CRÍTICA | Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), Michel Gondry

Imagem: Reprodução

Por Ana Laura Heidorn 

Graduanda em Imagem e Som, na UFSCar

A princípio, uma das relevâncias a se tratar, logo no início após o “primeiro” encontro de Joel com Clementine, nota-se a forte presença do campo/contracampo entre os dois, cujas disposições de corpos, mesmo quando distantes, está revelada um para o outro, refletindo a interiorização da obstinação do encontro de forma magnética, até o momento que de fato se colidem. 

Assim sendo, com seus eventos subsequentes até o momento em que voltamos ao passado, percebemos o fascínio de um para com o outro, revelando em boa parte a personalidade de ambos, seja Joel por seu lado introspectivo, tímido e perdido, seja Clementine por suas mudanças de humor, hiperatividade e curiosidade. 

Agora, de volta ao passado, nessa mudança maravilhosa de Joel no carro, passamos para a trama da qual se voltará o filme: o apagamento das memórias. 

Nesse filme essencialmente provido de câmera na mão, Michael Gondry se aproveita dessa técnica ao articulá-la ao fluxo de consciência em constância pelo filme intercalando movimentos sutis e às vezes bruscos ao colapso de memórias, de lugares e de realidades, seja esta a do subjetivo e ilusória, totalmente interferida pelo procedimento ali aplicado, seja pela realidade em que Joel obtém consciência daquilo que está exposto, além da presença de faux raccords que ressaltam a confusão desse fluxo. 

Sob esse prisma, percebe-se que Joel ora assume papel de personagem subjugado à sua condição, na qual é uma vítima e passivo da força de mudança, ora de narrador intruso, seja por seus comentários em sua própria memória, tornando o espectador a par daquilo que seria o mais íntimo – ou seja, suas impressões para além dos gestos –. seja pelo desconhecido, por se tratar do movimento retrógrado de memórias e percepções, chegando até mesmo a nos confundir sobre ele ter dito aquilo para Clementine ou se apenas se tratavam de pensamentos altos. 

Além desses papéis designados para Joel, há também este, reconhecido pelo filme, como o de um “mecanismo de defesa” em relação à perda de memórias associadas à Clementine. Isso torna-se interessante de se ressaltar, por exemplo, pelas cenas cuja presença de luzes em Joel enfatiza sua consciência e solidão, seu delírio e enfoque próprio ao apego, ademais de colocá-lo numa posição que tenta se esconder do espectador diegético – este que se situa no ínterim entre os espectadores não diegéticos (nós), e do procedimento ali aplicado, como se esse espectador fosse a perseguição que lhe ocorre, ao mesmo tempo que uma entidade ou força maior para além da câmera que nos direciona –, e das personagens que apagam as memórias. 

Diante disso, a todo momento que essa luz o persegue – ou em outras palavras –, a todo momento que se torna explícita a urgência de se apagar as memórias, a luz ofuscante assume o papel de caçadora da fuga em um tom quase que agressivo – o que pode ser exemplificado por momentos em que Joel tenta se afastar e fugir com muito custo dessa luz. 

Um aspecto para ser retomado é o fluxo de lugares, cuja intersecção de memórias e de realidades em fluxo torna a ambientação um misto de memórias difusas, nos lembrando da aparência lúdica de sonhos, pela interpolação e acúmulo de informações dispostas uma sobre a outra, da qual Gondry soube muito bem articular continuamente ao longo do filme. E, ademais, ainda se tratando das técnicas do diretor, cinematograficamente, há a ocorrência de padrões de disposição de planos, nos quais aqueles que são próximos simulam o apego e a necessidade da proximidade e da intimidade e, aqueles que são gerais, o apego dos dois numa vastidão cuja única existência é pautada na existência dos dois, isolando-os no ambiente ao mesmo tempo que os abrange na dimensão de construção verossímil de um relacionamento substancial. 

Quanto à trilha sonora, esta também mostra-se bem articulada na confusão do personagem, seja pela mistura de falas, elementos sonoros não diegéticos e de, principalmente, ao meu ver, à aparência de uma rebobinagem neste, mais uma vez nos trazendo o aspecto da volta ao passado. 

Voltando para a perspectiva do enredo, uma configuração a ser mencionada, sendo uma das primeiras cenas, é a “brincadeira” feita ao nome de Clementine na música que ela canta, de Dom Pixote, “[…] Oh querida Clementine, você se perdeu e se foi para sempre. Sinto terrivelmente, Clementine”, a qual faz alusão à sua extinção, mas que, ao mesmo tempo, por meio do “sinto terrivelmente”, de algo que se perdeu, ilustra a resistência de Joel e também a perdição de Clementine ao longo do filme, seja pelo caos instaurado por Patrick em suas formas de tentar ser Joel – e falhando —, seja pelos momentos em que parece haver uma interconexão de pensamentos e agonias entre os protagonistas, como se a afeição entre os dois atingisse um tom transcendental à realidade. Isso é pautado por uma das cenas finais em que Clementine se dirige para Joel em sua memória, o pedindo para se encontrarem em Montauk – o que já vimos no começo do filme, aconteceu orquestradamente sem a consciência total de nenhum dos dois. 

Ainda sob a perspectiva do enredo, é possível fazer uma analogia às fases do luto pela qual Joel passa em suas memórias e em vida real, sendo a Negação, o momento em que possui o reconhecimento do ocorrido. A Raiva, seu ato impulsivo de apagá-la da mente e de suas últimas memórias violentas com Clementine, salientado por vezes na memória tal como foi, por vezes descontando seu rancor em

frases soltas. A Barganha, o momento em que Joel tenta se desviar do sistema do qual está imposto. A Depressão, quando se lamenta pelos ocorridos e perde forças para continuar em seu mecanismo de defesa. E, por fim, a Aceitação, na qual se deixa levar pelo procedimento e vai retomando até sua primeira memória sem mais complicações, apenas no ritmo natural daquilo. 

Diante disso, é nesse momento que nos é dada a face de uma memória que se inicia sem turbulências, em virtude dessa aceitação de Joel, e que caminha para a grande cena de desmoronamento da casa sendo inundada, cheia de confissões de Joel e de Clementine, nos fazendo questionar novamente se aquilo se trata de sua construção mental ou daquele tom transcendental, o que é salientado pelo momento em que Clementine pede a Joel para ficar na casa ao invés de ir, como fora feito originalmente, e que este retorna à casa após dizer que não há mais memórias. Tudo isso convergindo para a cena do carro na estrada das memórias, nos remetendo ao tom helicoidal que as memórias tomam ao nosso ver, que retrocedem, avançam e, depois, retrocedem novamente. 

Por último, não podia deixar de falar de Mary. Esta personagem, fundamentalmente apegada ao processo que envolve seu emprego, ao seu chefe e ao seu colega de trabalho, prega ao longo do filme essas frases que ressaltam sua paixão e defesa por aquilo que pratica, como em “abençoados sejam os esquecidos […] o mundo esquecendo pelo mundo esquecido: brilho eterno de uma mente sem lembranças […]”, além da idolatria por Howard como salvador e amante em “Howard faz tudo desaparecer, esses medos e fobias”. Apesar disso, há a quebra de percepção ao se notar vítima daquilo que prega, percebendo a fundamentalidade dos laços que se perdem e o quanto um corpo tende a permanecer em seu estado de inércia, seja ela se apaixonando novamente por seu chefe, seja para Clementine e Joel esse magnetismo de corpos. Dessa forma, ao fim, o filme nos apresenta a insistência – ou necessidade –, dos dois tentarem novamente.

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