Texto realizado como cobertura para o 10° Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
Por Vitoria Rocha
As primeiras impressões que se tem são imprimidas na trilha musical. A característica noir, ou chamada por alguns de “música de filme de mistério”, é exata quanto a sensação fantástica que embala o espectador desde o princípio, preparando a expectativa de um mistério que está por vir.
O longa-metragem conta a história de Leo (Negro Leo) e sua professora, a geóloga Silvana Stein (Silvana Stein), em uma jornada de investigação da cidade do Rio de Janeiro, impelidos por um vazamento de água misterioso. Esta lida científica e realista, no entanto, começa a adquirir traços de ficção quando surge uma relação desse vazamento com um tesouro perdido nas profundezas urbanas e com os desastres sociais e ambientais que marcam uma história de apagamento histórico e colonização.
O estopim da busca real vem de fato do escape da água. Entretanto, há também um estímulo fictício que se mostra antes mesmo de descobrirmos que existe um problema nos lençóis freáticos. Se trata do fragmento meteórico que não sucumbiu as infelizes chamas que consumiram o Museu Nacional. Quando este meteorito caiu no Brasil, no ano de 1784, veio com ele um registro antecipado do nosso futuro. Esta metáfora entre um conglomerado de fragmentos de cometas, asteroides e até planetas desintegrados, que resiste a um incêndio, em tudo têm haver com uma força invasora maior que cai em nossa terra, queima e destrói, mas não é e nem pode ser combatida. Seu poder destruidor e estrangeiro é exposto em nossos museus. É quase como se um meteorito tivesse destruído e queimado nossas memórias no Museu Nacional.
A partir deste momento, entende se que a intenção do diretor é contar uma história do Brasil. Por se tratar de uma documentação de memórias de perdas e, consequentemente, de uma identidade, a personalização do ambiente urbano e a ciência personificada na figura da professora Stein, são os contrapontos realísticos necessários para a comprovação desta história e para romper com uma ideia de que se trata de um filme completamente ficcional. Este mistério que precisa ser explicado, não se trata verdadeiramente de pedras ou água. O uso da faculdade geológica é uma materialização do conhecimento de um colonialismo. A escolha de se fantasiar, metaforizar e ludificar a aprendizagem da história do Brasil, é uma tentativa de demonstrar que mesmo uma situação verídica e comprovada precisa, ainda, ser explicada.
É interessante perceber como a figura de Leo aparece como uma espécie de ignorância infantil, enquanto a de Silvana como uma elucidação técnica. Algumas atitudes de Leo, como dormir no sofá, andar em cima de murinhos, atravessar a rua sendo segurado por Silvana, descobrir por acaso ou até mesmo a hábito de chamá-la de professora, são ações mais características das crianças. A fantasia e a ludicidade são feitas para elas. Pedro Urano entende que para que compreendam e ponderem a respeito do apagamento histórico que o país sofreu, é preciso fazer um filme de pureza infantil. Talvez, se fosse um relato completamente real e técnico, existiria a grande possibilidade de que não se prestasse atenção ou até mesmo que fosse denunciado por ser conteúdo ser extremamente verídico e denunciatório.
A colonização dos portugueses é bastante demonstrada em Subterrânea (2021), através dos pontos turísticos, jornais, mapas e relatos do Rio de Janeiro. O Morro do castelo, área escolhida para reinstalar o Rio de Janeiro em 1567, foi destruído em 1921/22 em prol de uma reforma urbanística. É intrigante pensar que assim como a urbanização levanta construções feitas de minérios e concreto e destrói os morros de memória e história, o meteorito também leva tudo ao pó. Se pararmos para pensar que nossas ruas são asfaltadas e nossos edifícios são grandes ajuntamentos de concreto usinado, é como se toda a destruição do povo e da identidade brasileira estivesse em nossas paredes. Tanto quanto uma barragem pertencente a uma mineradora toma a vida de aproximadamente 280 pessoas. “O maior mistério da humanidade está debaixo dos pés da humanidade” no nosso asfalto urbano e em tudo aquilo que ele cobriu, desde terra, plantação e lembranças de povos mortos.
A maior evidência de que se trata de uma documentação histórica, está na caverna subterrânea que Leo e Silvana adentram para investigar. Lá estão grande parte de tudo que foi destruído, colonizado e evangelizado, como o Morro do Castelo e as religiões de matrizes afrodescendentes. A dobra temporal que o espaço propõe, serve como a escandalização e a verdade do Brasil que continua tão presente e óbvia em nosso cotidiano. Ler a literatura de Lima Barreto é nada mais nada menos do que passar por essa dobra temporal. A descoberta do petróleo no final, é a potência da incriminação que habita na nação. Entrar neste túnel limpo é ter certeza que sairá sujo.
Tudo aquilo que Subterrânea (2021) desejou demonstrar foi potencializado com a linguagem cinematográfica. A música, a filmagem que personifica a cidade, a intelectualidade e técnica demonstradas verbalmente, o uso da documentação verídica, as relações de espaço e tempo e a ficção, são extremamente poderosas pela escolha e visão de Pedro Urano em se contar uma história tão clara e ao mesmo tempo tão latente por meio da realidade fantástica que a câmera permite.