Procedimentos de montagem como estratégias de aproximação à cidade contemporânea

David Sperling é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. Arquiteto e mestre pela EESC-USP, doutor pela FAU-USP (Área de Projeto, Espaço e Cultura). Recentemente teve seu texto “Corpo + Arte = Arquitetura. Proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark” publicado no livro “Fios Soltos: a arte de Hélio Oiticica” (Perspectiva, 2008).

Fábio Lopes de Souza Santos é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. Arquiteto, mestre pelo Royal College of Arts (Londres) e doutor pela FAU-USP (Área de Estruturas Ambientais Urbanas). Recentemente teve seu texto “As neovanguardas e a cidade” publicado no livro “Arte e Cidades – imagens, discursos e representações” (Edufba, 2008).

Resumo

Este texto faz uma breve apresentação da experiência didática que vem sendo desenvolvida nos últimos anos na disciplina Linguagens da Arquitetura e da Cidade (LAC) do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. Após a contextualização da disciplina, apresenta alguns trabalhos de alunos realizados nos anos de 2007 e 2008.

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A disciplina Linguagens da Arquitetura e da Cidade (LAC) conforma o ponto de interseção do grupo de disciplinas da área de Representação e Linguagem do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP com o quarto ano deste mesmo curso.[1] De um lado tem-se o que se pode considerar a especificidade da aproximação a uma dada realidade pelo corte teórico-operativo dos processos de configuração das linguagens visuais e verbais. De outro, tem-se toda uma problemática concernente à reflexão sobre a arquitetura e o urbanismo contemporâneos – temática que organiza o conjunto de disciplinas do quarto ano do curso. É na interseção desses campos que se encontra o território que temos procurado delinear nesta disciplina: investigar e refletir sobre o espaço contemporâneo a partir de criações com diversas linguagens visuais.

Aqui se faz necessário delinear um quadro referencial. Sendo possível olhar retroativamente para o Modernismo como uma resposta aos desafios que se apresentavam com os processos de modernização então em curso e a incapacidade da arte tradicional, acadêmica, de representar o mundo a sua volta e as transformações sociais, técnicas e de percepção que se processavam, o que dizer do cenário contemporâneo, no qual aceleração, excesso de informação e esvanecimento da consciência histórica são algumas das características, decisivas, que se apresentam ao mesmo tempo como material e desafio à percepção e à operação criativa?

Dentro de sua especificidade, a arte contemporânea desde a década de 1960 vem respondendo a este novo cenário, constituído como realidade difusa e complexa, em que novas espacialidades e sociabilidades emergem e a prática arquitetural e urbanística – assim como a artística – se mostram pulverizadas.

Uma série de novas questões passa a configurar a realidade das grandes cidades ao redor do mundo desde aquela década: o esmaecimento dos seus limites físicos e perceptivos, a crescente crise do espaço público, o surgimento de enclaves urbanos e de arquiteturas de grande dimensão que pretendem substituir a dinâmica urbana, a relativização da relação espaço-tempo com a emergência de novas tecnologias de informação e comunicação, a fragmentação social e o aparecimento de movimentos sociais ligados a minorias sociais (gênero, etnia, orientação sexual etc), dentre outros.

No caso da arquitetura, desde esta época, passam a tomar lugar manifestações tão instigantes quanto inquietantes. Postos em questão o rigor e os compromissos sociais como pensados pelo Movimento Moderno e inviabilizados o pensamento e o projeto integral da cidade, a arquitetura lançou-se a experimentações em uma escala e velocidade jamais vistas. O que se seguiu, no que concerne à arquitetura como manifestação cultural, foi desde a procura por uma autonomia disciplinar e a investigação por recorrências históricas, até o diálogo seja com a indústria cultural seja com as chamadas culturas locais. E, mais adiante, a incorporação do tempo como variável da experiência espacial, a procura por um diálogo com conceitos trabalhados pelas ciências sociais e pela filosofia, a investigação de interfaces com as artes e o cinema, a incorporação dos meios digitais em suas mais variadas dimensões…

