Madame Satã: a voz do corpo negro

Geisa Rodrigues é Professora do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.

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Madame Satã tornou-se um personagem mitificado não apenas por encarnar a malandragem carioca da Lapa da década de 30, mas também por acrescentar a outras características do malandro o fato de ser homossexual assumido e negro. Aspectos irresistíveis aos autores debruçados sobre relatos biográficos ou históricos, sejam eles escritores, cineastas ou dramaturgos. De fato, muitas das obras e relatos em que Satã foi figurado são permeadas por imagens nostálgicas de uma sedutora Lapa “que não volta mais”, reunindo aspectos ligados à cultura negra incorporados a uma suposta identidade brasileira e carioca (como o samba, a capoeira, a feijoada). E, especificamente, com relação a personagem, em geral baseiam-se numa oposição entre a valentia e a homossexualidade de Satã. Tomando um caminho inverso, o filme Madame Satã, de Karim Aïnouz,(2003), não seduz pela imagem da Lapa e da malandragem tradicionalmente difundidas, muito menos pelas contradições “curiosas” que deram fama a Satã. Por meio de um jogo de corpos e poros em que a intimidade de Satã é explorada, o olhar do espectador é aproximado da pele da película e dos personagens. Na busca por recursos estéticos e discursivos capazes de gerar um afastamento de uma concepção “domesticada” da malandragem, Karim Aïnouz investe os corpos dos personagens de afetos nômades e explosivos e consegue levar a idéia de “identidade” ao limite, ou mesmo romper com concepções de identidade problemática ligadas a sexualidade e raça, por exemplo.

Destaca-se, também, o fato de lançar mão de diversos elementos ligados à cultura negra e africana, que compunham este universo durante o processo de modernização do Rio de Janeiro. Na verdade, em diversos momentos do filme, é a própria associação a aspectos ligados à religião e ao pensamento africano que permite esse “investimento” nos corpos. Neste ponto, pode-se levantar uma questão: esta combinação de recursos não seria um sinal de que o resgate dessa herança africana surge como alternativa possível, em termos políticos, na atualidade? Mas, é importante observar que as escolhas da autoria refletem uma busca de pontos de fuga com relação a elementos também “domesticados” da cultura negra para além de uma “identidade nacional”. Antes da análise destes aspectos no filme em questão, seria interessante um breve preâmbulo pelo contexto em que se insere a história de Satã e o processo aqui intitulado de “domesticação”.

Vindo do sertão de Pernambuco, João Francisco dos Santos, ainda adolescente, passa a habitar o submundo da Lapa entre putas, estrangeiros, pequenos golpistas e boêmios. Ganha a alcunha em 1938, mas bem antes disso já era famoso nas ruas da Lapa e nas páginas policiais dos jornais. O negro valente e homossexual, exímio capoeirista, eventualmente prostituto e golpista, aos poucos foi criando fama, principalmente a partir das aparições numa mídia que já naquela época apoiava-se na espetacularização da criminalidade. Ao mesmo tempo, o Estado brasileiro do início do século XX iniciava um processo de modernização ainda sem saber lidar com elementos marginais à racionalidade e à moral que configurariam uma “sociedade moderna”. No caso, ex-escravos, descendentes, imigrantes e toda uma população analfabeta e beirando a miséria que habitava um mundo à parte. Um exterior difícil de ser controlado e compreendido. Na contramão dos acontecimentos e excluída do processo social, essa população marginalizada, constituída em grande parte por negros e migrantes, criou códigos e normas próprios, com seus personagens e atores sociais.

É nesse universo que o malandro vai ganhando contornos: a figura viril e marginal que se ocupa de pequenos golpes e até então vive uma espécie de paralisação no tempo e no espaço da vida urbana e “moderna”. As origens da malandragem remontam à própria abolição da escravatura e à época da proclamação da República. Gilmar Rocha, em seu estudo antropológico sobre Madame Satã e a malandragem carioca, observa que nesta época grande parte dos negros ex-escravos julgavam-se homens livres, e, como tal, muitos viam o trabalho como uma ameaça à liberdade, preferindo assumir trabalhos temporários, que freqüentemente eram substituídos pelo ócio e pela vadiagem (2004: 49). Vem daí a origem do termo malandro, que se tornou importante elemento simbólico das classes “negro-proletárias marginalizadas” [1].

