostra de Florianópolis faz resistência e perpetua um ritual que se consolidou no século passado. Forma-se fila para entrar, entrega-se o ingresso, escolhe-se o lugar, apaga-se a luz… Há até lanterninhas para ajudar quem chega atrasado. A pipoca ficou só do lado de fora da sala, mas era oferecida gratuitamente, continuando essa dupla cinema – milho frito nas plateias infantes.
A Mostra segue o modelo corrente dos festivais e convida diretores para conversar com a plateia após a exibição dos filmes. Nas sessões que acompanhei, boa parte das crianças e pais saíram antes do debate e, entre as que ficaram, poucas se arriscavam a perguntar algo. A Mostra também estimula nas crianças outras práticas consagradas na indústria cinematográfica: promove entrevistas com atores (mirins) e diretores e a cobertura jornalística e crítica do evento. Escrito por crianças (mas evidentemete supervisionado e corrigido por adultos), o Bloguinho da Mostra é uma ótima e rara oportunidade de documentar e externar as reações do público-alvo dos filmes infantis. Uma pena que os comentários estejam muito presos a um “gostei mais de tal filme” e à reprodução da sinopse. Talvez o registro escrito não seja a forma mais apropriada para a expressão das crianças. Os vídeos de entrevistas têm momentos mais reveladores e divertidos, como quando Duda pergunta para o diretor Toni Vanzolini o significado de uma cena em que o uso de uma convenção cinematográfica não ficou claro para ela.
A blogueira mirim Duda questiona Toni Vanzolini, diretor de Eu e meu guarda-chuva
Como a Mostra também promove oficinas de vídeo para crianças, como a de vídeo para celular, poderia promover uma oficina breve de crítica/apreciação de filmes para os pequenos blogueiros e outros interessados.
Um pouco sobre alguns filmes e as reações do público
(atenção, nesta sessão há spoilers)
A seleção dos filmes parece ter sido bem criteriosa, e a composição dos programas levou em conta a idade apropiada do espectador do filme, com programações indicadas para crianças a partir de 4 anos. A maioria dos filmes a que assisti pareciam ter sido feitos primeiramente para o público infanto-juvenil e fugiam do esterótipo de filme “bobinho”, com potencial para agradar aos adultos também.
Dos filmes de live action, a grande maioria tinha um protagonista mirim que passava pela jornada do herói, vencendo alguma dificuldade sozinho ou com a ajuda de outras crianças. Essas são características bastante presentes em produtos audiovisuais para a criança – e aparentemente valorizadas na seleção da Mostra.
No curta carioca O menino mofado (Andre Pellenz, 2010), Marcos é um garoto super-protegido pela mãe e não sai muito de casa. Um dia, ele acorda com mofo na pele. Com a ajuda de sua amiga, que também já ficou mofada, fogem da escola e pegam um ônibus para pegar sol e curtir as paisagens do Rio de Janeiro. Um filme de linguagem clássica, mas sem o visual muito colorido característico de filmes infantis. Com uma premissa instigante, segurou a atenção de crianças e adultos e arrancou risadas de pais que reconheciam o excesso de proteção.
Outro filme que conquista também a plateia adulta é o curta gaúcho Enciclopédia (Bruno Gularte Barreto, 2009), que fala sobre a descoberta do amor por Alex, um garoto tímido de 10 anos. O protagonista é um pequeno nerd, que vive na biblioteca e entende o mundo por meio dos verbetes de uma enciclopédia. Como era de se esperar, “pai, o que é enciclopédia?” foi a pergunta da criança sentada ao meu lado. Hoje as crianças não usam mais enciclopédia, e isso é sintomático. A nostalgia é bastante característica dos filmes que falam sobre a infância e para a infância, um reflexo das memórias dos realizadores. A direção de arte do filme e a fotografia recorrem também a um clima nostálgico, bastante centrado no mundo literário. O curta é costurado pelos pensamentos em voz over de Alex, e o filme frequentemente recorre a planos fixos da página do livro. O resultado é um filme de narrativa fluida, que encanta os adultos e, de forma impressionante, instiga as crianças a entenderem o mundo de Alex.
As animações exploraram com maior recorrência e facilidade o mundo fantástico e narrativas mais lúdicas.
A animação Godofredo `- O Interruptor (Eva Furnari, 2009) é um episódio em que Godofredo, um ogro verde desajeitado dos livros da diretora, encontra algo estranho a seu mundo: um interruptor. A ideia é simples e muito divertida. Explorando o interruptor, Godofredo acende e apaga tudo o que encontra pela frente: pássaros, plantas, até o sol. A animação, em dado momento, faz uso de um recurso sofisticado. Godofredo mexe no interruptor tão rapidamente que acaba dividindo o mundo dele em dois. A tela mostra um único espaço diegético, mas dividida ao meio em dois tempos diegéticos: dia e noite. Godofredo brinca de passar de um lado a outro da tela, chegando a ficar no meio dela. Meio no dia, meio na noite. O som acompanha a virada de tempo: galos cantam durante o dia, grilos durante a noite.