As mudanças pelas quais passou a arte não foram menos surpreendentes. Os artistas abandonaram os suportes e gêneros tradicionais, incorporando novos materiais e temas, em uma dinâmica crescente de experimentações. Quadros e esculturas cederam lugar a objetos, objetos a instalações, enquanto estas últimas logo se desdobraram em ambientes. Desta maneira, toda sorte de eventos, performances e site specifics extrapolaram o espaço protegido da galeria e do museu. Esta ultrapassagem dos limites estabelecidos da atividade traduziu-se na incorporação de toda sorte de questões extra-artísticas e culturais e na hibridização da arte com outras formas de comunicação social e acontecimentos efêmeros. Esse permanente tensionamento produziu outra inscrição social da arte, em um processo no qual a transformação da arte se encontra com a transformação da arquitetura e da cidade.[2]

Este é o complexo campo no qual a disciplina LAC tem procurado operar, o das convergências que vem ocorrendo entre arte, arquitetura e cidade desde a década de 1960. Nele, a disciplina tem se orientado pelo mapeamento de conceitos em formação e dados da realidade que se apresentam de modo latente. A forma por meio da qual esta aproximação acontece é a proposição de criações artísticas, apostando na arte como sensor que, operando na ordem do sensível, pode abrir outros espaços para reflexão.

LAC é uma disciplina de atelier com duração de dois semestres, nos quais é alinhavada uma seqüência de proposições de trabalhos artísticos a serem desenvolvidos pelos alunos individualmente e em grupo. Os suportes utilizados vão desde os habituais do arquiteto como a fotografia ou o desenho, até outros mais inusitados como o xeróx, a colagem, o objeto, o ambiente, a instalação, o site specific e o vídeo.

A estratégia que preside esta seqüência de exercícios é o procedimento de montagem seja no espaço, seja no tempo. Procedimento-chave que permeia não apenas diversas manifestações da arte contemporânea, como também os modos atuais de comunicação e de percepção, a forma montagem é o nó em que se cruzam a pesquisa de linguagem e a investigação sobre a realidade urbana atual.

Formas aparentemente tão distintas como a collage, o ambiente, o vídeo ou o site specific têm em comum a articulação de seus elementos por meio da montagem, ou seja, a justaposição de elementos heterogêneos. A adoção deste procedimento permite que sejam trabalhadas no interior da disciplina questões referentes à dinâmica contemporânea de produção e circulação de informações, tais como tradução, reprodutibilidade, o esmaecimento da idéia do original e da autoria, a imagem-espetáculo, ou ainda, a “interação” como modo de relação entre pessoas e entre estas e os objetos. Da mesma forma, nos interessa trabalhar a partir da extrema flexibilidade da informação, da atividade da “edição” (em lugar da “criação”) ou da transmutação da obra espacial em evento temporal.

Implícita na estratégia da montagem está a tradução/recriação de uma situação expressa em uma linguagem para outra. Em cada exercício o aluno recria em novos meios as informações que extraiu de uma infinidade de fontes. Assim, textos são transformados em imagens, experiências da cidade são traduzidas em instalações, uma foto pode dar origem a uma colagem de xérox ou entrar na construção de um objeto. Do mesmo modo, estas montagens podem se deslocar do espaço para o tempo: um ambiente dá origem a um vídeo, o qual, por sua vez, pode ser reformatado para ser incluído em um hipertexto.

De igual modo, é relevante assinalar o meio em que o corpo discente da disciplina está imerso. Se por um lado, como alunos de quarto ano, já têm assimilado toda uma série de olhares e códigos de representação da arquitetura e da cidade, por outro trazem consigo um repertório de concepções e imagens sobre a cidade proveniente da indústria cultural. Neste contexto, ao operaram reflexivamente com a linguagem, as atividades visam simultaneamente desnaturalizar as imagens provenientes da indústria cultural e problematizar o uso dos códigos de representação da arquitetura. Ao possibilitar a realização de trabalhos no espaço real e a oportunidade de experienciá-los diretamente, a disciplina se apresenta como uma alternativa dentro do contexto de um curso em que a criação arquitetônica opera em grande medida com o espaço a partir de suas representações no plano e em modelos. Desta forma, agregam-se às mediações próprias da representação, outras concernentes à instância da apresentação direta da obra no espaço.