Paralelamente à construção de uma classe burguesa carioca moderna, a vida cultural nas classes populares começa a se constituir e institucionalizar, estabelecendo seus próprios perfis identitários. Neste momento, surge o que Rocha  intitula de “República da malandragem”,

A República, em sentido amplo, significa comunidade política organizada. A metáfora república da malandragem corresponde aqui à política do cotidiano desenvolvida pelas comunidades negro-proletárias da cidade do Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XX. Daí podermos falar de duas repúblicas, uma oficial e a outra popular, assim estabelecidas no bojo de uma estrutura social excludente, legada desde os tempos da colônia e império, à qual correspondem dois códigos culturais, estruturando o sistema social brasileiro, conforme sugere DaMatta em seus estudos de antropologia da sociedade nacional. (2004: 57)

Ao definir a República da malandragem, o autor destaca a existência de diversas repúblicas populares, apontando a Lapa com uma delas, a que chama de Pequena África, termo criado pelo compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres. Os aspectos sócio-históricos observados em subcapítulo dedicado à Lapa na obra citada permitem uma abordagem inicial do recorte que compõe o filme Madame Satã. Observa-se, por exemplo, o uso estratégico de elementos simbólicos componentes da cultura africana e suas apropriações e adaptações feitas pelas camadas da população negra que habitava a Pequena África, que serão destacados mais à frente. Espacialmente, Aïnouz preferiu fazer um filme afastado do glamour da vida noturna, restringindo-se a interiores de bares, como o bar Danúbio Azul. O personagem circula por paredes sujas e escuras, “representando” a vida no cortiço e nos morros, que compunha o ethos dos habitantes de um Rio de Janeiro excluído.

Segundo Rocha, o aumento do fluxo de migrantes, grande parte ex-escravos vindos da Bahia para a então capital do país, teve um papel importante para a sua reorganização urbana e sócio-cultural. “Pode-se dizer que a cidade do Rio de Janeiro vivia, de um lado, um processo de europeização, e do outro, um processo de africanização” (2004: 61). O samba, a umbanda e a malandragem vão compor, desta forma, uma estratégia de resistência cultural do negro marginalizado após a abolição da escravatura. E os terreiros e as casas das tias baianas passam a ser os territórios em que se constrói a identidade cultural de grupo social desta parcela da população (2004: 62). Mas se esses componentes da cultura negra popular carioca funcionaram inicialmente como estratégia de resistência, há também o momento em que são capturados e passam a compor uma identidade nacional que politicamente interessava ao Estado no período. Esse processo de “domesticação” passa, principalmente, pela integração à indústria cultural. Em resenha sobre o livro A construção do samba, de Jorge Caldeiras, o jornalista e escritor Fernando Marques observa que o autor aponta certo acordo simbólico em que as elites passaram a avalizar o gênero, principalmente a partir da sua comercialização. Contrário à idéia do samba como espaço de troca entre comunidades e classes sociais, Caldeiras aponta que esta apropriação contribuiu para a criação de uma paisagem mítica, de uma imagem de país favorável ao Estado getulista.

De fato, a implantação do Estado Novo corresponde ao momento de transição para um Brasil moderno e, aliada a diversos outros fatores advindos da “modernidade”, decreta a extinção da Lapa como República popular da malandragem.