Doce Ballet (Maira e Lina Friedman, 2010) é uma animação em stop-motion que, embora não possa ser considerada propriamente uma não-ficção, gênero pouquíssimo representado na Mostra, tem uma narrativa bem diluída: objetos e comidas começam a dançar na sala ao som de Debussy. No que poderíamos considerar um plano-sequência, guloseimas aparecem e dançam, numa profusão de cores, movimentos e – por que não – sabores incríveis. Na sessão Diversidade Brasil, as crianças estabeleceram comunicação durante o filme. Uma da frente gritou: “Olha a flor!”. Outro pequeno de trás começou a anunciar também a entrada de todos os elementos novos: “o brigadeiro! O abacaxi”. Uma surpresa a cada movimento. A técnica de stop-motion, quase tão antiga quanto o próprio cinematógrafo, ainda carrega magia ao dar vida ao que é inanimado .
Assistir a uma sessão de seis, sete curtas seguidos com propostas variadas pode ser uma experiência um pouco confusa. Para mim, é, mas a maioria das crianças parecia tirar de letra. Outras achavam alguns filmes chatos – em sequência. Como em todo público, a reação não é unânime. Imagine uma menina com cabelos de Brasil (Alexandre Bersot, 2010) foi um dos filmes preferidos de Ana Lívia, de 5 anos, que o achou muito engraçado. Uma menina sentada atrás de mim, no entanto, resmungou: “esse filme não acaba nunca?”
O curta de dez minutos não foi feito exclusivamente para o público infantil, conforme Alexandre Bersot comentou no debate após a exibição, e possui de fato várias camadas de leitura. É uma animação tradicional de traço simples, fundo bege, a respeito uma menina que tem o cabelo crespo, com formato do mapa do Brasil. Ela trava batalhas homéricas contra o cabelo, quando o filme faz referências a ícones da cultura pop americana, como a espada jedi de Star Wars ou ao personagem de Stallone Cobra. A personagem depois vai à escola e é alvo de chacota de meninas de cabelos de formato de outros países – em alegorias sobre o relacionamento entre países do 1o. e 3o. mundo. A menina acaba assumindo seus cabelos de Brasil após se insurgir contra as outras meninas (quando há comentários extra-diegéticos: inserts de imagens da Copa em que a seleção brasileira faz gols) e após ajudar sua amiga com cabelos de África. Um tanto caricatural na apresentação de países e na missão brasileira de ajudar sua “irmã-África”, o filme traz uma reflexão sobre a afirmação da identidade nacional de forma bem humorada. É revelador que, embora tenha esse intuito, o filme faça referências e homenagens apenas a produtos culturais norte-americanos. Além das já citadas, há homenagem clara a 2001, uma odisséia no espaço. E a música- tema do filme é Imagine, de John Lennon.
Público e fomento para o cinema brasileiro
Sessões de curtas-metragens brasileiros com grande público é algo raro de se ver. Na Mostra, elas acontecem. Praticamente ninguém vai sozinho assistir a filmes infantis – as crianças levam pais, avós… que levam mais crianças. Vi casos de grupos de uma criança para dois adultos. E de um adulto para cinco crianças. Muitos produtores e diretores brasileiros não têm prestado a devida atenção a este público. Segundo dados da dissertação de mestrado de João Batista Melo dos Santos, a produção de cinema infantil corresponde apenas a aproximadamente 2% da produção nacional[1].
Ricardo e seu filho Gabriel, de 7 anos, não têm costume de assistir a filmes brasileiros. Aliás, nenhum pai com quem conversei assiste com frequência. Nesse sentido, o cinema infantil pode ajudar a formar espectadores para o cinema nacional, quebrando o estigma que dura há décadas de que cinema brasileiro é sinônimo de cinema ruim. Numa era de convergência de mídias, num país em que a televisão, seguida pelo computador, são as mídias mais consumidas nos lares, talvez possa parecer um pouco fora da onda sugerir o fortalecimento do cinema infantil brasileiro, missão que a Mostra tomou para si desde cedo. Não custa lembrar, nesse caso, que o cinema também tem sido muito importante no lançamento ou fortalecimento de franquias, como aconteceu com Avatar, Shrek, Toy Story, entre outros. E, como disse Gabriel, comparando a sala escura com a TV, “no cinema tem coisas diferentes”.
A Mostra tem estimulado o debate a respeito de políticas públicas para a criação de produtos voltados para o público infanto-juvenil. Os editais de produção de curtas-metragens infantis e de desenvolvimento de roteiro de longas infanto-juvenis do Ministério da Cultura podem ser resultado, em parte, desse movimento. Incentivo direto também é feito. Pitchings de projetos de longa-metragem acontecem na Mostra há 3 anos. O vencedor tem a oportunidade de buscar coprodução internacional no Fórum de Financiamento do BUFF Festival, na Suécia.
A Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis tem dado uma bela contribuição ao difundir, fomentar e pensar a produção para a infância e adolescência, que não recebe o glamour e a atenção dos filmes para adultos. Parece haver público para esses filmes. Esperemos agora que realizadores, a crítica especializada e a academia também valorizem mais o gênero.
Mirian Ou é mestranda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
[1] De acordo com este levantamento, entre 1952 (data do primeiro longa-metragem infantil brasileiro) e 2003 foram produzidos 74 longas para este público, número equivalente a aproximadamente 2% de toda cinematografia brasileira de longas-metragens. Ver SANTOS, João Batista Melo dos. A tela angelical: infância, literatura, mídia e cinema infantil. Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004.