Dentro do cruzamento exposto anteriormente – que se estabelece na formulação de cada proposição, entre as linguagens e a cidade contemporânea – têm um papel central o que chamamos de disparadores. Estes são compostos pela eleição de certo suporte e uma determinada forma de referência ao fenômeno urbano (lugar experienciado, leitura de textos ou palavras-conceito). Uma primeira forma de abordagem é a que parte da experiência direta de um determinado lugar, seja pela vivência do aluno em alguns espaços do cotidiano, seja pela visita coletiva a lugares escolhidos por seu potencial em suscitar questões.

Outras proposições partem da leitura de um texto que pode ser literário, do campo da arquitetura e do urbanismo, ou da arte. Outras ainda são “disparadas” pela discussão coletiva de uma palavra-conceito – tal como fluxo, limite/fronteira, arquitetura contentora, terrenos residuais, não-lugar, cidade do espetáculo, entre outras – que aparecem no debate arquitetônico contemporâneo e permitem abordar de forma aberta fenômenos em formação ou em crescente desdobramento. Neste caso, procura-se trabalhar a partir da síntese e da condensação próprias a uma palavra, que deve desencadear uma sucessão de associações conceituais e imagéticas (traduções entre o verbal e o não-verbal). Estas vão delineando a cartografia processual da qual o trabalho emergirá, fazendo dialogar suporte e conceito – processo essencial para a atividade do arquiteto.

Para que possa ser experienciada uma boa gama de relações entre temas e suportes e se consiga uma boa dinâmica de atelier, o desenvolvimento das proposições acontece em um curto período de tempo. Entre o início dos trabalhos, a seqüência de orientações pelos professores, a exposição, experienciação e leitura coletiva das obras, tem-se, em geral, quatro aulas. Além do fator tempo, os trabalhos devem responder à necessidade, posta pelos próprios alunos, de baixo custo. A pesquisa plástica deve compensar a escassez de recursos; compõem o processo de trabalho o planejamento e a obtenção dos recursos materiais necessários para a sua execução.

Por fim, cada proposição se encerra na leitura coletiva dos trabalhos produzidos, outro instante-chave da estratégia didática. Esta leitura, mais uma camada neste processo de tradução entre o verbal e o não-verbal, desenvolve-se visando pensar “com’ a obra, e não apenas “explicá-la”. Nela são elaborados os diversos olhares e discursos sobre questões urbanas que o trabalho mobiliza, as quais, por sua vez, também acrescentam outras dimensões aos trabalhos.

Esta breve apresentação dos pressupostos teóricos e da dinâmica de trabalho de LAC delineia minimamente um contexto a partir do qual pode fazer sentido para o leitor a exposição daquilo que vem se estruturando como o cerne desta experiência didática: a conformação de um espaço de produção experimental por parte de seus professores e alunos. Assim, em seguida, são expostos alguns trabalhos realizados nos anos de 2007 e 2008 na disciplina, acompanhados da solicitação a que responderam e de algumas reflexões que suscitam. Os trabalhos foram agrupados segundo os disparadores utilizados: experiência do lugar, leitura de texto, palavra-conceito.

Disparador I: A experiência do lugar

Neste caso, são apresentados três trabalhos relacionados com a experiência de lugares determinados da cidade de São Carlos, dois voltados à Avenida São Carlos e outro ao “bandejão” (Restaurante Universitário) da USP. Como questão central da proposição do exercício havia a idéia de contraposição crítica às imagens estereotipadas dos lugares, e o desvelamento de suas dimensões encobertas.

Contexto 1: Av. São Carlos

A avenida é talvez o lugar de maior visibilidade na cidade. Ao mesmo tempo em que se configura como eixo estruturador da malha urbana, ela é segmentada em zonas distintas: contém desde um pólo de comércio popular a importantes equipamentos urbanos (mercado, catedral, praças, cemitério etc).