As transformações culturais do samba, carnaval, malandragem e outras, ao serem elevadas à categoria de símbolos nacionais, foram acompanhadas de novos significados político, econômico, social e cultural, representando, então, uma tentativa de controle de suas mensagens como produção cultural das classes populares. A questão da domesticação simbólica de manifestações culturais populares pode ser observada ainda nos casos do umbanda, do futebol e da capoeira. (Rocha, 2004: 135)

A observação dessas mudanças auxilia a compreensão do potencial político posto em cena pelo filme de Karim Aïnouz. Em primeiro lugar, a partir da escolha de apresentar a Lapa e o malandro pela intimidade, que inclui poros, sujeira, buracos e imperfeições de pele e paredes. A não ser pelas idas e vindas de bonde, em duas cenas em que os arcos da Lapa são exibidos, mas ainda assim, de forma desviada e diversa dos cartões postais mais tradicionais da cidade, nem o protagonista é definido ainda como Madame Satã, nem os locais por onde circula podem ser identificados diretamente com uma Lapa idealizada. Não é à toa que o filme se inicia com a imagem fechada do personagem visivelmente machucado, enquanto uma voz lê sua sentença criminal. Ao iniciar o filme exibindo a truculência e o regime disciplinar da polícia a serviço do processo de modernização e limpeza da cidade, Aïnouz troca rapidamente de lado. Fica clara, desde o início, a proposta de não se fazer um filme partidário de uma visão – originária de uma burguesia europeizada que se formava no período – que ajudou a constituir a imagem romântica da Lapa como berço do samba e da boemia. É uma obra construída expondo o lado B, o lado africanizado de que fala Gilmar Rocha, anterior ou por trás do processo de domesticação.

Madame Satã em cena

Madame Satã, de Karim Aïnouz, apresenta parte da vida de João Francisco dos Santos, durante os anos 30, numa fase anterior ao momento em que se torna o lendário personagem carioca. O filme se inicia com a imagem em close de Satã/João sendo literalmente enquadrado, enquanto uma voz narra sua sentença no momento em que vai preso. Em seguida, faz-se um retorno no tempo para mostrar um pouco da vida pessoal de João Francisco até a fase da prisão narrada. Segundo algumas fontes a alcunha só surge após ganhar um concurso de fantasias no baile dos Caçadores de Veados, em 1942, com uma fantasia intitulada Madame Satã, uma adaptação de Madam Satan, de Cecil B. de Mille[2]. O filme se encerra exatamente com as imagens que encenam o referido desfile de carnaval, acompanhando os créditos

A escolha de se fazer um filme de personagem em que é privilegiada a intimidade de João Francisco dos Santos, num período anterior à formação do “Madame Satã”, cantado e narrado por diversos meios, já reflete em si um recorte político que sugere o distanciamento do mito/imagem traduzido em produto cultural. Soma-se a este fator a construção de uma narrativa pautada na experiência e no afeto. O espectador é convidado a sentir o personagem, via um contato sensorial com imagens de corpos que explodem na tela. Além desses recursos imagéticos, estrategicamente em diversos momentos são utilizados elementos que em termos estéticos remetem a aspectos da cultura africana, indígena e latino-americana, como cenários, relatos, jogos de corpos e imagens característicos de ritos africanos – já inseridos e mesclados a elementos indígenas, como no Umbanda- , bem como elementos constitutivos de uma cultura fundamentada, principalmente, na expressividade oral, e em uma forma não cartesiana e não ocidentalizada de pensamento. A seu favor, o autor de cinema sempre tem uma obra que se compõe visualmente e pela oralidade. Ainda que originária de um roteiro escrito, os elementos orais e visuais costumam sobrepor-se a este elemento. No caso de Satã, a sua condição de analfabeto permite aproximá-lo ainda mais dessa tradição oral e rítmica de narrativa. Desta forma, valorizando aspectos ligados ao sensorial, ao corporal, ao afetivo e, aliando-os à expressividade oral, desenvolve-se no filme um afastamento de formatos canonizados pela literatura, pelo teatro e pela mídia com relação ao personagem/mito Madame Satã e à Lapa. Ao mesmo tempo, o personagem é construído em função de “modos de existência” que problematizam a representação e a mimese.

