Por Thiago Köche
O frio em Porto Alegre, capital dos gaúchos, é glacial. O vento nas ruas do centro da cidade cortam o rosto de forma violenta. Sair de casa é uma aventura. O cachecol, meias duplas, touca e luvas deixam de ser acessórios para se tornarem necessidade. Todas estas lembranças remetem diretamente ao melhor festival de cinema que temos no estado do Rio Grande do Sul.
O nome do evento é FANTASPOA, uma mistura de fantástico com POA, abreviação comumente usada de Porto Alegre. É um festival de filmes do gênero fantástico, ou seja, tudo aquilo que não condiz com a realidade, sendo em sua maioria horror, ficção científica, drama, comédia, trash – ou até a soma de todos. O ciclo exibidor engloba curtas e longas metragens de animação e live action, além de documentários na categoria longa.
O FANTASPOA conta com filmes de inúmeros países, como Brasil, Argentina, Chile, Costa Rica, Canadá, Austrália, Estados Unidos, Islândia, Países Baixos, Grã-Bretanha, França, Nova Zelândia, Reino Unido, Suiça, Alemanha, Espanha, Grécia, Bélgica, Polônia, Rússia, Dinamarca, Itália, Sérvia e Montenegro (quando o filme foi rodado, ambos os países ainda estavam unidos), Japão, Coréia do Sul, Iugoslávia, México,Portugal, Cuba, Estônia, Vietnã, Croécia, Sérvia, Hungria e Bulgária.
Tudo começou em 2005, onde até então, este tipo de evento era inédito em terras tupiniquins. A equipe do festival fechou parceria com o Clube de Cinema de Porto Alegre e realizou suas primeiras sessões. O primeiro Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre teve modestos 15 filmes, em 6 dias, totalizando 800 pessoas.
Em 2006, na sua segunda edição, foi realizada uma mostra competitiva de curtas. No mesmo ano, foi realizada uma homenagem ao mestre do horror nacional (e um ícone mundial do gênero), o famoso Zé do Caixão; houve uma retrospectiva de sua carreira com a presença de sua filha, Liz Vamp, que recebeu a honraria, já que o diretor trabalhava no seu último filme A Encarnação do Demônio (2006). Foram exibidos 20 longas-metragens, 12 curtas em 6 dias. O público quase duplicou: 1500 espectadores.
Na sua terceira edição, em 2007, o nome do festival foi abreviado para o já famoso FANTASPOA. Foi realizada a primeira mostra internacional competitiva de curtas fantásticos do país. Houve inscrições de filmes de mais de 30 países diferentes. Nesta edição foram 30 longas e 22 curtas em 10 dias, totalizando 2800 espectadores, contando com presença de pessoas do interior do estado, inclusive caravanas vindas somente para o evento.
Em 2008 foi realizada a maior mostra competitiva de longas-metragens de um festival de gênero na América Latina (42 filmes). Foram mais de 300 filmes, entre longas e curtas, ocupando 6 salas da capital dos gaúchos durante 15 dias. O público ficou em 4000.
No ano de 2009, na sua quinta edição, veio a consolidação de um dos maiores festivais do gênero na América Latina. Foram exibidos 200 filmes, e metade deles de longas. Contou com a presença dos diretores argentinos Hernán Findling e Gustavo Mendoza, além do cultuado diretor neo-zelandês David Blyth, que sempre causou polêmica ao redor do mundo com seus trabalhos. Houve uma retrospectiva de suas obras, o que a partir deste ano começou a se tornar padrão: um diretor homenageado com uma mostra a cada edição do festival. Todos eles fizeram sessões comentadas disputadas. Blyth e Findling ministraram um curso de direção juntamente com o diretor gaúcho Fernando Mantelli (que tem muitos trabalhos fantásticos em sua carreira), resultando na realização de três curtas pelos alunos, exibidos no próprio festival. Ocorreu também um curso ministrado pelo jornalista paulista especialista do gênero, Carlos Primati, chamado História do Cinema de Horror. O público desta edição ficou em 5500 espectadores.
