Jogos que contam histórias

Leo Falcão é cineasta, professor e especialista em estudos cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco, mestre e pesquisador em game design pela Universidade Federal de Pernambuco.

À medida que a habilidade especial de articular uma linguagem oral ia sendo desenvolvida, pinturas rupestres se proliferavam nas paredes das cavernas, contando as caçadas e as visões dos dias. Não muito tempo depois, era hábito frequente reunir-se em grupo ao redor da fogueira, os olhares atravessando o balançar das chamas rumo ao escuro, entregando a imaginação às palavras de oradores habilidosos. Um complexo sistema de signos se estabelecia, mediando a percepção da realidade. A narrativa, um dos usos primários da linguagem, tomava lugar nobre dentro de mecanismos elementares. Desde que começou a se entender enquanto ser, a humanidade cultiva este fascínio por contar e ouvir histórias.

A noção de jogo não se distancia tanto da narrativa. Inicialmente, a exemplo de outros animais, crianças primitivas simulavam situações das mais diversas: combates, caçadas, vida em família. Ao passo que a linguagem e o próprio pensamento se tornavam mais complexos, novas formas de jogo iam sendo criadas. Permeando várias dimensões da condição humana, o jogo também terminou se tornando um elemento fundamental da cultura. E, tendo começado como simulação de situações, o jogo se caracterizava, deste modo, como uma forma dramática aberta e emergente. Esta capacidade de sintetizar universos dramáticos deixa transparecer no jogo uma natureza narrativa intrínseca.

Há diversas congruências entre estes dois elementos culturais. Se, por um lado, a narrativa vai se diversificando em meios no decorrer da história, ganhando formas cada vez mais sofisticadas de manifestação – da linguagem oral, passando pela escrita, ao cinema, e então até as novas mídias contemporâneas -, por outro, o jogo também se refina em termos gerais: da simulação à abstração, cria-se um paradigma autônomo, que se potencializa num dos meios mais emblemáticos do nosso tempo. Entendemos melhor isto quando consideramos alguns impulsos básicos do ser humano: criar, simular e descrever microcosmos efêmeros em que limites impostos são superados, saciando uma necessidade de desvelar e resolver conflitos. Narrativa e jogo atuam, neste sentido, em campos convergentes.

O século XX testemunha a instauração de uma tecnocracia nas rotinas cotidianas. O cinema, forma narrativa que melhor expressa a transição de uma produção técnica motora para operações estéticas (apreensão, representação e interpretação da realidade) necessariamente mediadas por máquinas, torna-se o mais popular e rentável meio de entretenimento. Este evento muda radicalmente a maneira de lidar com as histórias, além de refletir uma tendência natural da humanidade em assimilar cada vez mais a tecnologia nas suas atividades mais diversas.

Os jogos eletrônicos, por sua vez, ganham mais espaço, chegando na virada do milênio ao posto de um mercado igualmente forte: recentemente, segundo informação divulgada pelo Guinness Book, o game Grand Theft Auto 4 se tornou o produto de entretenimento mais vendido no seu dia de lançamento, superando em faturamento todas as estréias mundiais de blockbusters até hoje. Além do aspecto mercadológico, testemunhamos uma progressiva aproximação das indústrias de entretenimento – vide a migração de roteiristas de cinema para concepção de games -, ressaltando o compartilhamento de impulsos narrativos e lúdicos. O game, deste modo, pode ser o grande herdeiro do cinema enquanto campo de experimentação da narrativa contemporânea, pois exerce uma dupla função nos mecanismos de entretenimento: o consumo da história em si, decorrente daquela linha direta desde as pinturas rupestres, e o caráter lúdico interativo direto na formatação de conteúdo, advindo dos estatutos de jogabilidade envolvidos. O jogador, portanto, é tanto leitor quanto usuário, tornando-se por natureza o público-padrão para a narrativa hipermidiática.

Apesar deste potencial evidente de aumentar a intensidade da experiência do jogador a partir da exploração da narrativa embutida, há uma lacuna metodológica no mercado brasileiro de desenvolvedoras de jogos. Em geral, da forma como as empresas se configuram, não há espaço dentro de suas estruturas para um roteirista, ou algum especialista que desenvolva a narrativa dentro de parâmetros multilineares, ficando qualquer tentativa neste sentido acumulada para o game designer. Além disto, não existe uma abordagem pragmática que coloque a narrativa como um dos pressupostos de funcionalidade do produto, a exemplo da jogabilidade. O conteúdo dramático, deste modo, é impedido de ser pensado em conjunto com a forma e a tecnologia, integrando os diversos aspectos do game. Isto resulta em produtos criados de maneira desfragmentada, limitando a experiência do usuário.

Um projeto de cooperação entre as áreas de produção de conteúdo (arte e mídia) e desenvolvimento de jogos (design e tecnologia) parece ser o caminho ideal para lidar a médio prazo com um público cada vez mais exigente. Para tanto, é preciso começar a enxergar os games, a exemplo do seu predecessor direto, o cinema, como um articulador de linguagem, ainda que seja uma linguagem um pouco mais complexa. E como tal, enxergá-los com seus parâmetros e potenciais de usabilidade, inclusive tornando-se, dentro de um paradigma cultural emergente, uma forma expressiva.

Pensando além deste problema imediato de mercado, podemos também refletir sobre o próprio papel da narrativa interativa na contemporaneidade, no sentido de ocupar um lugar de consumo muito parecido com as formas precedentes. Afinal, games reúnem em si várias características que já se configuram como pressupostos para as atividades de fruição do nosso tempo: apreensão estética de discursos gráficos, sonoros e textuais; interatividade direta dentro de um sistema programável; e, decorrente disto, construção autônoma da forma final do conteúdo. Estaremos, diante disto, lidando com uma nova forma de arte?

É claro que esta própria formulação é cheia de questionamentos, inseridos que estamos em um novo paradigma cultural. De uma forma ou de outra, explorar os potenciais expressivos e linguísticos dos games é abrir caminho para experiências cada vez mais intensas para nossas capacidades sensoriais e cognitivas.

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