O resgate da oralidade revela uma estratégia que politicamente situa o filme em um não-lugar ou em um novo espaço. Afasta-o, assim, de outras obras, mais fundamentadas na tradição escrita e na concepção ocidental de “história”. Michel De Certeau, em A Invenção do cotidiano, aponta para a instituição da escrita como prática mítica no ocidente moderno e para os efeitos desta concepção sobre a tradição oral ” O ‘progresso’ é de tipo escriturístico. De modos mais diversos, define-se portanto pela oralidade (ou como oralidade) aquilo de que uma prática ‘legítima’ científica, política, escolar etc. – deve distinguir-se. “( 1999: 224). Nesse ponto é que se pode chamar de estratégias de resistência dos habitantes da “Pequena África” a manutenção de costumes ligados à música, à dança e às religiões de origem africana. Ao mesmo tempo, revela-se aí uma prática que inicialmente procura romper com os efeitos do colonialismo. Posteriormente, após a já captura e instituição desses elementos na concepção moderna de “identidade nacional”, para fugir desses símbolos identitários, resta a um filme produzido no século XXI apelar para um jogo de apropriação e desvio, em que o potencial dos jogos corporais e orais de origem africana é estrategicamente utilizado para “contaminar” elementos caros à cultura de massa.

Antes de uma de suas apresentações, Satã narra, em casa, em frente ao espelho:

“Vivia na maravilhosa China um bicho tubarão, bruto e cruel, que mordia tudo, e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia todo dia uma oferenda com sete gato maracajá que ele mordia antes do pôr do sol. No ímpeto de por fim a tal ciclo de barbaridades chegou Jamacy, uma entidade da floresta da tijuca. Ela corria pelos matos e avoava pelos morro. E Jamacy virou uma onça dourada, de jeito macio, de gosto delicioso(grrr) e começou a brigar com o tubarão, por 1001 noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia mais quem era um,  quem era outro. E assim, eles viraram uma coisa só: a mulata do balacochê”.

A fala é constituída de gestos, caras e bocas do personagem. Os cabelos estão desgrenhados como os de uma fera. Satã incorpora ao relato trechos de um espetáculo de uma casa noturna em que trabalhava como camareiro no início do filme. A cena se encerra com a aproximação de seu rosto no espelho, abrindo a boca como uma fera. Antes que a fala termine, há um corte para a próxima seqüência, em que Satã fará o seu segundo show. A frase final da fala anterior, em que apresenta a mulata do Balacochê, é proferida como voz off acompanhando a imagem de Satã adentrando o show.

A inserção desta narrativa no filme sugere a construção de um personagem cuja linha de pensamento e comportamento é constituído por meio da conjugação de forças e devires traduzidos em uma vontade de potência. Tanto a performance durante essa narrativa, bem como as performances nas duas seqüências em que se apresenta no bar Danúbio Azul, aproximam o personagem da tradição oral e corpórea dos Griots, contadores de história africanos que tinham a função de serem guardiões da memória de determinados povos ou  famílias. O registro e a divulgação dessa genealogia era feito por meio de celebrações que mesclavam música, dança e encenação. Outra característica dos relatos dos Griots era uma relação peculiar com a cronologia dos fatos e a inserção de fatos heróicos, mitos, lendas, sonhos e toda uma gama de elementos que enriquecem a narrativa, e dão ao relato um caráter mais libertário em termos de mimese. (Bâ, 2003 : 13).

A mistura de elementos de caráter e ambientes naturalmente diferentes (onça/tubarão, mordida/carvão, China/floresta da Tijuca) carrega o espectador para uma dimensão lúdica e constrói o personagem por meio de devires e potências. O devir, a partir da definição que Gilles Deleuze atribui ao termo, configura um estado em que algo está permanentemente em processo, em andamento, em vias de “tornar-se” a todo e qualquer momento. “Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação.”(Deleuze, 1997: 18). A escolha dos realizadores permite evocar neste trecho um devir-animal em que se misturam a entidade, a onça, o tubarão e o próprio personagem, assumindo os trejeitos de fera; havendo ainda um devir-mulher, operando na cena: a mulata do balacochê. Desta forma, obtém-se um afastamento da noção de sujeito e de formatos de narrativa psicologizantes na medida em que Satã “passeia” por estas figuras. Uma característica que aproxima ainda mais o relato ao dos Griots africanos.