Objeto

(18 placas de 20 x 20 cm - gravuras em argila, papel mousse,
etiquetas, gravação em braile)
Autores: Emyr Ferrario de Lima, Mônica Aparecida de Freitas,
Núria Cristina Eler Pedrazzini
2008

Este objeto aproxima duas instâncias díspares, a racionalidade visual da seriação e da malha de quadrados à forte tatilidade da gravura. Os alunos se deslocaram pela avenida realizando gravações em argila de relevos de distintos lugares ao longo da avenida (pisos e paredes). Cada amostra foi colada em uma base branca, na qual uma etiqueta traz a inscrição em braile de sua localização na avenida por meio de coordenadas de latitude e longitude. O trabalho aproxima duas escalas extremas, o contato corporal com o relevo das superfícies e a possibilidade de localização de qualquer fragmento urbano por meio de sistema global de posicionamento (GPS). O desenho de cada micro-relevo oscila entre a sua escala reduzida e a referência a relevos geográficos e traçados urbanos. A associação da tatilidade à abstração é o que caracteriza o fragmento de relevo deslocado do local original, assim como a linguagem braile para leitores não-cegos. Gravura e braile apresentam outra dimensão da leitura da cidade, além e aquém da visão.

Escultura

(25 cm x 3 m - tecido de malha, manta acrílica e estrutura
de madeira)
Autores: Alexander Jan Albrecht, Gabriela Pimentel Miglino,
Isabela Denzin
2008

A escultura condensa a referência a dois ambientes característicos da Avenida São Carlos, a presença do cemitério e do comércio informal. Vista de longe, pendurada em um espaço vazio, sua forma concisa e elegante remete à simbologia do sagrado: traz à mente crucifixos, estandartes de procissão ou cruzes como marcos visuais na paisagem. Inspecionada de perto, a sua materialidade abre para associações com todo o universo da cultura material popular: a construtibilidade característica dos paramentos do folclore, do comércio ambulante e do “feito-à-mão” (fuxicos, cortinas de porta, mantas de retalhos) e o colorido das festas de rua.

Contexto 2: Bandejão

“Bandejão” é o apelido, entre informal e depreciativo, pelo qual são conhecidos restaurantes institucionais que servem a um público de grande escala. Utilizam este sistema grandes instituições como o exército, cadeias, fábricas ou universidades. A racionalização dos serviços, análoga ao processamento industrial, pressupõe a estandardização e a homogeneização de comportamentos do público. Mesmo dentro desta lógica, o “bandejão” ocupa um importante lugar no cotidiano do estudante universitário, como um de seus espaços de sociabilidade.

(Vídeo)

Vídeo

(Duração: 3'20'')
Autores: Alexandre Leitão dos Santos, Márcio Eleutério Diniz,
Tânia Maria Bulhões Figueira, Thalita Cruz Ferraz de Oliveira
2007

As imagens foram captadas de modo objetivo e o vídeo montado pela projeção simultânea de quatro quadros, estrutura visual que amplia a impessoalidade da imagem ao recusar o olhar centrado a partir de um sujeito. A adoção desta linguagem põe em evidência aspectos da lógica que preside o funcionamento deste espaço e alude a sistemas de vigilância que são cada vez mais comuns em locais de massa como este. A projeção simultânea e metonímica de momentos distintos do processamento, aliada à presença de um relógio digital que calcula o tempo, traz à consciência o caráter de eficiência industrial deste sistema e pretende levar à reflexão sobre a percepção programada e automatizada deste espaço por parte do usuário, como sobre a repetição cotidiana de suas ações. A escolha da imagem em preto-e-branco reforça o caráter anódino do ambiente e realça a presença maciça do aço inoxidável. A música, conscientemente fora do contexto cultural, pretende contribuir para o deslizamento das imagens, desde este lugar específico para o contexto dos espaços de controle e de sociabilidade programada.

Disparador II: leitura de texto

Compõem a seleção a seguir três proposições que tiveram sua origem na discussão do texto clássico de Rosalind Krauss “O campo expandido da escultura” (“Sculpture in the Expanded Field”. October, Vol. 8, Spring, 1979, pp. 30-44). Este texto procura discutir a natureza de proposições artísticas que, a partir dos anos 1960, ultrapassaram as convenções do gênero da escultura, discernindo certos direcionamentos desta prática em relação à arquitetura e à paisagem e demarcando um campo ampliado composto pelo que a autora denominou de lugares assinalados, construção de lugares e estruturas axiomáticas. O local proposto para as intervenções de LAC foi o espaço (e o entorno) do edifício do próprio Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. Cada proposição deveria potencializar a percepção de características de um local específico deste espaço.