No ano passado teve mais de 130 filmes. Foram mais de 600 filmes inscritos! Houve a Mostra Luigi Cozzi, com uma retrospectiva do famoso diretor italiano do gênero fantástico que veio para Porto Alegre receber a honraria. Diretor, roteirista, escritor e fã de ficção científica, já fez vários filmes cultuados e originais, transitando pelo trash e pelo suspense. O diretor (e jornalista) Felipe M. Guerra (presença confirmada todos os anos, seja com um filme novo, ou cuidando de uma mostra, ou no corpo de jurados) foi o responsável por esta mostra. Guerra já escreveu mais de 300 artigos, focado em filmes de baixo orçamento e desconhecidos, no cultuado site Boca do Inferno e em seu blog, Filme Para Doidos; além de diretor de três longas-metragens independentes de baixo orçamento. O diferencial e destaque de 2010 são as presenças internacionais. Apesar do 6º FANTASPOA não conseguir repetir a excelente iniciativa da edição 2009 de fazer workshops com diretores estrangeiros (houve dois cursos ministrado pelo Carlos Primati, Ficção-Científica na década de 1950 e uma repetição do curso de 2009, História do Cinema de Horror), o evento trouxe nada mais nada menos que 11 presenças forasteiras. Infelizmente, 3 diretores que, por um motivo ou por outro, acabaram não comparecendo ao evento.
O FANTASPOA esteve presente em 2008 em outros festivais. A seleção Fantaspoa 2006/2007 foi exibida no ano de 2008 no: Riofan (Rio de Janeiro), Rojo Sangre (Argentina), Macabro (México) e Mise-en-Scene’s Short Film Festival (Coréia do Sul); além de ter efetuado a captação de filmes em diversos países, através de seus representantes, João Pedro Fleck e Nicolas Tonsho, em festivais de grande porte na Europa, como o 30º Festival Internacional de Curtas de Clermont-Ferrand, na França, o Fantasporto, em Portugal, e o Amsterdam Fantastic Film Festival, na Holanda.
Chegamos em 2011 e a expectativa não poderia ser diferente: presenciamos a edição mais audaciosa e recheada do FANTASPOA até hoje. Com mais de 750 inscritos, foram selecinados um total de 140 filmes, sendo 45 curtas-metragens e 95 longas. Em quatro salas, o público foi de mais de 6300 espectadores. Nos curtas, houve quatros mostras competitivas diferentes: live-action nacional, animação nacional, live-action internacional e animação internacional. Sete filmes foram selecionados para Exibições Especiais, fora de competições, mas com obras memoráveis e cultuadas, como Aballay, o Homem Sem Medo (Fernando Spíner, 2010), High School (John Stalberg, 2010), A Noite dos Chupacabras (Rodrigo Aragão, 2011) e Anoitecer Violento (Jim Mickle, 2010). Houve mais cinco mostras competitivas: Documentários Fantásticos, O Fantástico Mundo Animado, Mostra Competitiva Filmes de Ação, Competição Internacional e Competição Ibero-Americana.
O forte do sétimo FANTASPOA foi o número de convidados: foram 25 convidados, realizadores nacionais e internacionais, porém 4 não puderam comparecer. Também contou-se com três sessões surpresas comentadas, outra iniciativa interessante do evento.
Este ano o FANTASPOA contou com o patrocínio dos Correios e Governo Federal, num orçamento de 89 mil reais – o que é pouco, acreditem, pra quem tem que bancar custos e despesas de um grande festival mais hospedagem e passagens de 25 convidados internacionais!
Além de todos os filmes, o festival também recheia as semanas porto-alegrenses contempladas com dois cursos: Workshop de Cinema de Animação Stop-Motion com o diretor italiano Stefano Bessoni e Expressionismo Alemão, com o jornalista paulista (e como Guerra, sempre presença certa no corpo de jurados) Carlos Primati, grande especialista do cinema fantástico no Brasil.
O que vale lembrar é que a oportunidade do público fã do gênero ter acesso a esses filmes é quase que única. A grande maioria dos filmes ou sequer foi lançado, ou simplesmente é muito underground para você achar na internet e fazer download. Diria que apenas 5% dos 140 filmes você consegue achar para “piratear”, e para achar legendas em português, diria que 1%. É agora ou nunca – e este é o charme do festival.