No texto Crítica e Clínica, Deleuze, ao abordar o problema de escrever, sugere um caminho para a literatura a partir de uma nova concepção do ato de escrever. No caso, escrever é considerado um caso de devir sempre inacabado e a escrita inseparável do devir (Deleuze, 1997: 11). Os devires (devir-mulher, devir-molécula, devir-animal, etc.) encadeiam-se ou coexistem em diversos níveis. Mas é importante ressaltar que o Devir não significa chegar a uma forma identitária por meio da representação ou da mimese. Deleuze fala da zona de indiferenciação em que não discernimos mais uma mulher de um animal ou de uma molécula. Essa zona de vizinhança pode ser desenvolvida com qualquer coisa e ao mesmo tempo se exerce nos desvios. E é por meio de desvios que são sempre criados para revelar a vida nas coisas que o texto se constrói. Pode-se fazer uma associação do que os realizadores conseguem desenvolver no filme em questão e o que Deleuze propõe para o ato de escrever. Madame Satã, no caso, não se torna uma mulher quando menciona a Mulata do Balacochê, mas passeia (como a entidade que “avoa”) por esse e outros personagens. Desterritorializa-se constantemente. O devir-mulher Mulata do Balacochê é algo que ainda é João Francisco, visto que a transformação é apenas parcial e ao mesmo tempo desviada, caricata, não se realiza, não se fecha. O personagem não se transveste de mulher, nem se veste como homem. Busca-se, desta forma, um limite que concede ao personagem uma potência criativa para o seu modo de existência, de acordo com o que propõe Foucault em alguns de seus textos.

O combate com final peculiar, em que a entidade/onça e o tubarão machucam-se tanto a ponto de tornarem-se uma coisa só, aproxima a narrativa da definição que Deleuze dá ao combate como prática de um sistema de crueldade. No caso, o sistema de crueldade (não-oficial) opõe-se à doutrina do juízo, oficial, legitimada pela Igreja e pelo direito, por exemplo. No sistema da crueldade estabelecem-se mais combates entre do que combates contra. Os primeiros caracterizados pelo enriquecimento de uma força, por meio da posse de outras e, posteriormente, a constituição desta conjunção num devir. No caso, Deleuze faz uma separação entre o combate e a guerra. A guerra como um constante combate-contra, mais da ordem do juízo, incapaz de criar devires a partir de outras forças, visto que seu objetivo final é apenas a destruição. “O combate, ao contrário, é essa poderosa vitalidade não-orgânica que completa a força com a força e enriquece aquilo de que se apossa.” (1997: 151).

A batalha narrada por Satã permite ainda uma outra aproximação com relação à oposição entre a existência e o juízo proposta por Deleuze: a vontade de potência contra a dominação. A vontade de potência funcionaria a partir da captação de diversas forças em diferentes direções, que as multiplica, as enriquece. Neste ponto, Deleuze vai traçar uma oposição importante no sentido de que avalia a doutrina do juízo a que somos submetidos como um impedimento para a criação de novos modos de existência. O segredo, como aponta, talvez seja “fazer existir, não julgar” (1997: 153). Desta forma, Aïnouz, ao definir um formato criativo em constante devir para o personagem, aproxima o filme de concepções não cartesianas de sujeito e distancia-se tanto da oposição dicotômica malandro viril/homosexual quanto de formatos de relatos biográficos tradicionalmente estabelecidos.

Outro recurso utilizado no sentido de gerar para o personagem o desvio é o resgate de uma série de elementos que remetem a uma herança africana e negra nas Américas. Além da aproximação com a tradição oral dos Griots, já observada, destacam-se dois aspectos: a configuração do personagem a partir de concepções desenvolvidas por vias de pensamento influenciadas (ou herdeiras diretas) pela cultura africana (e yorubá, em grande parte); a inserção de sons e imagens esteticamente associadas aos rituais africanos. Este último aspecto observado manifesta-se, especificamente, em três momentos dentro do filme: nas duas seqüências em que o personagem se apresenta no palco improvisado do bar Danúbio Azul e nas cenas finais, do baile dos Caçadores de Veados.

