Cobertura sobre a mostra de Jacques Demy (clássicos e inéditos) realizada na Cinemateca Brasileira durante o mês de junho de 2011
Renan Lima *
Jacques Demy (1931-1990) é um daqueles cineastas que só ouvimos falar de um ou dois filmes que realizou, mas que com certeza fez muito sucesso em seu país de origem. Casado com a cineasta portuguesa Agnès Varda, Demy foi roteirista e diretor, e, além disso, tinha um bom ouvido para música.
Sua trajetória se constitui muito pautada na importância da trilha sonora no cinema, por isso realizou muitos musicais. Nesses filmes, os personagens expressam suas emoções e sentimentos por meio do canto e a narrativa se desenvolve pela melodia, essa brincadeira musical faz com que o filme avance. Em Os guarda-chuvas do amor (1964), por exemplo, os personagens cantam o tempo todo, não existe uma pausa, um respiro, todas as mensagens do filme são transmitidas pela música, o que faz com que, em alguns momentos, fique bastante cansativo. Já em Duas garotas românticas (1967) e Três lugares para o 26 (1988), a narrativa apresenta momentos não musicais, onde os personagens conversam normalmente e estabelecem um conflito. Desses 3 títulos, acredito que o filme que apresenta uma narrativa mais interessante seja o último, Três lugares para o 26, o enredo conta a história de uma menina que sonha ser atriz e brilhar nos musicais e que ao final acaba contracenando com seu maior ídolo nos palcos. Nesse filme, existe o musical dentro do musical e esse recurso acaba se justificando de fato, o que não acontece nos outros 2 filmes, que são muito mais parecidos com animações da Disney, nas quais os personagens começam a cantar sem uma razão clara.
Ainda no campo dos musicais, Demy também explorou os contos de fada clássicos de autores como Perrautl e os irmãos Grimm; Pele de Asno (1970) conta a históra de uma princesa que se vê obrigada a casar com pai após o falecimento da mãe, então ela se veste com a pele do asno encantado do reino (um asno que bota moedas de ouro) para poder fugir. A princesa encontra um povoado para se refugiar, mas continua contando com uma varinha mágica e com a ajuda de sua fada madrinha. Ela se apaixona por um príncipe de outro reino e a narrativa se desenvolve a partir desse plot. Durante todo o filme, temos algumas referências musicadas, mas a história não foge ao conto, essas cantorias estão presentes na obra literária e são adaptadas integralmente das adaptações dos contos de fada, elas estão realmente intrínsecas à narrativa, como acontece em Os guarda-chuvas do amor, por exemplo, mas nem sempre é uma constante nos filmes de J. Demy.
Em A lenda da flauta mágica (1972), também uma adaptação, temos uma situação bem parecida com o outro filme, e aqui a música se faz mais presente ainda por conta de um dos personagens principais ser um flautista e sua flauta ter um certo poder mágico de cura. Durante a peste negra, um governo tirano tenta se enriquecer com o apoio da igreja, mas os ratos invadem a cidade espalhando a doença. O flautista, com sua melodia faz com que os ratos se dirijam ao rio, deixando a cidade. Nessa obra, não temos um personagem principal que conduz a narrativa, pelo menos não na obra filmada, o que temos são grupos de personagens: o feiticeiro e seu aprendiz, a família real com a princesa prometida, a família retirante de artistas de rua, o clero; enfim, a narrativa é mais expansiva e se desenvolve em um número maior de núcleos, embora todos se unifiquem no personagem do flautista e na peste negra.
Fora do campo musical, mas ainda na comédia, Demy realizou Um homem em estado interessante (1973) com dois dos principais atores do cinema mundial, a francesa Catherine Deneuve e o italiano Marcelo Mastroianni. Nesse filme, o personagem de Mastroianni fica “grávido”, mas após um primeiro momento de susto e desespero, ele e sua mulher, representada por Deneuve, começam a lidar melhor com essa situação e passam a utilizar a mídia em torno desse caso a seu favor. Como exemplo, no filme, temos uma empresa de vestuário que cria modelos exclusivos para o homem grávido.
Com uma narrativa irreverente e até certo ponto irônica beirando o absurdo, Demy faz uma crítica enfática não somente a indústria têxtil, mas também a mídia em geral por polemizar eventos distintos, visando somente uma maior obtenção de lucro e poder. Nesse contexto, os dois protagonistas exibem excelentes interpretações na qual o elemento fantástico está sempre presente e o absurdo se torna plausível muito rapidamente. Esse é Demy, utilizando o melhor de suas comédias e ainda “cutucando” vícios e maneirismos da sociedade moderna.
Demy seria o cineasta clássico que não tem medo de experimentar construindo uma narrativa absurda potencializada pela música. Dessa forma, ele não se preocupa em, na montagem, sair de um plano fechado, intimista e dramático, para um plongeé aberto e alto, com irreverência e cantoria, ou seja, se a quebra de tensão no cinema clássico respeita os 3 atos, o cineasta francês desvirtua essa regra e altera o clima de seus filmes a cada fotograma da película. Se agora temos o drama, no segundo seguinte não mais saberemos.
* Renan Lima é graduado em Audiovisual pelo Centro Universitário Senac.
Muito bem explicado, a questão da quebra de tensão nos filmes do Demy; pois ele está certo, a opção pelos filme cantados, os saltos nos planos,revelam que forma e conteúdo apontam para outras mensagens. Certa alegria exprime o valor do momento perante uma angústia sem fim.