Instalação

(15 x 15 m - cadeiras, tubos de PVC e tinta látex)
Autores: Ana Karina Bueno Romero, Isabel Morin Santos,
Mariana Dobbert Tidei, Sabrina Fernanda Sartório Poleto
2008

Esta instalação se apropria de um espaço entre blocos edificados, caracterizado por um relevo acentuado e irregular, e por sua falta de qualificação formal e funcional. Neste espaço amorfo, a superposição de uma modulação racional funciona como um aparato dimensionador. O posicionamento de cadeiras em um mesmo nível horizontal baliza as diversas alturas do terreno. A reverberação do espaçamento da estrutura dos edifícios circundantes permite mensurar a relação entre largura e profundidade do local. A estreita proximidade de algumas cadeiras com as poucas e pequenas árvores existentes leva à vinculação de sua posição a pontos de uma estrutura não visível sem o aparato instalado – passa a ser lida, então, uma racionalidade improvável. A instalação dispara outros tipos de associação, fileiras de cadeiras remetem à lógica da sala de aula, placas brancas horizontais sobre um gramado lembram um cemitério, a ampliação das pernas das cadeiras confere a elas um ar de exército em marcha.

Instalação

(1,50  x 50  m - grama descolorida por sobreposição
de papel kraft)
Autores: Fernanda Lie Sakano, José Irail de Resende Neto,
Milena Faveri Rodrigues, Rafaela Lino Izeli
2008

A instalação ocupa um extenso campo gramado com forma e topografia irregular desenhando uma faixa entre edifícios dispostos em ângulo agudo. Apesar da escala gigantesca, esse trabalho guarda uma estreita afinidade com os processos de gravura. A faixa foi obtida pela superposição de um rolo de papel kraft sobre o gramado, tampando a incidência de luz na grama durante duas semanas. O trabalho, que incorpora a reação orgânica e a passagem do tempo, só é finalizado quando a grama, então descoberta, recupera a cor original – a aparição e desaparição de uma rigorosa geometria revela a natureza temporal do espaço. O caráter processual da instalação opera pela oscilação entre presença e ausência. Enquanto a faixa está em gravação, a técnica (o papel kraft) disponível à visão encobre o processo. Apenas quando a faixa vai sendo des-gravada, a técnica (a luz solar) e o processo se revelam integralmente, mas são apreendidos em uma escala de tempo que excede o momentâneo e que é da ordem da duração.

Instalação

(50 cm x 8m - blocos de gelo de dimensões variadas)
Autores: Mônica Aparecida de Freitas,
Núria Cristina Eler Pedrazzini
2008

Este trabalho se inicia com a produção de blocos de gelo. Grandes bexigas cheias de água são colocadas no congelador. A forma, até então instável, adquire estabilidade no momento do congelamento. O que se tem até aí é a modelagem de esculturas cristalinas e brilhantes, “ovos de água”. Estes volumes, ao mesmo tempo transparentes e enigmáticos, em que contrastam a superfície lisa e a estrutura interna complexa, foram então instalados sobre dispositivos de captação de água pluvial de uma edificação e deixados em derretimento. Durante este processo, enquanto cada peça manteve o desenho liso de sua porção superior, a sua parte inferior foi sendo redesenhada pelo confronto do peso próprio do volume com os intervalos da grelha metálica do chão. Disposto em intervalos regulares, com cada peça submetida à sua própria dinâmica de redesenho formal em função das condições de luz e temperatura de cada ponto, o conjunto passou a dialogar com distintas dinâmicas de vivência no local durante o seu processo estendido de desaparição.

Disparador III: Palavra-conceito

Dentro desta estratégia, selecionamos duas colagens construídas a partir da tensão presente no binômio “fronteira-limite” e duas instalações realizadas a partir da palavra-conceito “fluxos”. Ambos os conceitos foram escolhidos pela posição-chave que têm ocupado nas configurações espaciais e nas dinâmicas sociais das cidades contemporâneas.

