Crítica | Jogos Vorazes: a Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (2023), de Francis Lawrence

Foto: Divulgação

Escrito por: Gabriel Pinheiro

O que faz um bom vilão no cinema? Esta indagação, embora permeada por certo grau de subjetividade, pode ser abordada considerando atributos específicos que conferem ao antagonista um apelo mais interessante. Carisma e persuasão destacam-se como dois elementos cruciais; um vilão dotado de carisma e habilidade persuasiva em sua empreitada maligna pode, inclusive, monopolizar a atenção do público, como é frequentemente observado nos dias atuais. A inteligência, por sua vez, desempenha papel fundamental, pois a construção de um vilão astuto, arquiteto de planos coerentes, suscita a indignação desejada no espectador, gerando dúvidas acerca do triunfo dos protagonistas. A capacidade de manipulação também figura como um trunfo, permitindo que o vilão tente influenciar tanto o protagonista quanto o público, proporcionando uma narrativa envolvente.

Ao amalgamar tais características em um personagem autoritário e enigmático, tem-se como exemplo o Presidente Snow na série de livros e filmes “Jogos Vorazes”. O tirano adversário de Katniss Everdeen nesta saga emerge como um vilão inquestionavelmente admirável e meticulosamente delineado. No novo filme “Jogos Vorazes: a Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, a proposta é desvelar a história pregressa de Coriolanus Snow; mas será que deu certo? A resposta mais rápida é não.

Sinopse: Antes de Katniss Everdeen, sua revolução e a participação do 13º distrito, existia o Presidente Snow, ou mais precisamente, Coriolanus Snow. “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” narra a história do ditador de Panem antes de ascender ao poder. Anos antes, Coriolanus Snow residia na capital, nascido na imponente casa Snow, que enfrenta desafios tanto em popularidade quanto financeiramente. Ele se prepara para sua oportunidade de brilhar como mentor nos Jogos. O destino de sua família depende da pequena possibilidade de orientar o tributo vitorioso. Foi designado com a tarefa de ser mentor da garota tributo do Distrito 12. Agora, os destinos dos dois estão entrelaçados.

Conhecer a trajetória que delineia um antagonista constitui um exercício profundamente instigante, especialmente quando se trata de uma figura já consagrada no universo cinematográfico, como é o caso de Snow. Tomemos, por exemplo, Anakin Skywalker, cujos traços de teimosia e petulância já se evidenciam desde a infância, conforme retratado nas prequelas de Star Wars. A sua intensa paixão por Padmé, posteriormente, sinaliza claramente sua rebeldia em relação à ortodoxia Jedi, uma vez que o celibato é um preceito inquestionável no seio desse grupo. Ao final, não pairam dúvidas: entre decepções e as seduções do lado sombrio da Força, emerge incontestavelmente Darth Vader, tal como o reconhecemos.

No contexto do recente filme de Francis Lawrence, a representação de Coriolanus Snow não fornece qualquer indicativo de que este seja, de alguma forma, o mesmo indivíduo que se tornará o Presidente Snow, já familiar aos espectadores. O que se apresenta diante de nós é um homem levemente sofrido, detentor de um coração generoso, apaixonado, inteligente e socialmente hábil, mas destituído das características inescrupulosas que definem o tirano de Panem, objeto de temor na saga “Jogos Vorazes”.

Torna-se praticamente inverossímil conceber que este personagem, interpretado por Tom Blyth, venha a se transformar na figura grisalha, cínica e fria que submete adolescentes a lutar até a morte em uma arena para entretenimento da classe burguesa da Capital. Em certa medida, o filme sugere a imagem de Coriolanus como uma pessoa de índole benevolente, dotada de atitudes genuínas. Contudo, tal representação carece de coerência e não se sustenta logicamente. Em nenhum momento ao longo do filme se vislumbra qualquer traço de rancor, manipulação, dissimulação ou qualquer outra característica malévola que justifique a identidade compartilhada entre os dois personagens.

Para não afirmar que o filme negligencia completamente a transição do personagem para o lado sombrio, nos seus últimos 15 minutos das suas mais de duas horas e meia de duração, busca-se justificar uma súbita inversão de 360 graus na bússola moral do protagonista por meio de uma decepção amorosa de um romance que simplesmente não foi construído de forma satisfatória. Contudo, essa abordagem parece inadequada, uma vez que tal reviravolta apenas adicionaria amargura ao personagem, incapaz de fundamentar de maneira plausível os elementos que conferem a Snow a complexidade característica de um vilão persuasivo. O filme deixou de explorar oportunidades para insinuar ao longo do enredo que as motivações do personagem, em todas as suas empreitadas, não eram motivadas pelas melhores intenções, tornando-se, assim, uma lacuna significativa na narrativa. 

Nem tudo está perdido no filme, óbvio. “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” consegue, de maneira elegante, ampliar nossa compreensão sobre o funcionamento da sociedade e do mundo distópico de Panem, de forma inventiva e cuidadosa. O filme apresenta uma versão precursora dos Jogos Vorazes, proporcionando insights acerca da evolução das questões sociais até o período de Katniss Everdeen. A inclusão de Rachel Zegler, Hunter Schafer e com destaque para Jason Schwartzman, Peter Dinklage e Viola Davis como personagens integrantes da trama é notável, conferindo uma verossimilhança e um senso de pertencimento ao universo de Panem por meio de suas caracterizações e interpretações cativantes. 

Contudo, ao final, torna-se evidente que o filme falha em sua missão primordial: persuadir-nos de que Coriolanus eventualmente se transformaria no Presidente Snow. Não posso precisar se alguma discrepância entre a adaptação cinematográfica e a fonte literária resultou nessa dissonância de personalidade entre os dois personagens. Se tal discordância foi intencional, é possível conjecturar que o filme foi concebido para um público que já havia lido os livros, servindo apenas como uma transposição das páginas para as telas, em detrimento daqueles que se familiarizaram com “Jogos Vorazes” exclusivamente por meio dos filmes. Uma certeza persiste: Coriolanus em “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” não é, não foi e nunca será o Presidente Snow, o tirano de Panem.

Author Image

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual

More Posts

RUA

RUA - Revista Universitária do Audiovisual