Lucrecia Martel em O Pântano, atmosferas do invisível

“O Pântano” se inicia estrondoso. O devir da chuva é anunciado pelo som de trovão, as nuvens em seguida reiteram a tempestade. As crianças fazem a siesta dentro de casa, num ambiente quase escuro, enrolados em panos, deitados juntos, num imenso ócio, enquanto Mecha e seus convidados, embriagados de vinho estão estirados em cadeiras de praias ao redor da piscina, suja. Ao som de trovões e do enegrecer do céu, eles se arrastam. Mecha quer que todos vão embora, recolhe as taças, cai, bêbada e se corta, deixando cicatrizes que a acompanharão por toda a película. Esse início do longa-metragem de estreia de Lucrecia Martel é um prólogo consonante com o restante da película, desordenado. São acontecimentos pequenos que dizem muito. Imagens e sons potentes, onipotentes, onipresentes. São personagens tão próximos (com características comuns e reconhecíveis) e tão complexos, esféricos, imprevisíveis, visíveis. E é a partir da relação destes, tênue e corpórea, que a obra se constitui.

A sequência inicial de “O Pântano” (2001), já brevemente descrita, é chave para o desenrolar dessa análise. É marcada por uma série de características que bem denotam recursos de mise-en-scène da cineasta argentina. Uma das características é a montagem, esta traduz a atmosfera da casa e dos personagens, como quando se faz entrecortada num mesmo plano, a exemplo da cena em que os convidados de Mecha estão se arrastando com as cadeiras para saírem da chuva que está para vir, há cortes e “pulos”, a própria diretora diz: “A montagem se parece muito com o exercício de memória. E a memória é seletiva e emotiva”[1]. São esses cortes e pulos que bem exemplificam essa montagem-memória. Uma montagem pautada nas ações dos personagens, no som e no próprio enquadramento. Além da montagem, outro recurso bem utilizado pela cineasta é o som, fio condutor das cenas e das transições, é ele que provoca a faísca nos personagens e em suas ações, a exemplo: como quando Mecha cai com as taças e se corta, o barulho das taças se quebrando chega a se distorcer levemente e terminar por um doce som de um cristal, que invade a casa e o quarto em que Momi e Vero estão deitadas. O drama aí se instaura. Elas correm para socorrer a mãe… Outro momento em que o som é extremamente relevante é a cena da casa de Tali. Há sempre a presença de um latido, do outro lado do muro, que instiga e amedronta o pequeno Luchi. Tal som sempre permeia esse ambiente, e é premonitório quanto ao fim que se terá a criança. Por estar descolado da fonte (o cachorro), o som tem maior peso dramático e instaura o perigo do que não se vê, somente ouve, “sempre fica algo não dito e não mostrado; toca-se na vida sem explicá-la”[2].

Lucrecia não somente toca na vida sem explicá-la, ela toca com maestria, extraindo dela poesia e força visual ímpares, a fim de fazer de cada ato pequeno uma despretensiosa discussão de seus personagens e das forças que o impulsionam: o sexo, a desesperança, o desejo e o ambiente.

O ambiente em “O Pântano” é extremamente importante e fundamental para a apreensão da obra. O filme foi rodado e se passa em Salta, região da Argentina extremamente quente e seca. O calor para os personagens é sempre um fator de estaticidade, de preguiça, de impedimento à movimentação, e é sob o calor que eles atuam e modelam seus caracteres, desde uma explosão da libido incestuosa até a uma espera pela chuva. Importante também ressaltar o impacto visual que este ambiente causa no espectador, a exemplo disso, a câmera trepida dentre a mata na qual os meninos vão caçar, é um ambiente tortuoso e lamacento, culminando com o plano da vaca atolada na lama (que alguns metaforizam como a Argentina e a crise que a assolou no início dos anos 2000). São imagens sem explicação e encadeamento dramatúrgico, mas cruciais para a criação de uma atmosfera meio tenebrosa, lamacenta e tortuosa sob a qual caminham seus personagens. A câmera, já dito acima, acompanha muito bem seus objetos, se inserindo, jamais ficando alheia, às vezes até se aproximando muito, entrecortando os corpos.

Sobre isso, a cineasta diz: “por mais que nos aproximemos há sempre uma esfera de segredo”[3], e é debaixo desse segredo ora visual, ora sonoro que se funda a obra.