Conceito 1: Limites e fronteiras

O lançamento aos alunos da temática “limites e fronteiras” previa de antemão que ela poderia ser explorada em um espectro diverso, em uma série de mediações que comparecem em relações que outros termos estabelecem entre si. Por exemplo, limites e fronteiras entre o público e o privado, entre o fixo e o fluxo, entre um corpo e outro, entre um sujeito e outro, entre a imagem e o espaço…

Colagem

(12  cm  x 1,40 m, xérox sobre papel sulfite)
Autor: Rafaela Lino Izeli
2008

Após a discussão conceitual coletiva, a primeira etapa deste trabalho foi realizada por meio de uma expedição fotográfica da autora pela cidade de São Carlos. Grande parte da definição da proposta já está presente na estratégia de aproximação à cidade: a proximidade e a frontalidade em relação às superfícies que desenham os limites e as fronteiras entre o público e o privado, entre o abrigo doméstico e a sua face mais externa exposta sem artifícios, maiores acabamentos ou sobreposições de barreiras. Na segunda etapa foram realizadas cópias xérox das fotografias selecionadas, controlando seus tons. Por fim, a terceira etapa consistiu na definição da colagem. A montagem horizontal recria uma articulação de fachadas que, se não existe tal e qual na cidade, traz um ar de familiaridade. A passagem do tempo acusada pela materialidade das arquiteturas é traduzida na dimensão tátil que adquire a fotografia em preto-e-branco reproduzida no xérox. Diante deste trabalho, o olhar opera por varredura, desliza como o olhar de alguém que passeia na rua, pousando sobre detalhes que atraem a atenção. Nesta paisagem remontada, encadeiam-se portões, janelas, portas e alvenarias transformadas em campos de branco, cinza e preto. Nela há a presença episódica dos habitantes que se colocam diante, por sobre, entre e dentro destes limites e fronteiras tão característicos da paisagem da cidade.

Colagem

(0,80 x 1 m, xérox sobre papel sulfite)
Autor: Fernanda Lie Sakano
2008

Como no trabalho anterior, a discussão conceitual coletiva foi seguida por uma expedição fotográfica realizada pela autora. Neste caso, os objetos fotografados, sempre de baixo para cima e contra a luz, são trechos de céu em que aparecem apenas semáforos e fios elétricos. Transformados pela cópia xérox, estes elementos que participam de um sistema infraestrutural e comunicacional que organiza limites e fronteiras dos fluxos urbanos em períodos de tempo são então rearticulados em uma colagem que faz uso de imagens em três dimensões distintas. Nela, soma-se à referência ainda presente aos semáforos e fios a imagem diagramática de uma rede composta por nós e linhas de conexão. Mas em uma observação mais detida, percebe-se que não há conectividade total entre as imagens, os nós e as linhas. A imagem final não se submete aos limites claros do retângulo, como não é possível perceber integralmente os limites de uma cidade. Incorporando vazios e pedaços em escalas e orientações diversas, a forma resultante é centrífuga, indica expansão.

Conceito 2: Fluxos

Com esta proposição aos alunos, objetivou-se mapear coletivamente a abrangência que o conceito de “fluxo” tem adquirido na realidade contemporânea. Os alunos trabalharam a partir de um conjunto de insumos que constituem a sua vivência: a experiência urbana em cidades diversas, a crescente imersão em redes de informação e comunicação e as reflexões sobre questões afins das quais tomam parte durante o curso. A palavra-conceito, então, se abriu para um amplo campo de associações: a fricção entre espaços de fluxos e espaços fixos nas cidades, fluxos de mercadorias, fluxos de energia, sociabilidades mediadas por fluxos de informação, dentre outros. Como parte da proposta, era necessário que o trabalho se configurasse como uma instalação que utilizasse luz.

