Crítica | O Sonho do Inútil (2021), de José Marques de Carvalho Jr

Texto realizado como cobertura para o 10° Olhar de Cinema

Acompanhando a 10ª edição do Olhar de Cinema, também conhecido como Festival Internacional de Curitiba, estou notando um tema recorrente em algumas das obras expostas: a nostalgia pelo passado (e a busca de se acertar com ele). O longa-metragem O Dia da Posse (2021), que abriu o evento e foi dirigido por Allan Ribeiro, e o curta-metragem Meu coração é um pouco mais vazio na cheia (2021), de Sabrina Trentim, dialogam bastante com essas ideias. O primeiro, inserido em um contexto pandêmico, usa a rememoração como meio de lembrar a vida pré-isolamento, mas sem utilizar imagens passadas – as memórias surgem através dos diálogos. O segundo, por outro lado, se constrói justamente sob algumas cenas antigas, de um evento específico, do qual a cineasta relembra com nostalgia e melancolia. Existe uma reflexão acerca das lembranças, que ressignifica as mesmas.

Em O Sonho do Inútil (2021), ainda que de formas diferentes, o mesmo conceito está inserido. Dirigido por José Marques de Carvalho Jr, o longa-metragem acompanha a trajetória do próprio diretor relembrando seus anos de juventude, quando fazia parte de um grupo online de humor chamado “Inútil”, no qual alguns amigos da periferia do Rio de Janeiro se reuniam para realizar desafios e pegadinhas perigosas, ala Jackass. O documentário reúne filmagens antigas do grupo unido, entrevistas com os membros e seus familiares e os reencontros dos mesmos, atualmente. Todos os núcleos colocados numa perspectiva nostálgica, porém sem uma romantização extrema da nostalgia. Tenho a impressão de que, na realidade, ela existe tanto nesse lado mais idealizado, quanto no realista. Marques está interessado em olhar para o passado com bons olhos, mas sem deixar de lado o peso melancólico e as consequências desse tempo que ficou para trás.

A princípio, gostaria de começar meu raciocínio observando a auto inclusão do diretor em seu filme. Marques é um dos personagens mais importantes da narrativa, afinal sua figura foi parte fundamental da criação e desenvolvimento do Inútil. No entanto, a participação dele dentro da história não soa nem um pouco egocêntrica ou invasiva; ao contrário, o cineasta, ainda que converse com seus amigos e familiares por de trás da câmera, abre espaços para que os depoimentos e as conversas aconteçam naturalmente. Sinto que ele consegue capturar muito bem a essência de cada um de seus amigos, especialmente ao misturar imagens antigas deles com depoimentos atuais. Daniel, um dos membros do grupo, que antes tinha muito talento com desenho e pichações, não conseguiu seguir sua trajetória na arte; Aluã, que enfrentou diversos problemas familiares e de abandono na infância e na adolescência, busca se reconciliar com sua família, ainda que os conflitos se mantenham; Diego, mesmo que não consiga transformar sua arte em sua fonte de renda, tenta encontrar conforto e um espaço de libertação no RAP; por fim, e talvez o mais impactante, Douglas, o membro que não sobreviveu ao passar dos anos, pois foi assassinado em decorrência de seu envolvimento no crime e no tráfico.

O valor dramático dessas situações está tanto na intercalação do passado com o presente, como na maneira que Marques registra os depoimentos em si. Quando Aluã reencontra sua mãe, que o abandonou, vemos uma cena em que ambos discutem e se confrontam acerca da situação, ao mesmo tempo em que buscam uma reconciliação. E o mais interessante é que podemos perceber que a mulher tenta se comportar de maneira diferente por estar sendo filmada, criar uma persona para a câmera, porém a discussão entre ela e seu filho impede isso – o que se acentua pelo fato do diretor manter a cena e a conversa na íntegra, sem cortes. Além deste momento, gostaria de ressaltar a entrevista com o pai de Douglas, talvez a cena mais emocionante do documentário. O homem relembra da trajetória de seu filho, o envolvimento dele com o crime e, especialmente, a última vez que se viram. Não é necessária uma espetacularização da desgraça ou um sensacionalismo emocional barato para criar uma emoção genuína no espectador; Para Marques, basta apenas deixar a câmera registrar a honestidade presente no depoimento de seus entrevistados. A encenação de O Sonho do Inútil não visa evidenciar as manipulações e mentiras que percorrem o cinema, e sim utilizar o audiovisual como meio de libertação e de revelação dos dramas humanos e verdadeiros de seus personagens.

E esse lado metalinguístico, que observa o cinema como força de escape e como esse espaço de encontro consigo mesmo, talvez seja um dos pontos altos do longa. Os amigos encontram no audiovisual esse lugar para escapar dos crimes, das drogas e da violência da periferia do Rio de Janeiro. Não por acaso, em diversos momentos o cineasta nos mostra imagens em que a própria câmera aparece para o espectador. Afinal, ela é o objeto que permitiu que eles se encontrassem, uns com os outros.

Marques grava a si mesmo através do reflexo de um retrovisor.

Vale, ainda, trazer a esta crítica um documentário que passou pela minha mente desde os primeiros instantes de projeção: Minding The Gap (2018), de Bing Liu. O longa – que foi indicado ao Oscar de 2019 -, assim como O Sonho do Inútil, reúne filmagens antigas de um grupo de amigos periféricos, intercaladas com cenas atuais e entrevistas. Liu decidiu resgatar os registros de sua infância, quando andava de skate com seus amigos, para realizar um estudo acerca do impacto das relações familiares e do espaço periférico na vida desse grupo de skatistas, tentando evidenciar que o skate e o audiovisual funcionam como meios para escapar do crime, da violência e das drogas do ambiente em que estavam inseridos. A mesma lógica está presente no longa de Marques, com a diferença de que o escape não vem do esporte, mas sim do humor físico, do entretenimento ala Buster Keaton.

Como o próprio diretor diz em uma das cenas: no Inútil, ele se enxergava como esse “palhaço” do Cinema Silencioso. Keaton, por mais que vivesse se machucando e se metendo em situações complicadas para criar divertimento aos espectadores, no fim da história sempre terminava bem. E era isso o que Marques queria. Por mais que o Inútil possa soar como um tipo de entretenimento fútil e desnecessário para muitas pessoas, o documentário é capaz de mostrar um lado bonito e honesto desse tipo de humor (ou desse tipo de arte). Ao menos ele foi capaz de unir um grupo de amigos e ajudar eles a se encontrar.

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