“Eu sou filho de Iansã e Ogum. E de Josephine Baker, eu sou devoto.” A fala do protagonista transcrita resume uma apropriação, no filme, em que são expostos e mesclados, além de elementos da religião africana fixados em solo brasileiro, outros formatos de “modos de existência” criativa fertilizados pelo pensamento africano. A diva negra norte-americana Josephine Baker, cuja carreira deslanchou em Paris, está presente em cada gesto das apresentações artísticas de Satã. Para caracterizar esta influência, Aïnouz insere ainda numa seqüência trechos de um filme em que Baker aparece dançando, como que em transe, ao som de tambores. Este lado “devoto” de Josephine Baker é até então inédito, sendo pouco explorado em obras que procuraram figurar Madame Satã. Cultuar uma celebridade, colocando-a lado a lado de Iansã e Ogum. Aïnouz encontra um ponto de convergência entre todos esses elementos para compor o filme e o personagem: uma herança negra lá onde se pode encontrar vontade de potência.

Outra associação que pode ser feita a partir da performance corporal e rítmica de Satã, bem como da trilha que o acompanha nas apresentações, remete aos rituais de religiões africanas. Mais especificamente aos terreiros de Umbanda e aos Exus, seres amorais cultuados principalmente no Umbanda.. Kólá Abímbólá, ao abordar a concepção Yorubá de bem e mal, difundida na África e apontada como um fator de ligação entre as diferentes leituras da cultura yorubá na África e na Diáspora, apresenta o Exu como um elemento crucial nesta concepção. De acordo com o corpo literário de Ifá, o texto sagrado da religião Yorubá, a religião possui 600+1 poderes sobrenaturais[3], que são divididos em duas grandes categorias, um campo à direita e outro à esquerda (2006: 49). Quatrocentos deles ficam à direita e duzentos à esquerda. Os da direita representam os orixás e divindades, que por sua vez são benevolentes. Os que habitam a esquerda são os Ajoguns, que literalmente significam guerreiros – combatentes talvez funcione melhor como definição, para que se possa fazer uma aproximação com Deleuze – e representam o Mal. Mas há duas forças sobrenaturais que podem se situar em ambos os lados, o Aiê e o Exu. No caso, o Exu é apontado como um elemento neutro, por não se definir como mau ou bom. Exu é uma espécie de senhor de dois mundos, uma espécie de mediador de ambos os lados.

Há um fator que merece destaque neste sentido, e que de alguma forma se reflete também na constituição do filme. Na separação entre direita e esquerda, a oposição entre bem e mal não significa necessariamente uma relação dicotômica. A prática da religião Yorubá (e do Ifá) passa sempre por um jogo sujeito a diferentes interpretações e funciona, portanto, no desvio constante. Ao mesmo tempo, ao contrário do que ocorre com o saber ocidental, a razão nunca está separada ou exterior à sensação, mas caminham juntas. Dessa forma, o Madame Satã do filme, ao ser associado esteticamente  ao Exu em suas apresentações – definidas claramente como momentos de êxtase do personagem e pontos ápices da narrativa – reitera o perfil político de um personagem que flutua por diversos papéis, em constante devir. A utilização destes recursos ajuda a compor características que reproduzem a complexidade do protagonista, por ser ao mesmo tempo doce, raivoso, delicado, cruel, alegre, triste, o que também permite a negação de uma identidade. Percebe-se aqui uma valorização da desterritorialização do ser Satã em sua ambigüidade e capacidade de metamorfosear-se. Se uma hora o protagonista surge como malandro e cafetão, logo em seguida pode surgir como um pai e amigo extremamente carinhoso. Se num momento surge com trejeitos femininos e frágeis, em outra seqüência pode entrar em cena um bicho homem, falando grosso e derrubando quem passar por seu caminho. E a ordem dessas variações surpreende e se apresenta repleta de idas e vindas, cumprindo a intenção de se portar como espaço liso e indecifrável.

