Umberto D. (Vittorio De Sica, 1952)

Contexto social do pós-guerra italiano é palco da narrativa apresentada em Umberto D., um idoso e suas dificuldades em um sistema que procura derrubá-lo mas que não se deixa abater

Por Thiago Consiglio*

Umberto D. conta a história de um homem idoso: Umberto Domenico Ferrari, que vive em Roma, Itália, e tenta desesperadamente manter seu quarto na pensão que mora, já que está sendo despejado. Neste contexto conturbado seus únicos amigos são uma empregada e seu cachorro (Maria e Flike, respectivamente). O filme foi nomeado à “Best Writing, Motion Picture Story” no Oscar e ao Grand Prix no Festival de Cannes de 1952.

O longa começa com uma cena que nos apresenta um protesto social, um possível estranhamento aos “olhos pós-modernos” que assistem ao filme na década de 2010, já que atualmente estamos considerados em uma época de pouca movimentação política-social devido à visão dos pós-modernos. A pós-modernidade nos indica que filosofias totalizantes como Marx e Freud, não mais explicam o mundo por completo, mas fragmentos destas em conjunto interpretam o mundo. Além disso, o indivíduo também é composto por fragmentos e o engajamento político fica desacreditado, por exemplo.

O que pode causar um maior estranhamento é o fato de que os integrantes deste protesto são idosos. Ainda vemos algo diferente quando vemos o idoso protestando e sendo tratado com descaso pelos policiais, não tendo nenhuma diferenciação de respeito, levando-se em conta a idade deles. Se pararmos para pensar, não deveria ser estranho de forma alguma, já que o engajamento político mudou, mas as instituições do Estado que “organizam” a sociedade não. Além disso, o que os “olhos pós-modernos” vão achar é que o engajamento político e a visão de mundo que procurava um futuro melhor não existe mais por causa da fragmentação, mas o que não se leva em conta é que essa fragmentação não gera uma dissolução por completo mas uma nova proposta de construção. A proposta atual é reconstruída a partir dos ideais passados, deve-se entender isso para que não se caia em um relativismo que leva à falta de ação.

E com esses questionamentos em vista essa primeira cena do protesto nos aponta um estranhamento da realidade, mas logo em seguida percebemos que não é só a realidade que é diferente do nosso presente, mas também a mentalidade, a ideologia e linguagem usada pelo diretor, Vittorio de Sica. O filme se encaixa dentro do contexto do Neorrealismo Italiano, movimento que se afastou de produções de estúdio ao gravar em locações e apresentando uma história do “homem comum”, trabalhador e proletário da Itália dos anos 50.

Contexto social

A situação social é bastante evidente durante o filme todo, como exemplo temos uma cena que vemos outro idoso que compra o relógio de Umberto, mas que logo em seguida, vira o chapéu e começa a pedir esmola, como se fosse algo normal e aceitável. Isso significa a banalidade e o descaso da vida humana neste período de dificuldade que se encontra a Itália, uma coisa que seria um choque nos dias de hoje nos é apresentada de forma sutil.

Já por outro lado temos uma visão sobre a outra classe social na figura da dona da pensão que em momento algum demonstra dificuldade e aparece algumas vezes com reuniões junto de seus amigos artistas e intelectuais, como se eles vivessem uma vida completamente diferente. A discrepância entre ambas realidades é evidente e nos mostra que por mais que o país esteja em uma situação extrema, somente alguns sentem isso no dia a dia de forma efetiva. A distância entre as classes que a situação precária econômica traz também apresenta outra relação: a de que quem está próximo do dinheiro, a classe abastada, não tem compaixão e só se move pelo próprio lucro que o gera, como a dona da pensão que vive cobrando Umberto apesar das dificuldades. O próprio protagonista comenta indignado “ela nem sabe o que é uma conta para pagar!”.

Já do outro lado da moeda, observamos que Umberto, mesmo passando por dificuldades, cria laços com a empregada Maria e até lhe dá conselhos e aulas de gramática, para que ela não fique para trás na sociedade. Apesar da situação que enfrenta, ele despende seu tempo com compaixão ao próximo.