O mais legal do evento é que se tornou agenda marcada de todo ano pra quem frequentou o festival e para fãs do gênero. Todo ano todos esperam filmes exclusivos, sessões comentadas, workshops, festas e o melhor que um festival de cinema pode proporcionar: reunião de vários admiradores de um segmento, neste caso, o cinema fantástico. O marketing do FANTASPOA é impecável: o site é lindo, os pôsteres com arte do talentosíssimo Py Vasco são distribuídos gratuitamente. Há broches para quem pedir, de graça também, revistas com a programação e sinopses dos filmes, entre outras iniciativas, que deixam a publicação do festival impecável – além de ações em redes sociais, claro. Por 23 reais você compra uma bela camiseta do evento, inclusive.
O filme que virou debate no Brasil inteiro passou aqui – e sem censura alguma. A Serbian Film – Terror Sem Limites (Srdjan Spasojevic, 2010), o longa-metragem que está polemizando o mundo inteiro por pesadas cenas de estupros, pode ser visto em Porto Alegre. Para quem não sabe: o filme foi censurado do festival de cinema fantástico do Rio de Janeiro, o Riofan, pelo patrocinador Caixa Econômica Federal.
Vale ressaltar alguns filmes. Escolhi dois deles, que chamaram atenção do público e crítica: Aballay, o Homem Sem Medo (filme argentino que teve muito destaque) e Tudo Sobre a Maldade (que foi eleito o melhor filme pelo júri popular), de Joshua Grannell, lançado em 2010.
Aballay, o Homem Sem Medo foi uma grata surpresa para todo o festival. Trata-se de um clássico faroeste de vingança, velha e boa fórmula, mas que se passa num vilarejo argentino, falado em espanhol e, apesar de claras referências do diretor italiano do gênero Sergio Leone (assumidas pelo simpático diretor Fernando Spiner, presente em sessões comentadas), é um western totalmente diferente de tudo que você já viu. Fernando Spíner afirma: “precisamos fazer filmes que nós conseguirmos nos ver nas telas. Chega de Shrek, Carros, Transformers, Harry Potter! Devia ser proibido este tipo de influência em nossas nações! Nossa cultura é tão rica e nossos cinemas tomados pela cultura norte-americana! O que deveria haver é uma cota pequenínissima para filmes de fora, como 5%, de 95% ser de filmes latino-americanos! Chega de filmes de favela, tanto na Argentina quanto no Brasil!”. Apesar de muito idealista e utópico, Spíner tem toda razão. O problema é a prática de suas propostas – a profissionalização de o cinema como indústria ocorreu nos Estados Unidos muito antes do que aqui – tanto que somente agora o Brasil está tendo uma vida própria e lucrativa em “cinema-bussiness” com filmes de ação (os dois Tropa de Elite), de comédia (a maioria da Globo Filmes, mas muito bem feitos) etc. O filme conta a história de Aballay (Pablo Cedrón), um ladrão cruel e sanguinário que vê no desespero do filho de uma de suas vítimas o motivo para parar de saquear pessoas mais afortunadas a procura de perdão. Este filho virou homem, Julián (Nazareno Casero), que segue Aballay até que o homem que tirou a vida de seu pai também faleça diante dos seus olhos, assim como faleceu sua inocência vista pelo assassino. A frase de Spíner sobre o roteiro de seu filme foi marcante: “a violência machuca não só quem sofre, mas também quem a pratica”.
Com certeza, Fernando Spíner foi uma das melhores sessões comentadas de todo o FANTASPOA, pois é o típico diretor que todo festival quer – simpático, inteligente e polêmico. Ele cativou o público como ninguém, até pela proximidade geográfica e também cultural. O debate com ele nunca acabava, e o mediador João Pedro Fleck teve que intervir para que a conversa entre diretor e público finalizasse para que o próximo filme da sala pudesse ser exibido. Fora Aballay, o filme A Sonâmbula (1998), uma das sessões surpresas, também foi comentado – aliás filme que teve roteiro assinado por Fabián Bielinsky, diretor dos famosos Nove Rainhas (2000) e A Aura (2005). Este A Sonâmbula, aliás, é muito curioso – apesar de ter um ritmo monótono quase insuportável, tem um final interessante, um roteiro inteligente, original e ousado. Filme claramente (e também declaradamente) inspirado nas obras de Fritz Lang. Produção argentina impressionante para a época. Fernando Spíner estudou no Centro Sperimentale Di Cinematografía, em Roma. Foi professor de comunicação social da Universidad de Buenos Aires e da Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematografía. Ganhou diversos prêmios, dirigindo documentários, curtas-metragens e séries para televisão.