Após a análise aqui desenvolvida, pode-se afirmar que, ao distanciar-se do mito/imagem Satã traduzido em produto cultural e, conseqüentemente, de concepções problemáticas com relação à sexualidade e raça, o filme consegue estabelecer uma espécie de resistência política por meio do uso dos corpos. Mas se além dos elementos ligados à cultura negra, como o samba, a culinária e a dança, já transformados em mercadoria, também o corpo agora, muito mais que em outras épocas, é exposto, comercializado e profanado, o que fez a diferença no filme em questão? Ao caracterizar as esferas do sagrado e do profano, Agamben observa que profanar é restituir para o uso mundano e particular o que a religião transformou em sagrado. A partir da definição de Walter Benjamin do Capitalismo como religião, Agamben proclama que na esfera do consumo “tudo aquilo que é representado, reproduzido, vivido – incluindo o corpo humano, incluindo a sexualidade, incluindo a linguagem – é dividido de si próprio e deslocado para uma esfera separada” (2006 : 117) em que nenhuma divisão entre sagrado e profano bem como nenhuma forma de uso é possível . Desta forma, poderia-se pensar no corpo de Madame Satã, em seu papel de ícone da malandragem, bem como em diversos aspectos da cultura negra brasileira, como elementos improfanáveis, a partir de sua redução à esfera da mercadoria.

Se como afirma Agamben, “A profanação do improfanável é a missão política da próxima geração” (2006: 133), e para tanto é necessário resgatar o potencial profanatório que os dispositivos de poder buscam neutralizar, a saída encontrada no filme foi o que poderia se chamar um transbordamento e uma explosão dos corpos. Incluindo, neste caso, o próprio dispositivo do cinema como algo a ser enfrentado. Nas performances analisadas, bem como em diversos momentos, são utilizados alguns desenquadramentos repentinos em que a câmera passa para um lenço, para uma mão, ou mesmo para um detalhe do rosto, do corpo e da roupa de Satã. Há também a incidência de quadros muito fechados, eliminando a profundidade de campo e quase remetendo o espaço tridimensional a apenas duas dimensões, e em muitas cenas a uma apenas, já que o corpo às vezes se confunde com o fundo. Um efeito proposital, segundo depoimento de Walter Carvalho, diretor de fotografia. Particularmente o uso das imagens fora de foco, logo após um plano médio e centrado do personagem, leva a este efeito, ao introduzir um ponto de vista anormal de forma impactante. Neste caso, a imagem se abre para além do espaço. É o momento em que os afetos são liberados e, ao mesmo tempo, o momento em que a dimensão sensorial do filme é prolongada, transcendendo modelos e padrões de narrativa e de personagens caracterizados pela exclusão. Violentado, exposto e profanado no século XXI, o corpo de Satã provavelmente nunca mais será o mesmo.

Bibliografia

ABIMBOLA, Kola. Yoruba culture; a philosophical account. Birmingham: Iroko, 2006.

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Lisboa: Cotovia, 2006.

BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Pallas Athena; Casa das Áfricas, 2003

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1999. v. 1

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo; Ed. 34, 1997.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol 4 e Vol 5. São Paulo: Editora 34,1997

ROCHA, Gilmar. O Rei da Lapa: Madame Satã e a malandragem carioca. Rio de Janeiro: 7letras, 2004.


[1] Termo do autor citado

[2] Há diferentes versões para o nascimento da alcunha. Há depoimentos em que o próprio Madame Satã, por exemplo, reitera a origem no concurso e outros em que atribui a outros episódios.

[3] O +1 refere-se ao poder de elasticidade desses campos, em que se pode inserir novas entidades e usos, como no caso da Umbanda.

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Este post tem um comentário

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    Gin Santos

    Adorei, vai servi por demais no meu trabalho coreográfico sobre MANDAME SATÃ. Parabéns.

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