Outro aspecto da distância que as classes sofrem neste sociedade italiana, se dá quando Umberto está procurando pelo cão e encontra um abrigo de recolhimento de animais. A pessoa que está em sua frente na fila, da mesma classe social, a trabalhadora, se depara com o dilema de ter que pagar um dinheiro que não é pouco, para liberarem seu cachorro, e caso não o faça terão que sacrificá-lo. O funcionário que cobra esta pessoa para poder liberar o cão tem em si a representação do poder público, e que pede um dinheiro pela vida do animal. É uma questão de se pesar dinheiro ou nada, como se se não existe dinheiro, não deve existir mais nada. Essas questões geram uma segregação coercitiva institucionalizada pela burocracia, dos que tem contra os que não têm. Nessa mesma cena, também não podemos deixar de associar o sacrifício dos cães com o extermínio de judeus no Holocausto da 2ª Guerra Mundial. A ascensão do modo de vida e produção capitalista que elevada ao extremo gerou o totalitarismo. Esse sistema político-social totalitário, que também levou à devastação da Itália, é a própria representação dos ideais do capitalismo elevados ao extremo. O sistema totalitário deixou de existir, mas os seus fundamentos que partem da organização capitalista não. Portanto a real mudança não aconteceu nesta sociedade que observamos no filme, mas sim propostas que partem de reformas e não alteram a estrutura de fato. Nesta sociedade vemos algumas reformas que se distanciam do sistema anterior, mas outras que demonstram serem resquícios próximos.

O sentido de igualdade dos indivíduos que não existiu na sociedade ditatorial de Mussolini também não é observado neste período da história. Mas apesar da diferença que vemos nos diversos personagens, encontramos também uma “igualdade” que os aproxima. Podemos fazer uma analogia com a aparição das formigas que infestam a cozinha da pensão e o quarto de Umberto, com a de que “sob os olhos da natureza somos todos iguais”. Isto significa que dentro da sociedade, existem classes sociais, normas e morais a serem seguidas; mas nos esquecemos de que antes disso existe algo maior: a própria natureza, que não faz distinção entre os indivíduos humanos, sendo todos iguais para ela. A civilização através do meio de produção capitalista que está inserida esta sociedade, cria as próprias desigualdades. Por mais que as pessoas sejam diferentes, as formigas estão lá “atrapalhando” a vida de todos independente de distinção social e econômica.

O olhar próximo

Quando analisamos a situação de forma sociológica, observando as massas, às vezes nos esquecemos do foco, que o filme faz questão de nos lembrar, que é o indivíduo. Na cena em que o protagonista observa um homem pedindo dinheiro e resolve ir conversar cabisbaixo com um ex-colega de trabalho e puxa assunto para pedir dinheiro, pode-se perceber que neste momento tem sua dignidade humilhada. Isso nos mostra a consequência que um período de crise gera, levando-se em conta o indivíduo. Ali não vemos um número ou uma estatística, mas sim o sofrimento e a dignidade sendo afetadas.

Aproximando o olhar da história, vamos também perceber que na linguagem deste filme, um gesto diz tudo. Ao invés de se utilizar de recursos de falas ou pensamentos explicativos, o diretor nos apresenta uma solução bem prática que é sutil e simples, o gesto de um personagem que dentro do contexto da história é mais profundo do que aparenta ser (um simples movimento com a cabeça ou com as mãos, por exemplo).

Cito dois exemplos deste caso, sendo o primeiro quando Umberto estende a mão para pedir dinheiro e simplesmente a vira, aí temos o sinal de que não suporta renunciar a dignidade a tal ponto e acompanhamos o sofrimento que está contido neste movimento. Em outra cena Maria perde o sono na madrugada e resolve moer café, ela o faz de tal forma envolvida nos detalhes de todo o processo, que só os espectadores atentos percebem que ela faz isso enquanto chora discretamente. O que também dá a entender que ela pode ter se envolvido nos detalhes assim, procurando se afastar de alguma tristeza ou dificuldade que sente no momento.

Por outro lado, se não estamos completamente atentos aos detalhes do filme, nos deparamos com situações “surreais” a primeira vista, mas que nos levam a dar gargalhadas pela surpresa. O elemento do “susto” nos apresentado quebra o sentido que a cena estava sendo construída até então e é utilizado de forma sutil, o que inevitavelmente nos leva ao humor. Um exemplo disto se dá quando Umberto está saindo do abrigo religioso que se hospedou e se despede de seu companheiro quando de repente, um caminhão surge e buzina para eles passando justamente pela entrada que os dois estavam parados.