Instalação

(7  x 7  m, embalagens de alumínio, fios, LEDs, imagens
plotadas em acetato)
Autores: Leandro Barbosa Paganelli, Priscila Beuter,
Thalita Cruz
2007

Na sala escura, a primeira escala de apreensão desta instalação é a de pontos luminosos espalhados pelo espaço. Em uma segunda escala, a da proximidade com cada ponto (que leva uma das cores primárias da televisão, vermelho, azul e verde, emitida por LEDs), o que se tem é uma “caixa de luz”. Nela, há uma imagem luminosa e leitosa, emoldurada por uma embalagem de alumínio de “marmita”, da qual esta mesma imagem é a tampa. Deslocada funcionalmente, a “marmita” se coloca à visão a partir de sua qualidade formal e material. Por outro lado, traz ao trabalho toda a sua carga simbólica, que vai potencializando outros tipos de associação. Por meio de percursos variados por entre os pontos, trajetos pelos quais a circularidade entre uma e outra escala de visão se constrói, a instalação vai enunciando que ao sistema de cores está associado outro sistema. As imagens iluminadas estampam três tipos de fluxos: de pessoas, de mercadorias e de informações. Com a introdução de uma tênue iluminação ambiente, a instalação revela que cada ponto marmita-imagem-pessoa-mercadoria-informação não é autônomo, ele está imerso na espacialização de uma rede conectada por fios e fluxos.

Instalação

(8 x 8 m, garrafas PET, água, tinta látex,
bastões fosforescentes)
Autores: Jacqueline Adriana Diorio de Souza, Mônica Aparecida
de Freitas, Raquel Arata, Rosilene Regolão,
Tássia Helena Teixeira Marques
2008

Diante deste trabalho, em um primeiro momento de curta duração, a primeira atitude – como que pela inércia dos movimentos trazidos de fora – é a de deslocar-se por entre os pontos luminosos. Logo em seguida, o trabalho vai solicitando que o espectador se dirija às suas margens, a partir de onde se pode olhar o conjunto. Se antes a percepção da instalação se ressentia de uma carga inercial, neste instante é o trabalho que vai conduzindo a percepção e as ações. É a partir deste momento, então, que o trabalho passa a induzir o espectador a um estado de prolongado silêncio e imobilidade. No interior de cada emissor de luz (composto por garrafa PET e bastão fosforescente mergulhado em água e tinta), um processo químico também silencioso vai se convertendo em fenômeno físico. O exame detido de cada uma das garrafas dispostas em filas sucessivas passa a revelar, dentro da semelhança geral, pequenas diferenças de formato e marca. A paisagem de totens parece ser infinita, nela nada se move. Mas, na mesma proporção de tempo em que se olha, a retina vai sendo impregnada pela fraca luz verde, cuja fosforescência é simultaneamente atraente e repulsiva. E então, ao menor movimento e piscar dos olhos, as formas luminosas impregnadas se arrastam.

Deve-se reiterar que os trabalhos expostos aqui, assim como as estratégias adotadas em LAC, têm um caráter experimental. A disciplina de Linguagens da Arquitetura e da Cidade está presente no curso de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP desde a sua concepção original (o curso teve início em 1986) . Ao longo deste tempo de existência, a disciplina passou por algumas revisões de conteúdos e de estratégias, seja para dar conta de um conjunto de questões que vem sendo postas à reflexão pela realidade contemporânea (algumas das quais são distintas das da década de 1980), seja pela alteração dos professores responsáveis pela disciplina e que trazem seus distintos enfoques. O formato geral da experiência didática exposta aqui tem cinco anos, período no qual vem sendo aprimorada e modificada constantemente nas relações entre temas e suportes com os quais tem trabalhado. Como premissas fundamentais neste processo, reiteram-se os objetivos da disciplina de diálogo com a produção contemporânea de arte e de arquitetura e de configuração de um espaço de pesquisa para os próprios professores e para os alunos.

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[1] O curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP é conformado por quatro áreas de disciplinas – Projeto; Representação e Linguagem; Tecnologia; Teoria e História – que perfazem quatro dos seus cinco anos. O último ano é reservado à elaboração do Trabalho Final de Graduação.

[2] Recentemente (nas últimas três décadas), tem havido um interesse crescente na arte por situações urbanas, e não apenas como um contexto para implantação da obra de arte, mas como um campo de investigação que não cessa de se desdobrar – site-specifics, trabalho com determinados grupos sociais, situações liminares, etc.

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