Tudo Sobre a Maldade foi uma das sessões que mais conteve risadas. Numa sala de cinema lotada, onde pessoas sentavam na escada para não perder este filme, contava a história de Deborah (a famosa e talentosa Natasha Lyonne), garota que herdou um cinema de seu falecido pai e se vê na missão de honrar a tradição da família pelo entretenimento. Sua mãe (Cassandra Petterson, conhecida no mundo inteiro pelo seu papel Elvira em diversos filmes), uma megera, tenta convencer Deborah de vender o terreno do cinema para ser feito um prédio e ganhar muito dinheiro. A garota nega, sua mãe a ataca. Deborah, num súbito de fúria, mata a bruxa. Sem querer, numa das sessões noturnas de horror, a filmagem das câmeras de segurança da garota matando a mãe é exibido na telona e aplaudido por todos. Deborah vê a chance de salvar o cinema – produzindo seus próprios filmes! Só há um pequeno problema: ela exige realidade dos atores, logo, sempre mata todos eles. O plot é claramente de comédia, e assim compõe um filme engraçado e ao mesmo tempo com cenas divertidíssimas. Assim como um dos personagens do filme, Joshua Grannell afirma que, quando adolescente, tinha vários posteres de filmes de horror que assustava sua mãe, sempre suspeitando dos gostos do filho. Grannell interpreta uma drag queen (muito engraçada, por sinal) no filme, e ele diverte a plateia dizendo: “meus pais não se preocupam mais com meus gostos, agora sou a drag queen que eles queriam!”. Ele aponta Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), A Hora do Pesadelo (Wes Craven, 1984) e O Massacre da Serra Elétrica (Tobe Hopper, 1974) como os filmes que mais influenciaram sua carreira – e o Tudo Sobre a Maldade, seu primeiro longa-metragem. Grannell disse no debate que utilizou a câmera Sony F900 para a maioria do filme e a Sony EX3 para cenas das câmeras de segurança. O mais legal do projeto todo do filme é que ele tem uma proposta diferente de exibição – uma grande equipe viaja para cidades no mundo inteiro para exibições especiais com participações dos atores antes, durante e após o filme, chamado de “Cinema 4D” pelo diretor, que está sendo um sucesso por onde passa. Vale ressaltar a presença também do produtor e assistente de direção do filme, Brian Benson. Benson é norte-americano, produziu em 2000 seu primeiro longa-metragem, Haiku Tunnel (de Jacob Kornbluth e Josh Kornbluth), que foi exibido em Sundance e conseguiu distribuição pela Sony Pictures Classics. Após, produziu mais cinco filmes, inclusive Howl (Rob Epstein e Jeffrey Friedman, protagonizado por James Franco), que tem produção executiva assinada por Gus Van Sant.
Joshua Grannell é norte-americano e também conhecido nos Estados Unidos como Peaches Christ pelas suas performances como drag queen, principalmente nas famosas sessões Midnight Mass, que apresenta filmes seguidas de debates com convidados especiais, como John Waters, Elvira, Linda Blair.
O melhor de tudo é ver que, a cada ano, o festival cresce cada vez mais. As confortáveis, pequenas e simpáticas (e já memoráveis, graças ao FANTASPOA) salas de cinema do CineBancários; Santander Cultural; Sala Paulo Amorin e Sala Henrique Hirtz (dentro do Centro Cultural Mário Quintana, lindo ponto turístico da cidade); e da Usina do Gasômetro (outro local imperdível de Porto-Alegre), que este acabou ficando de fora do festival, estão ficando pequenas para o público com o passar tempo. Não é mais raro ver salas lotarem, ou pelo menos quase lotarem, ou até pessoas sentadas nas escadas, para não perderem exibições raras de filmes ousados, originais e com certeza, muito diferentes do que você pode ver em salas multiplex’s.
O FANTASPOA é irresistível para fãs do gênero.