Além disso, a cena em que Umberto precisa trocar seu dinheiro para pagar o taxista e se vê obrigado a comprar uma caneca já que ninguém aceita de bom grado fazer a troca, e então, pouco antes de voltar ao táxi, percebe que a caneca não lhe terá serventia e a joga no meio da rua, despedaçando-a. Outra cena ainda que não pode deixar de ser citada, em relação a este aspecto, é a em que Umberto não tem coragem de pedir esmola e faz com que o cão Flike o faça em seu lugar, uma cena inesperada que carrega em si beleza e tristeza únicas.

A construção do filme cheia dessas minúcias nos leva a crer que foi feita sob incríveis técnicas que nos imergem na realidade da história e dos personagens, mas existe uma curiosidade que nos entrega algo que apresenta uma característica que eleva ainda mais a obra. Os personagens Umberto e Maria, interpretados por Carlo Battisti e Maria Pia Casilio respectivamente, nunca atuaram anteriormente. Isso acrescenta à veracidade que o diretor Vittorio de Sica procura, ao demonstrar uma realidade difícil e vivida por muita gente nesta época. Os “heróis” dessa história não são de origem extraordinária, mas comum e trabalhadora.

O melhor amigo do homem

Falando em herói da história, não podemos esquecer-nos da sensação de após assistir o filme, perceber que o grande herói talvez não seja o personagem que dá título à obra, mas seu grande companheiro, Flike. Na medida em que a narrativa se desenvolve vemos crescer sua relevância.

Quando Umberto está desistindo de tudo e pretende deixar Flike na casa de pessoas que cuidam de outros cães, o personagem tem uma súbita consciência de compaixão e escolhe não deixar o cachorro lá. Enquanto ele negociava as condições da estadia de seu cão, percebe que este demonstra não querer ficar quando a expressão de outro animal é de agressividade com ele. Por mais que a situação de Umberto seja a de completo desespero, este não consegue desistir de seu amigo. Ele não se entrega à insensibilidade do mundo.

Após toda a narrativa de desespero e dificuldade, vamos nos aproximando da conclusão que não nos parece até então que será a de um “final feliz”. Umberto tenta desesperadamente encontrar uma última solução para entregar seu cão a alguém que cuide dele de fato ou até tenta deixá-lo à sorte antes de se despedir da vida, mas este sempre volta para ele, como se fosse uma conclusão do próprio “acaso” que fica mostrando-o um propósito para viver quando este não quer mais respirar.

Umberto então decide parar no trilho de trem e esperar que este dê um fim à sensação horrível que vem sentindo até então e que não aparenta ter uma conclusão. Como o cachorro não quis se separar do dono, Umberto decide levá-lo junto. Quando o trem está se aproximando, o cão, que é um ser irracional e tem seus instintos à flor da pele, percebe a iminência e foge do colo do protagonista.

É neste momento que Umberto tenta ir atrás de Flike para uma reconciliação e desta vez é o cão que não quer ficar com ele. Quando todos deram as costas para ele, foi o cachorro que não desistiu e ficou por perto, significando que quando o mundo inteiro se perdeu em sua humanidade, foi o cão que trouxe o calor humano para Umberto e a virada que vemos é a de que o próprio Flike dá as costas ao dono.

Mas envolto a todos esses sentimentos, Umberto se esforça para se reconciliar com Flike, chamando por ele até que encontra sua redenção e a vontade de viver quando consegue se aproximar e sair brincando com ele em um dos finais mais belos e tristes de uma obra cinematográfica como esta. Nós ficamos com as sensações de felicidade, alívio, redenção e transcendência ao ver os dois brincando corredor afora com um destino completamente incerto em termos econômicos, mas completamente selado em termos humanos.

Não é a toa que o diretor Vittorio de Sica apresenta a dedicatória do filme para seu pai, que vemos logo no início da obra. Mas que fique claro que isto não limita a interpretação da obra, a homenagem surge também para muitos dos homens e mulheres da classe trabalhadora que são vítimas do sistema que não vê indivíduos, mas números, o sistema que retira a própria humanidade dos seres humanos.

Essa obra apresenta uma revolução que não acontece com armas nas mãos, mas com abraços e sentimentos calorosos para com o próximo. É uma história que termina com o lembrete de que o próprio homem que criou o sistema, criou para si estas dificuldades, e por isto, basta saber caminhar a vida do dia a dia para, a partir daí, sobreviver e então encontrar o propósito de viver.

*Thiago Consiglio é graduado em Comunicação Social – Jornalismo, trabalhou com curtas-metragens independentes e escreve para o blog colaborativo Mescla Mutual (http://mesclamutual.blogspot.com)

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