“A imagem não informa tanto sobre um momento e um lugar, mas faz deles um uso expressivo. Manipula-os de maneira dramática para instalar um tom tão asfixiante quanto perturbador que, em vez de refletir impessoalmente um entorno real, alude aos personagens e às complexas relações entre eles. Neste sentido, tempo e espaço não definem simplesmente um cenário para a ação; são um modo de narrar nas entrelinhas”[4] (tradução minha). Dentro dessas entrelinhas, a diretora-autora constrói uma mise-en-scène cheia de incertezas, dubiedades, ambigüidades, e sentimentos de reconhecimento, nós, espectadores, nos reconhecemos mediante àqueles personagens tão bem engendrados numa narrativa de poesia e de incertezas.

Perguntada se a estrutura menos clássica de narrativa expressa melhor incertezas, a diretora diz: “a incerteza, na minha opinião, é o caminho para a revelação. Não a revelação da verdade (…) mas da falta de necessidade do que está determinado. Minhas incertezas rondam coisas como a bondade, o bem supremo, o bom homem, a boa mulher. Em um sistema de valores como o nosso tudo pode ser uma farsa (…) quando escrevo, não penso se o personagem é criança, adulto, mulher ou homem. Penso nele como um tumor.”

Sobre o corpo, ela discorre: “o que me cativa são as impossibilidades que construímos em torno de nossos corpos tão poderosos. Essas armadilhas invisíveis que inventamos em nome da moral, do bem, do correto, e que se mostram cada vez menos úteis para alcançar alguma felicidade. A impotência, a impossibilidade, acredito, poderiam ser definidas como o mal do século”[5].

Em “O Pântano” “o tumor”, e “o mal do século” estão mais do que bem definidos, claros, mesmo que envoltos na incerteza da câmera, eles habitam cada personagem, cada cena, cada ação, a partir de uma atmosfera calorosa, claustrofóbica e de desesperança, o devir da chuva e da Virgem, metáforas da esperança, se intercalam numa presença-ausência, mesclada com a sensação da tragédia e da morte proeminentes, que de fato encerram a película.

São por esses todos os recursos estéticos, pela fineza no trabalho com a linguagem cinematográfica e pela dramaturgia pautada na entrelinhas que fazem desta obra importante exemplo no chamado “Novo Cinema Argentina” e também do cinema mundial contemporâneo.

BIBLIOGRAFIA

D´ELIA, Renata. Um cinema físico e emocional. Do site: http://www.facasper.com.br/cultura/site/entrevistas.php?tabela=&id=136. Acessado no dia 15 de maio de 2009, às 20h.

EDUARDO, Cleber. Paralelas e transversais. Do site: http://www.contracampo.com.br/60/cienaga-diarios.htm. Acessado no dia 18 de maio de 2009, às 17h

MOTA, Denise. Armadilhas invisíveis. In: Revista Bravo. São Paulo: Editora Abril, dezembro de 2004 – ano 8 – exemplar 87.

OUBIÑA, David. Estudio Crítico sobre La Ciénaga: entrevista a Lucrecia Martel. Buenos Aires: Pic Nic Editorial, 2007.

REBOUÇAS, Júlia. A tensão realista de Lucrecia Martel. Do site: http://www.eptic.com.br/arquivos/Dossieespecial/dinamicasculturais/CulturaePensamento_vol2%20-%20JuliaReboucas.pdf. Acessado no dia 18 de maio de 2009, às 10h.

Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] 1 – D´ELIA, Renata. Um cinema físico e emocional. Do site: http://www.facasper.com.br/cultura/site/entrevistas.php?tabela=&id=136. Acessado no dia 15 de maio de 2009, às 20h.

[2] 2 – EDUARDO, Cleber. Paralelas e transversais. Do site: http://www.contracampo.com.br/60/cienaga-diarios.htm. Acessado no dia 18 de maio de 2009, às 17h.

[3] 3 – REBOUÇAS, Júlia. A tensão realista de Lucrecia Martel. Do site: http://www.eptic.com.br/arquivos/Dossieespecial/dinamicasculturais/CulturaePensamento_vol2%20-%20JuliaReboucas.pdf. Acessado no dia 18 de maio de 2009, às 10h.

[4] 4 – OUBIÑA, David. Estudio Crítico sobre La Ciénaga: entrevista a Lucrecia Martel. Buenos Aires: Pic Nic Editorial, 2007. P.22

[5] 5 – MOTA, Denise. Armadilhas invisíveis. In: Revista Bravo. São Paulo: Editora Abril, dezembro de 2004 – ano 8 – exemplar 87. Pp.50-53.

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Este post tem 3 comentários

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    GUILHERME MAIA

    Bom dia. Quem é o autor desse artigo?
    Atc,
    Guilherme Maia

    1. Author Image
      Murilo Morais

      Autor: Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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